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O enigma da mulher
CLEUSA PASSOS
Há muito, Walnice Nogueira Galvão persegue
os rastros da donzela
que se traveste e vai à
guerra, substituindo o pai. Ensaios como ""Frequentação da
Donzela Guerreira" (1979), ""Ciclo da Donzela Guerreira" e
""Diadorim e os Mitos do Feminino em Guimarães Rosa" (1981)
prenunciavam essa trajetória que,
aliada agora a uma pesquisa mais
ampla, dá curso aos trabalhos anteriores, aflorando como fecho
propício a novas possibilidades de
leituras do tema.
Guimarães Rosa parece estar entre os responsáveis por tal atração.
Diadorim, nossa mais célebre
donzela-guerreira, vinculada por
Cavalcanti Proença e, em seguida,
Antonio Candido às personagens
dos ""rimances ibéricos", ganha
espaço na obra, bem como outras
""mulheres" fortes e ousadas do
autor mineiro. O segundo capítulo
faz predominar personagens rosianas: donzelas, companheiras,
mães, viúvas, pertencentes a diferentes sagas (valquírias), lendas
(amazonas), mitos (Palas Atena,
Atlanta) ou história (Joana D'Arc,
Anita Garibaldi, Simone Weil),
reunidas pelo traço primordial de
suas existências: a coragem da
transgressão.
A guerreira que se apossa do
""papel masculino" ultrapassa
os elos da tradição literária, acabando por determinar, atrás do
""senso de missão" (camuflagem do desejo?), uma das questões-chave de todo sujeito: a ambivalência masculino/feminino e
seus vínculos com a realidade social, já tratada por Freud no artigo
""A Feminilidade". Este texto é
criticado pela autora, mas é ponto
de encontro entre ambos, pois,
para além da prática do divã, as
pesquisas feitas por Walnice Galvão comprovam costumes e contestações, que há muito configuram um dos enigmas do feminino.
Como obliterar o ""par escamoteado" que estabelece simetrias
entre pai/maduro-filha/morta (ou
relações contrárias entre mãe e filho), porque proibido ou esquecido? Como abdicar da idéia do
""eterno feminino" ou do que
lhe foi negado/ocultado pelo
mundo masculino? Como perceber os efeitos da diferença que
marcam a mulher e seu enigma? A
pluralidade de conhecimentos e
experiências alheias compõe a trajetória adotada, no sentido de permitir ao leitor perceber peculiaridades e ambivalências que o intrigam e lhe escapam.
Logo, o enfoque de Walnice Galvão é diverso, por exemplo, das
obras de Michelle Perrot ou Mary
Del Priore sobre a história das mulheres, porque se apodera de fontes díspares, reunindo relatos históricos à ficção nacional e estrangeira. A cada momento, vêem-se
grupos envoltos em magia, folclore ou episódios factuais, até algo
próximo de nosso cotidiano: o
carnaval e suas fantasias, em que o
homem em roupas femininas, resguardado pela liberação e inversão
geral, lembra situações arcaicas
(Aquiles, Dioniso, Tirésias, sacerdotes devotados ao culto da grande mãe mediterrânica etc.), vivenciando a indagação: ""Por que
tantos homens e mulheres se disfarçam?".
Por meio da donzela-guerreira,
uma das modalidades do feminino
e de um imaginário que, por vezes, escamoteia a história, a autora
toca um traço insolúvel da condição humana: como responder ao
desejo -irrealizável e indestrutível? A perspectiva metodológica,
que repousa sobre pesquisa diversificada, faz sua busca deter-se
mais nas facetas e desdobramentos da guerreira que em sua donzelice, coletando informações dispersas, a fim de justificar, na linha
do tempo, sua atuação transgressora.
Não se trata aqui de mera defesa
feminista (embora se esbocem traços dela), mas sobretudo de marcar o papel subversivo da mulher
-pouco visível, pois de menor repercussão nos quadros dos grandes fatos históricos- em momentos significativos e pontuais que,
sublinhados pela autora, ganham
sintomática visibilidade.
O referido artigo de Freud
-apesar das posições comprometedoras que privilegiam, em certas
passagens, o imaginário masculino e conservador (descontando-se, porém, o contexto e as modalizações do psicanalista)- contém algo que vem ao encontro da
posição da autora. Freud reconhece, no que concerne à sexualidade
humana, a impossibilidade de se
caracterizar, de modo inequívoco,
o comportamento feminino por
atos passivos e o masculino por
ativos, chegando a confessar ignorância diante do ""mistério da
feminilidade".
Ora, Walnice Galvão sublinha
tais limites e, subrepticiamente, os
discute a ponto de nomear o último capítulo ""Arremate: O Enigma", terminando-o com a transcrição de um instigante conto machadiano (""As Academias de
Sião"), no qual o par troca de papéis, pois o rei é menos viril e empreendedor que a amada. Curiosamente, também Freud finaliza seu
polêmico ensaio delegando aos
poetas e à posteridade a função de
descobrir o que lhe escapa a respeito da mulher.
A OBRA
A Donzela Guerreira
Walnice Nogueira Galvão
Ed. do Senac (Tel.011/884-8122)
247 págs., R$ 29,00
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Embora Walnice a considere relegada a segundo plano, a permanente interrogação apoiada nas
relações edípicas e no brilho oculto do querer feminino assinala estudos de múltiplas vertentes: não
custa lembrar que Lacan recupera
Antígona em suas reflexões sobre
a ética da psicanálise. Outra hipótese da autora a provocar debates
está na constituição da donzela-guerreira como fantasia mais
masculina que feminina: tais posturas engendram impasses que,
junto às pesquisas, tornam a obra
fecunda e instigante.
Impressiona ainda seu largo
campo de investigação: dados
provindos de domínios díspares e
por vezes de integração polêmica,
a saber, literatura, história, sociologia, antropologia etc., mesclam-se no intuito de apreender
esse imaginário sedutor que se estende da balada anônima da
Mu-Lan chinesa às consideradas
modernas guerreiras de nosso século (Patrícia Hearst ou Angela
Davis). Cruzam-se, portanto, tons
e visões diversos na compilação de
""crônicas históricas", aliadas a
passagens literárias saborosas. De
Taunay a Clarice e Rosa, incluindo
Domingos Olimpio, Mário,
Drummond, Virginia Wolf etc., as
personagens femininas vão dominando textos de patamares também desiguais, delineando-se ambiguamente e preservando singularidade e resistência -ponto
crucial da analogia. Nos outros
campos, transita-se da mitologia
grega a lendas indígenas e candomblé, da historiografia de Rocha Pita à de Sérgio Buarque de
Holanda, tendo-se paralelamente
acesso a documentos e ao intencional diálogo entre ""realidade"
e ficção.
Persistência e transformação: eis
o traço maior da moça-guerreira,
percebida aqui por um olhar perquiridor que seleciona escritos para, sob o nome de ""Convergências Textuais", estabelecer associações com o eixo do livro. À primeira vista, tal cadeia informativa
cria certa dificuldade quanto à
fluência da leitura, em função de
longas notas. No entanto, a interrupção permite o peculiar jogo interdisciplinar de tais passagens,
delegando também ao leitor a articulação de diversidades e similitudes concernentes ao tema.
""A Donzela Guerreira" é um
trabalho para estudiosos que respeita um imaginário amplo e popular. Se George Sand intrigava a
Europa, Chiquinha Gonzaga nos
encanta até hoje; se Lang ou Eisenstein rememoram, em encenações, traços da donzela, a cinematografia bem menos erudita adaptou recentemente as trilhas de
Mu-Lan, cuja máscara hoje encobre as faces das crianças que revivem antigas tradições -e aí a permanência ultrapassa o possível
""apequenamento" de seu perfil!
Há muito tempo livros infanto-juvenis se agregam aos literalmente
consagrados, revisitando tal fantasia, e lembro que, ao reencontrar Diadorim, retornam-me sempre velhas façanhas de ""O Sargento Verde", narrativa anônima
de uma moça vestida de guerreiro
para substituir o velho pai.
Tais fatos, dispersos no tempo,
reforçam a importância do livro e
minimizam as virtuais disparidades das ""convergências", que,
por outro lado, iluminam ângulos
inesperados da temática e contemplam a condição bissexual de
todos. Graças à opção do viés particular de leitura, a donzela guerreira descortina, à semelhança de
sua figura, o enigma das sociedades que devem conviver com a
ambivalência da sexualidade e dos
desejos humanos, em constante
luta com interditos cristalizados.
Cleusa Rios P. Passos é professora de teoria
literária e literatura comparada na USP e autora
de ""O Outro Modo de Mirar" (Martins Fontes) e
""Confluências: Crítica Literária e Psicanálise"
(Edusp/Nova Alexandria).
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