São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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O vocabulário freudiano

ANDRÉ CARONE

Via de regra, as idéias de Freud chegaram aos países de língua estrangeira antes mesmo que uma tradução confiável de seus principais trabalhos pudesse ser empreendida. E se a língua inglesa foi, salvo engano, a primeira a se deparar com os problemas de tradução da sua obra, não há então qualquer exagero em situar a portuguesa no outro extremo dessa linha, pois infelizmente continua a ser escasso entre nós o número de textos ou cartas de Freud traduzidos a partir do original alemão. Por essa razão, é sempre com entusiasmo que se recebem contribuições a uma futura tradução brasileira do criador da psicanálise.
O livro instigante de Paulo Cesar de Souza traz contribuições não só decisivas como também bastante diversas para esse debate: o autor faz uma crítica do projeto e da ideologia de duas das mais renomadas traduções da obra de Freud -a inglesa, de James Strachey, e a francesa, dirigida por Jean Laplanche e publicada parcialmente-, comenta 11 termos da psicanálise e suas possíveis versões e discute o estilo ou a retórica freudiana e sua ligação com a teoria propriamente dita, além de dar notícia ao leitor brasileiro de uma valiosa bibliografia que ainda permanece inédita em português.
Mas, para além de seu interesse, o livro será também de grande ajuda para todos aqueles que desejam se aproximar das idéias do mestre vienense, graças sobretudo ao seu tom discretamente coloquial e falsamente impreciso. Souza não se deixa tornar refém seja do jargão filológico ou linguístico, seja do jargão psicanalítico, e substitui o tom acadêmico que um trabalho como o seu a princípio deveria ter pela ironia e, muitas vezes, pela auto-ironia.
Como o espaço é breve e não permite uma discussão detalhada, destacaremos alguns aspectos de suas críticas às edições inglesa e francesa. Deixemos também para uma outra oportunidade um debate a respeito da escolha polêmica da palavra "instinto" como correspondente de "Trieb" (impulso, pulsão ou instinto), uma posição de Souza que já vem há algum tempo rendendo discussões no meio psicanalítico.
A tradução para o inglês da palavra "Besetzung" (ocupação ou investimento) pelo neologismo "cathexis" -segundo Souza, "cunhado a partir do grego "catéchein", "ocupar'"- é tomada por diversos comentadores como exemplo paradigmático da ideologia que permeia a tradução de Strachey: uma palavra bastante comum, capaz de cobrir uma boa variedade de significados, e vertida por um neologismo que recupera um radical de uma língua morta, passando assim a adquirir um sentido exclusivamente técnico e despido de qualquer ressonância afetiva.

A OBRA
As Palavras de Freud Paulo Cesar Souza Ática (Tel. 011/867-0022) 288 págs., R$ 29,00



Acompanhando os passos dessa escolha na história da edição inglesa, Souza se depara com uma afirmação de Ernest Jones que parece resumir à perfeição o espírito da "Standard Edition": "É necessário despir as palavras de suas conotações acessórias, (...) inevitáveis numa língua falada". A preocupação excessiva com a terminologia se choca, como bem lembra o nosso autor, com um outro aspecto mais relevante da psicanálise; não se pode esquecer que esta é "uma terapia mediante a palavra falada" que "nunca poderá suprimir as conotações secundárias inerentes à língua. Os pensamentos espontâneos (...) dos pacientes ocorrem segundo a trilha dessas conotações, afinal não tão secundárias assim".
Apesar da censura que faz ao tom científico da tradução inglesa, Souza não deixa de apontar a ingenuidade e a inadequação de algumas sugestões do seus principais críticos como Ornston, Mahony e Bettelheim. Talvez por exercer também o ofício de tradutor, ele por vezes se dispõe a minimizar certos erros de Strachey (um tradutor de talento) que comprometem a escrita de Freud. Ao comentar, por exemplo, a passagem dos relatos de pacientes do tempo presente para o passado na tradução inglesa (o que lhes rouba toda sua vivacidade), Souza ameniza os resultados dessa escolha, lembrando que "os casos clínicos (...) não ocupariam mais que um volume das obras completas", deixando de mencionar que esse procedimento arbitrário estende-se a todos os relatos de sonhos presentes na "Standard Edition" (o que, de saída, já compromete por inteiro as "Conferências Introdutórias à Psicanálise" e "A Interpretação dos Sonhos") e falsifica por completo uma clara posição teórica de Freud, expressa na "Interpretação": "O presente é o tempo verbal em que o desejo é apresentado como realizado".
É na crítica à recente tradução francesa, no entanto, que o livro de Paulo César Souza atinge seu momento mais rico. Apoiado sobretudo num estudo da francesa Michèle Pollak-Cornillot sobre as traduções de trabalhos de Charcot, Bernheim e Stuart Mill realizadas por Freud, ele desmonta a tese laplanchiana de uma hiperdeterminação do sentido das palavras, o que leva os tradutores franceses a transformar termos que não possuem uma significação unívoca no original alemão em conceitos petrificados. O estudo de Pollak-Cornillot revela que Freud não padronizava a tradução de termos que depois foram incluídos em seu vocabulário "técnico"; e o pecado capital do grupo de Laplanche consiste, segundo nosso autor, em "partir de um a priori, (de) uma entidade chamada linguagem conceitual, autônoma e por vezes contrária à "linguagem comum'", ou, se se preferir, em tratar uma língua viva como se já fosse morta. A insistência na tese da univocidade da terminologia empregada por Freud visa conferir ao seu pensamento um sentido único, um abuso que será sempre fatal para um grande escritor.


André Carone é mestrando em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos.


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