São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999 |
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O vocabulário freudiano
ANDRÉ CARONE
Acompanhando os passos dessa escolha na história da edição inglesa, Souza se depara com uma afirmação de Ernest Jones que parece resumir à perfeição o espírito da "Standard Edition": "É necessário despir as palavras de suas conotações acessórias, (...) inevitáveis numa língua falada". A preocupação excessiva com a terminologia se choca, como bem lembra o nosso autor, com um outro aspecto mais relevante da psicanálise; não se pode esquecer que esta é "uma terapia mediante a palavra falada" que "nunca poderá suprimir as conotações secundárias inerentes à língua. Os pensamentos espontâneos (...) dos pacientes ocorrem segundo a trilha dessas conotações, afinal não tão secundárias assim". Apesar da censura que faz ao tom científico da tradução inglesa, Souza não deixa de apontar a ingenuidade e a inadequação de algumas sugestões do seus principais críticos como Ornston, Mahony e Bettelheim. Talvez por exercer também o ofício de tradutor, ele por vezes se dispõe a minimizar certos erros de Strachey (um tradutor de talento) que comprometem a escrita de Freud. Ao comentar, por exemplo, a passagem dos relatos de pacientes do tempo presente para o passado na tradução inglesa (o que lhes rouba toda sua vivacidade), Souza ameniza os resultados dessa escolha, lembrando que "os casos clínicos (...) não ocupariam mais que um volume das obras completas", deixando de mencionar que esse procedimento arbitrário estende-se a todos os relatos de sonhos presentes na "Standard Edition" (o que, de saída, já compromete por inteiro as "Conferências Introdutórias à Psicanálise" e "A Interpretação dos Sonhos") e falsifica por completo uma clara posição teórica de Freud, expressa na "Interpretação": "O presente é o tempo verbal em que o desejo é apresentado como realizado". É na crítica à recente tradução francesa, no entanto, que o livro de Paulo César Souza atinge seu momento mais rico. Apoiado sobretudo num estudo da francesa Michèle Pollak-Cornillot sobre as traduções de trabalhos de Charcot, Bernheim e Stuart Mill realizadas por Freud, ele desmonta a tese laplanchiana de uma hiperdeterminação do sentido das palavras, o que leva os tradutores franceses a transformar termos que não possuem uma significação unívoca no original alemão em conceitos petrificados. O estudo de Pollak-Cornillot revela que Freud não padronizava a tradução de termos que depois foram incluídos em seu vocabulário "técnico"; e o pecado capital do grupo de Laplanche consiste, segundo nosso autor, em "partir de um a priori, (de) uma entidade chamada linguagem conceitual, autônoma e por vezes contrária à "linguagem comum'", ou, se se preferir, em tratar uma língua viva como se já fosse morta. A insistência na tese da univocidade da terminologia empregada por Freud visa conferir ao seu pensamento um sentido único, um abuso que será sempre fatal para um grande escritor. André Carone é mestrando em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Texto Anterior: Anna Flora: Onde, quem, o quê Próximo Texto: Walnice Nogueira Galvão: O sexo de Édipo Índice |
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