São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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O enigma da mulher

CLEUSA PASSOS

Há muito, Walnice Nogueira Galvão persegue os rastros da donzela que se traveste e vai à guerra, substituindo o pai. Ensaios como ""Frequentação da Donzela Guerreira" (1979), ""Ciclo da Donzela Guerreira" e ""Diadorim e os Mitos do Feminino em Guimarães Rosa" (1981) prenunciavam essa trajetória que, aliada agora a uma pesquisa mais ampla, dá curso aos trabalhos anteriores, aflorando como fecho propício a novas possibilidades de leituras do tema.
Guimarães Rosa parece estar entre os responsáveis por tal atração. Diadorim, nossa mais célebre donzela-guerreira, vinculada por Cavalcanti Proença e, em seguida, Antonio Candido às personagens dos ""rimances ibéricos", ganha espaço na obra, bem como outras ""mulheres" fortes e ousadas do autor mineiro. O segundo capítulo faz predominar personagens rosianas: donzelas, companheiras, mães, viúvas, pertencentes a diferentes sagas (valquírias), lendas (amazonas), mitos (Palas Atena, Atlanta) ou história (Joana D'Arc, Anita Garibaldi, Simone Weil), reunidas pelo traço primordial de suas existências: a coragem da transgressão.
A guerreira que se apossa do ""papel masculino" ultrapassa os elos da tradição literária, acabando por determinar, atrás do ""senso de missão" (camuflagem do desejo?), uma das questões-chave de todo sujeito: a ambivalência masculino/feminino e seus vínculos com a realidade social, já tratada por Freud no artigo ""A Feminilidade". Este texto é criticado pela autora, mas é ponto de encontro entre ambos, pois, para além da prática do divã, as pesquisas feitas por Walnice Galvão comprovam costumes e contestações, que há muito configuram um dos enigmas do feminino.
Como obliterar o ""par escamoteado" que estabelece simetrias entre pai/maduro-filha/morta (ou relações contrárias entre mãe e filho), porque proibido ou esquecido? Como abdicar da idéia do ""eterno feminino" ou do que lhe foi negado/ocultado pelo mundo masculino? Como perceber os efeitos da diferença que marcam a mulher e seu enigma? A pluralidade de conhecimentos e experiências alheias compõe a trajetória adotada, no sentido de permitir ao leitor perceber peculiaridades e ambivalências que o intrigam e lhe escapam.
Logo, o enfoque de Walnice Galvão é diverso, por exemplo, das obras de Michelle Perrot ou Mary Del Priore sobre a história das mulheres, porque se apodera de fontes díspares, reunindo relatos históricos à ficção nacional e estrangeira. A cada momento, vêem-se grupos envoltos em magia, folclore ou episódios factuais, até algo próximo de nosso cotidiano: o carnaval e suas fantasias, em que o homem em roupas femininas, resguardado pela liberação e inversão geral, lembra situações arcaicas (Aquiles, Dioniso, Tirésias, sacerdotes devotados ao culto da grande mãe mediterrânica etc.), vivenciando a indagação: ""Por que tantos homens e mulheres se disfarçam?".
Por meio da donzela-guerreira, uma das modalidades do feminino e de um imaginário que, por vezes, escamoteia a história, a autora toca um traço insolúvel da condição humana: como responder ao desejo -irrealizável e indestrutível? A perspectiva metodológica, que repousa sobre pesquisa diversificada, faz sua busca deter-se mais nas facetas e desdobramentos da guerreira que em sua donzelice, coletando informações dispersas, a fim de justificar, na linha do tempo, sua atuação transgressora.
Não se trata aqui de mera defesa feminista (embora se esbocem traços dela), mas sobretudo de marcar o papel subversivo da mulher -pouco visível, pois de menor repercussão nos quadros dos grandes fatos históricos- em momentos significativos e pontuais que, sublinhados pela autora, ganham sintomática visibilidade.
O referido artigo de Freud -apesar das posições comprometedoras que privilegiam, em certas passagens, o imaginário masculino e conservador (descontando-se, porém, o contexto e as modalizações do psicanalista)- contém algo que vem ao encontro da posição da autora. Freud reconhece, no que concerne à sexualidade humana, a impossibilidade de se caracterizar, de modo inequívoco, o comportamento feminino por atos passivos e o masculino por ativos, chegando a confessar ignorância diante do ""mistério da feminilidade".
Ora, Walnice Galvão sublinha tais limites e, subrepticiamente, os discute a ponto de nomear o último capítulo ""Arremate: O Enigma", terminando-o com a transcrição de um instigante conto machadiano (""As Academias de Sião"), no qual o par troca de papéis, pois o rei é menos viril e empreendedor que a amada. Curiosamente, também Freud finaliza seu polêmico ensaio delegando aos poetas e à posteridade a função de descobrir o que lhe escapa a respeito da mulher.

A OBRA
A Donzela Guerreira Walnice Nogueira Galvão Ed. do Senac (Tel.011/884-8122) 247 págs., R$ 29,00



Embora Walnice a considere relegada a segundo plano, a permanente interrogação apoiada nas relações edípicas e no brilho oculto do querer feminino assinala estudos de múltiplas vertentes: não custa lembrar que Lacan recupera Antígona em suas reflexões sobre a ética da psicanálise. Outra hipótese da autora a provocar debates está na constituição da donzela-guerreira como fantasia mais masculina que feminina: tais posturas engendram impasses que, junto às pesquisas, tornam a obra fecunda e instigante.
Impressiona ainda seu largo campo de investigação: dados provindos de domínios díspares e por vezes de integração polêmica, a saber, literatura, história, sociologia, antropologia etc., mesclam-se no intuito de apreender esse imaginário sedutor que se estende da balada anônima da Mu-Lan chinesa às consideradas modernas guerreiras de nosso século (Patrícia Hearst ou Angela Davis). Cruzam-se, portanto, tons e visões diversos na compilação de ""crônicas históricas", aliadas a passagens literárias saborosas. De Taunay a Clarice e Rosa, incluindo Domingos Olimpio, Mário, Drummond, Virginia Wolf etc., as personagens femininas vão dominando textos de patamares também desiguais, delineando-se ambiguamente e preservando singularidade e resistência -ponto crucial da analogia. Nos outros campos, transita-se da mitologia grega a lendas indígenas e candomblé, da historiografia de Rocha Pita à de Sérgio Buarque de Holanda, tendo-se paralelamente acesso a documentos e ao intencional diálogo entre ""realidade" e ficção.
Persistência e transformação: eis o traço maior da moça-guerreira, percebida aqui por um olhar perquiridor que seleciona escritos para, sob o nome de ""Convergências Textuais", estabelecer associações com o eixo do livro. À primeira vista, tal cadeia informativa cria certa dificuldade quanto à fluência da leitura, em função de longas notas. No entanto, a interrupção permite o peculiar jogo interdisciplinar de tais passagens, delegando também ao leitor a articulação de diversidades e similitudes concernentes ao tema.
""A Donzela Guerreira" é um trabalho para estudiosos que respeita um imaginário amplo e popular. Se George Sand intrigava a Europa, Chiquinha Gonzaga nos encanta até hoje; se Lang ou Eisenstein rememoram, em encenações, traços da donzela, a cinematografia bem menos erudita adaptou recentemente as trilhas de Mu-Lan, cuja máscara hoje encobre as faces das crianças que revivem antigas tradições -e aí a permanência ultrapassa o possível ""apequenamento" de seu perfil! Há muito tempo livros infanto-juvenis se agregam aos literalmente consagrados, revisitando tal fantasia, e lembro que, ao reencontrar Diadorim, retornam-me sempre velhas façanhas de ""O Sargento Verde", narrativa anônima de uma moça vestida de guerreiro para substituir o velho pai.
Tais fatos, dispersos no tempo, reforçam a importância do livro e minimizam as virtuais disparidades das ""convergências", que, por outro lado, iluminam ângulos inesperados da temática e contemplam a condição bissexual de todos. Graças à opção do viés particular de leitura, a donzela guerreira descortina, à semelhança de sua figura, o enigma das sociedades que devem conviver com a ambivalência da sexualidade e dos desejos humanos, em constante luta com interditos cristalizados.


Cleusa Rios P. Passos é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de ""O Outro Modo de Mirar" (Martins Fontes) e ""Confluências: Crítica Literária e Psicanálise" (Edusp/Nova Alexandria).


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