São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Inverter a revolução passiva

ALBERTO AGGIO

Na história das sociedades algumas idéias-força ganham, por vezes, a tenacidade de imperativos categóricos. Invariavelmente, tais proposições são identificadas como catalisadores capazes de orientar mudanças essenciais na vida coletiva e individual. Nos dias que correm, a "reforma do Estado" parece ser a idéia-força prevalecente, com a capacidade de galvanizar o debate intelectual e se consubstanciar em guia para a maioria dos problemas.
É essa atualidade e mais a capacidade crítica e analítica que define todo o viço de "As Possibilidades da Política". Derivado de uma tese de livre-docência, o livro assume uma significação muito além da acadêmica: problematiza as possibilidades de se pensar e construir uma política democrática que fundamente a reforma do Estado brasileiro, em contraposição ao "neoliberalismo ainda hoje vencedor". O texto procura realizar essa discussão a partir de uma pauta situada nos fundamentos teóricos, históricos e políticos que envolvem a questão da reforma do Estado.
A premissa dessa leitura não poderia partir da idéia de uma reforma do Estado alocada exclusivamente na sua dimensão funcional: esta seria essencialmente uma reforma "fiscal-financeira", uma "reforma fraca", formal e quantitativa. Para Marco Aurélio, estas proposições de tipo "minimalista" não favorecem "a definição de um padrão superior de intervenção estatal", não melhoram o "desempenho estatal" nem facilitam a "constituição consistente de gestores tecnicamente atualizados e radicalmente dedicados ao que é público".
Pensar a reforma do Estado de modo mais consequente demandaria, portanto, uma outra mirada. Marco Aurélio trabalha essencialmente a partir das formulações gramscianas vinculadas à temática da "revolução passiva". Segundo essa abordagem, nós brasileiros somos "protagonistas de revoluções sem revolução", isto é, de processos sucessivos e progressivos de transformações moleculares da estrutura material que mudaram nossa história sem nunca deixar de reservar espaço e garantir poder às forças sociais anteriormente dominantes. O Estado brasileiro foi sempre o "locus" dessa recomposição e, por essa razão, carrega consigo uma "natureza híbrida e diádica". Nessa leitura, o Estado brasileiro emerge como forte e fraco simultaneamente, núcleo da conservação e das possibilidades de renovação. Instância de permanentes conciliações, nunca se constitui como autenticamente republicano e moderno.
Num contexto definido por esse padrão histórico e político, os governantes e dirigentes de inclinações democráticas estão desafiados pela pergunta: como pensar então uma reforma do Estado que requalifique sua relação com a sociedade? No momento em que vivemos, novamente o cenário e os protagonistas de uma "revolução passiva" se impõem diante da "fortuna" da sociedade brasileira. Polarizada pela temática da reforma do Estado, o núcleo da conjuntura se move a partir dos seguintes parâmetros: "Ou a sociedade civil se reorganiza politicamente e assume o desafio de reformar o Estado, de fazer com que ele trabalhe para ela, ou a reforma do Estado (...) não conseguirá se desvencilhar da alternativa de reducionismo quantitativo e autoritarismo ilustrado em que tem vivido".

A OBRA
As Possibilidades da Política - Idéias para a Reforma Democrática do Estado Marco Aurélio Nogueira Paz e Terra (Tel. 011/223-6522) 306 págs., R$ 25,00



Para que se imponha uma alternativa de selo positivo a essa disjuntiva, há que se reinventar a política. Não a partir de uma "hora zero", e sim da política realmente existente, potencializando a "síntese de novas formas de organização e participação e de novas formas de representação e decisão". Uma reinvenção que leve a sociedade para dentro da vida política, inverta todo o desprestígio que se imputou a essa dimensão da vida social e estabeleça um nexo forte entre governabilidade e "democracia progressiva". Só assim se poderá governar processando demandas e fixando políticas voltadas para colocar o Estado a serviço e sob o controle da sociedade.
Este é o sentido que Marco Aurélio atribui às possibilidades de construção de uma renovada "democracia de massas". Ao nosso ver, isso não poderia ser caracterizado como o programa de uma "revolução", no sentido convencional da palavra. Seria por assim dizer um projeto político para "rovesciare la rivoluzione pasiva", ou seja, fazer com que ela se revolva profundamente e "se ponha de pé", ganhe um outro sentido e uma nova direção. Em suma, um reformismo forte a demandar, entre outras coisas, um novo tipo de intelectual: "Um agente de atividades gerais que é portador de conhecimentos específicos, um especialista que também é político e que sabe não só superar a divisão intelectual do trabalho como também reunir em si "o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade'".
Diferentemente do que se tem pensado, a participação ativa da sociedade na vida política não se configura obrigatoriamente em fator de ingovernabilidade. Ela abre possibilidades enormes que, abordadas pela "virtú" dos atores, poderão trazer um novo sentido para o valor ideal da democracia. Processo em curso, o caso da política italiana recente é um exemplo emblemático.
Em suma, a reforma do Estado demanda, para ser renovadora, uma grande política. No Brasil, ela pede que os atores políticos se renovem e promovam mudanças no sistema político, abrindo passagem para uma "reforma social da democracia" e colocando o Estado a serviço dos cidadãos. Como conclui o autor, essa talvez seja a melhor maneira de se retomar o vínculo entre uma política de esquerda e a questão das reformas.


Alberto Aggio é professor de história da Universidade Estadual Paulista (Franca).


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