São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Tudo começou tão mal

FLÁVIA SCHILLING

A ineficácia do mecanismo judicial para garantir os direitos de todos os indivíduos não resulta apenas de uma situação disfuncional e passageira: além de causas mais imediatas, há problemas que resultam do formato institucional que o Judiciário adquiriu no Brasil. "Somos herdeiros de uma república que começou tão mal!", exclamou Seabra Fagundes, durante a discussão sobre o impeachment de Collor. Segundo Koerner, nossa formação social teve efeitos permanentes sobre a forma de organização do Poder Judiciário, a prática judicial e os direitos civis, comprometendo as promessas republicanas e democráticas.
Ao analisar a política judiciária brasileira do Império à Primeira República, Koerner identifica as características institucionais do Poder Judiciário, apresentando-as como o resultado de estratégias políticas de construção institucional adotadas pelas elites, como forma particular de organização inserida numa determinada estrutura de poder e como determinado tipo de mediação dos conflitos sociais e, dessa forma, de integração da sociedade que reproduz a desigualdade e a exclusão.
Certas continuidades na forma de organização judiciária brasileira resultaram de determinada política judiciária, que revela seu sentido quando essas continuidades são confrontadas com os processos de mudança social e política na passagem da sociedade imperial e escravista à republicana e fundada no trabalho livre. Essa política judiciária produziu várias formas de exclusão.
No Segundo Reinado, o Poder Judiciário distinguia-se apenas funcionalmente do poder imperial. A magistratura constituía a forma privilegiada de ingresso na carreira política, exercendo um papel de mediadora entre o poder central e as localidades. O objetivo da mediação judicial dos conflitos era a manutenção da estabilidade da sociedade escravista, reproduzindo e recriando um antagonismo inerente, pois, juridicamente, a escravidão era uma exceção criada pela lei positiva, contrária ao direito natural e aos princípios gerais do direito civil.
A mediação dos conflitos pelo mecanismo judicial tinha seu alcance limitado pela organização social e incidia de maneira diferenciada sobre as diferentes categorias sociais. Havia a exclusão de indivíduos com capacidade jurídica limitada (escravos, mulheres, filhos e outros dependentes) e de indivíduos sujeitos às jurisdições privilegiadas, os funcionários superiores do Estado, ou às especiais, como a eclesiástica e a militar. Boa parte dos homens livres era excluída da jurisdição comum, pois a punição judicial incidia principalmente sobre os homens livres e pobres.
O capítulo que trata do Poder Judiciário na crise da sociedade escravista e que tem como eixo a análise da reforma judiciária de 1871 pode ser considerado central por mostrar, de forma paradigmática, como foram instrumentalizadas as continuidades no seio das mudanças, estabelecendo-se, assim, uma ligação até hoje dilemática entre o passado e o presente.

A OBRA
Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira Andrei Koerner Departamento de Ciência Política da USP/Hucitec (Tel. 011/530-4532) 279 págs., R$ 22,00



No debate entre liberais e conservadores sobre a reforma de 1871, Koerner recupera as propostas sobre o Judiciário, indicando que -embora do ponto de vista do conteúdo social não houvesse diferenças significativas entre esses setores- revelavam uma diferença fundamental quanto aos mecanismos de controle social: para os liberais, os juízes eram agentes ativos da incorporação dos indivíduos como cidadãos; para os conservadores, mantinham seu papel tradicional, distanciado dos conflitos, servindo como corretivo dos abusos da autoridade sem correr o risco de enfraquecê-la.
As críticas liberais ao inquérito, à prisão preventiva e às restrições ao "habeas corpus" mostram que havia uma diferença específica entre eles e os conservadores sobre a extensão do mecanismo judicial nas práticas de controle social. Na transição do trabalho escravo ao livre, essa diferença era fundamental para a determinação do sentido concreto da cidadania, ou seja, da eficácia dos direitos civis dos indivíduos livres e pobres e das suas relações com as instituições estatais, judiciárias e policiais.
Porém, na reforma de 1871, predominaram as propostas dos ministros conservadores, gerando uma determinada relação entre a atividade judicial, a atividade policial e a cidadania que persiste até hoje. A manutenção de atribuições discricionárias da polícia, sem controle judicial, consistiu numa escolha política consciente, explicitamente reconhecida pelos defensores conservadores da reforma judiciária. Essa escolha implicou uma espécie de estado de sítio permanente para os indivíduos livres e pobres, cujas garantias civis ficaram suspensas indefinidamente, estando eles sujeitos a procedimentos de controle policial. Ao mecanismo judicial, exercido por juízes profissionais, foi atribuído um papel apenas mediato, uma ação corretiva dos excessos.
Na organização constitucional da República (1889-1991), o debate centrou-se no controle do Judiciário pelos Estados e nos interesses corporativos dos magistrados. Manteve-se a forma de organização do período imperial, que inseria o Judiciário no sistema de compromissos do coronelismo. Baseando-se em dados sobre prisões na época, Koerner revela a ênfase nas formas repressivas na resolução de conflitos, em detrimento da ampliação dos meios judiciários à disposição da população, permanecendo restrita a eficácia das garantias judiciais aos direitos civis, formalmente enunciados pela lei, agora republicana.


Flávia Schilling é doutora em sociologia pela USP e autora de "Corrupção: Ilegalidade Intolerável? Comissões Parlamentares de Inquérito e Luta contra a Corrupção no Brasil -1980-1992" (IBC-Crim, no prelo).


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