São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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O sexo de Édipo

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Desde seu nascimento, a instituição psicanalítica aparece atrelada ao masculino, o que se manifesta até na nomeação de seus dogmas centrais -complexo de Édipo (e não de Electra), inveja do pênis (e jamais inveja do útero).
Assim desponta o novo saber, pensado por homens e renitente em suas desastradas tentativas, a começar pelo fundador, de dar conta das mulheres.
Não se trata aqui de psicanalisar Freud e a própria psicanálise, do que o feminismo já se encarregou em literatura que a autora conhece bem. Quem escreve é uma psicanalista clínica, que não perde de vista a suprema importância nem de Freud nem da psicanálise.
Num arco que vem desde as Luzes, já anunciador da sociedade burguesa e sua cultura, começa-se a valorizar a autonomia do sujeito, a condução do próprio destino, a aventura individual enfim, afetando o imaginário das mulheres. Mas, decidiram os ilustrados, pertencendo ao estado de natureza, elas se realizam plenamente no matrimônio. Só que elas não achavam.
A relação entre as mulheres e a feminilidade veio a se desestabilizar mediante dois modos de alienação: o primeiro as excluiu do poder político, o segundo tornou-as "o outro do discurso", segundo Lacan. Aceitando a ambos, as mulheres renunciaram ao "falo da fala". A proliferação de escritoras no século passado vai expressar os anseios e as fantasias dessas emudecidas, dando-lhes voz. O processo passa pela formação de um público feminino que lê romances e pela formação da profissão de romancista-mulher.
Confinando as mulheres no reino do privado e vetando-lhes o espaço público, o grande "deslocamento" cava um fosso entre a sina delas e os ideais da época, gerando descontentamento. Tudo isso faz parte da constituição do sujeito moderno e vai preparando candidatos a clientes: a cultura burguesa européia trará em seu bojo a psicanálise, ela também historicamente datada.
Barradas de acesso tanto à satisfação sexual quanto às vias sublimatórias, carências cujo papel se conhece na etiologia das neuroses, as mulheres surgem em cena num certo desempenho, e de tal importância para o nascimento da psicanálise, que se poderia dizer que, se Freud é o pai, as histéricas são a mãe.
É assim que, no fundo, Freud e Madame Bovary, a quem cinco capítulos são dedicados, vêm a ser os dois eixos de reflexão do livro, esta última alçada a paradigma da feminilidade oitocentista. Procurando ativamente sua identidade de mulher para quem o trono de rainha do lar é insatisfatório, vai de desgraça em desgraça e termina se suicidando: uma infeliz, tão admirada por Baudelaire que nela viu "um homem de ação".
Quanto a Freud, são passadas a limpo as dificuldades em que se enreda ao tentar definir o feminino e das quais, como ninguém ignora, nunca conseguiu se desvencilhar. Segundo a autora, porque, em vez de escutar as mulheres -sejam as clientes, como Dora, sejam as numerosas analistas suas discípulas (Marie Bonaparte, Lou Andreas Salomé etc.), por sua vez pessoas extraordinárias-, procurou definir o feminino como algo em si, e a mulher apenas como correlato da castração. Depois dele, Lacan decreta-a como algo que deseja o desejo do outro. Freud preferiu hipostasiar o mistério e, na velhice, ainda indaga no ensaio "Sobre a Feminilidade": afinal, o que é que elas querem? Enfim, embora de diferentes maneiras, tanto para Freud quanto para Lacan, cuja relevância não está em discussão, como a autora deixa bem claro, a mulher não é mais que o "outro" castrado.

A OBRA
Deslocamentos do Feminino - A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade Maria Rita Kehl Imago (Tel. 021/233-7034) 348 págs., R$ 22,00



Aqui, uma mulher e psicanalista interroga e contesta, acatando-os, corrigindo-os e adaptando-os, vários conceitos fundamentais dos sistemas de ambos a respeito de mulher, posição feminina e feminilidade, que delimita com tanto cuidado quanto galhardia. Fica-se a cogitar por que os discursos psicanalíticos, inclusive da autora, que os critica por dentro, tomaram inapelavelmente os trilhos masculinos. Pergunta-se onde teriam ido parar certos pensadores -e qual seria hoje o estatuto conferido a sua obra pela instituição psicanalítica- que se desviaram da ortodoxia para perquirir outros horizontes, atrás dos rastros até míticos de um complexo de castração derivado da inveja do útero.
Que termo de comparação pode existir para o terror existencial que deve provocar o portentoso poder de procriar de seu próprio corpo um outro ser humano? Só Deus. Dentre os pioneiros, coetâneos de Freud, Georg Groddeck foi um que se arriscou nesse rumo. E mais tarde igualmente Bruno Bettelheim, oriundo do mesmo meio terapêutico vienense, se bem que sua recente biografia por Nina Sutton mostre o quanto aí havia de mistificação. Seria bom desorganizar o consenso em torno desses conceitos fundamentais -e tão masculinos. Basta atentar para o sexo de Édipo.
A vivacidade da discussão de questões de fato básicas prende o leitor. Mesmo que a autora não abra mão -e não vejo por que deveria- do rebarbativo jargão lacaniano, que a verve de José Guilherme Merquior apodou de "lacanagem". Ressalve-se apenas uma reprodução do discurso dominante, ao afirmar que Madame du Châtelet, a amante de Voltaire, teria sido "uma das poucas que não cultivaram somente um verniz de cultura por modismo". Ora, isso é o que os homens diziam das damas intelectuais das Luzes, tachando-as de preciosas ridículas. O clichê é vetusto e recua até a mais remota Antiguidade, ressoando num ditado medieval luso: "Mula que faz hiiim/ Mulher que sabe latim/ Nunca terão boa fim".
Garra é que não lhe falta: este livro traz uma contribuição apreciável para todas aquelas, e aqueles, que estão investigando sem parti pris a feminilidade.


Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro).


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