São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Nosso romance de resistência

CELSO FREDERICO

A literatura brasileira pós-64 recebe agora, neste oportuno livro, um tratamento globalizante. O autor recobre o período ditatorial, procurando explicitar as relações entre literatura e política. Sob o impacto do terrorismo de Estado e o olhar ameaçador da censura, os escritores viviam a difícil situação de ter de denunciar, em suas obras, a nova realidade.
A ditadura, até a promulgação do AI-5, preocupou-se em reprimir basicamente o chamado "dispositivo militar-sindical" que dera sustentação ao governo reformista de Goulart. Assim, nos primeiros anos, a resistência ao regime deslocou-se para a pequena burguesia intelectualizada, que, apesar de tudo, gozava de relativa liberdade e soube muito bem como usá-la. Das denúncias contra a nova ordem às passeatas estudantis, e destas à guerrilha urbana, ela chamou a si a tarefa de derrubar a ditadura.
Nesse contexto, os escritores procuraram se engajar na resistência, ao mesmo tempo literária e política. Boa parte dos romancistas do período eram jornalistas profissionais: Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Fernando Gabeira, Ivan Angelo, Renato Pompeu, Ignácio de Loyola Brandão etc. Em sua prática literária, incorporaram os recursos do jornalismo, numa conjuntura histórica de rápida afirmação da indústria cultural em nosso país.
O ponto de partida que serviu de inspiração a Renato Franco parece ter sido um texto de Davi Arrigucci Jr., "Jornal, Realismo, Alegoria: O Romance Brasileiro Recente" (in "Achados e Perdidos", Polis), voltado para a crítica da produção literária dos anos 70. Esse texto indaga sobre os resultados da influência do jornalismo na literatura, concluindo que foram mais negativos que positivos, pois o romance-reportagem, resvalando para o neonaturalismo, "naufraga na singularidade". O desejo de verossimilhança, de retratar e, ao mesmo tempo, denunciar a opressiva realidade brasileira, levou os escritores-jornalistas a tomar em suas obras um fato singular qualquer e, com ele, aludir à situação geral. Mas isso, conclui Arrigucci, gerou a "incompatibilidade entre esse desejo de representar a realidade histórica e a tendência da alegoria para a abstração". Idéia semelhante foi defendida por Flora Sussekind: "Passa-se do caso singular à totalidade bem rápido. E graças a uma via segura: a alegoria".
Tais críticas retomam a analogia lukacsiana entre naturalismo e arte de vanguarda. E, contra elas, volta-se Renato Franco. Apoiado em Benjamin, Adorno e Marcuse, faz uma apaixonada defesa da arte de vanguarda, procurando, consequentemente, demarcar sua posição em relação aos demais autores que estudaram a literatura do período.
Esse é o espírito que conduz o texto. Seguindo Benjamin, o autor recusa a concepção da história como movimento progressivo. O dialético, diz ele, "elabora tênues constelações literárias na noite da história: ele torna evidentes, por assim dizer, as "afinidades eletivas" entre os romances de cada conjuntura histórica". Em vez da organização do livro em capítulos, "demasiadamente rígida para expressar a natureza efêmera dessas constelações literárias", Franco prefere a forma de movimentos para apresentar o material pesquisado.
O primeiro movimento abarca o período 1964-69. Duas tendências literárias fizeram-se então presentes: o "romance de impulso político", voltado para a resistência à ditadura, e o "romance de desilusão urbana", expressão da modernização do país e das transformações vividas pela classe média. A primeira tendência é representada por "Quarup", de Callado, e "Pessach: A Travessia", de Cony; a segunda, por "Engenharia do Casamento" e "Paixão Bem Temperada", ambos de Esdras do Nascimento, "Bebel que a Cidade Comeu", de Loyola Brandão, e "Curral dos Crucificados", de Rui Mourão. Nesses romances, a análise cuidadosa do crítico realça a utilização de procedimentos técnicos como a montagem (cartazes, manchetes de jornais, notícias, técnicas de cinema, rádio e televisão), interpretando essa "linguagem de prontidão" como expressão da crise do romance na tentativa de concorrer com os meios de comunicação de massa.
O segundo movimento estuda o "romance da cultura da derrota", presente no período 1969-1974. O autor destaca -"mais por seus defeitos do que por suas virtudes"- três livros de 1971 -"Combati o Bom Combate", de Ari Quintella, "Os Novos", de Luis Vilela, "Bar Don Juan", de Antonio Callado- e "Cidade Calabouço", de Rui Mourão, de 1973. O fracasso da guerrilha urbana separou a vida literária do engajamento político: os novos personagens são os frequentadores de bar que tagarelam sobre os impasses da política e a inutilidade da literatura...

A OBRA
Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa Renato Franco Ed. da Unesp (Tel. 011/232-7171) 240 págs., R$ 28,00



O período da abertura política (1975-1979) viu surgir formas diferenciadas de expressão literária. Inicialmente, as memórias e depoimentos dos militantes sobreviventes da guerrilha: "Em Câmara Lenta", de Renato Tapajós, "O Que é Isso Companheiro?", de Fernando Gabeira, e o temporão "Os Carbonários", de Alfredo Sirkis. O relativo clima de liberdade tornou viável o romance-documental, empenhado na denúncia da repressão, como é o caso de "Os Que Bebem Como os Cães", de Assis Brasil.
Finalmente, afirma-se um tipo de romance mais elaborado, herdeiro das conquistas formais da vanguarda, que tematiza os efeitos da modernização conservadora, a repressão e a subjetividade ameaçada. "Zero", de Loyola Brandão, "Reflexos do Baile", de Callado, e "Cabeça de Papel", de Paulo Francis, são os exemplos citados. No interior desta última tendência, o autor vislumbra alguns cumes luminosos, que revelariam a emergência de uma nova consciência narrativa: "Quatro Olhos", de Renato Pompeu, "Armadilha para Lamartine", de Carlos & Carlos Sussekind, e, principalmente, "A Festa", de Ivan Angelo. A análise cuidadosa deste último romance é o ponto alto da obra de Renato Franco: é aí que se concentra todo o arsenal teórico mobilizado pelo autor para defender a nova consciência narrativa e as técnicas empregadas pela vanguarda.
Uma empreitada tão abrangente como essa sempre é passível de alguns reparos. Há, no livro, um descompasso entre a apaixonada defesa da arte de vanguarda e o ralo material produzido naqueles infelizes anos 70. Talvez por isso o teórico da literatura e o crítico permaneçam numa relação tensa. Em vários momentos, o autor faz digressões eruditas sobre a teoria da alegoria e as técnicas de montagem; mas estas permanecem numa relação de exterioridade com o material literário trabalhado. A teoria não brota das entranhas da ficção: é um molde "a priori" vagando atrás de objetos para ser confirmada; em outros momentos, contrariamente, as passagens de um romance servem de pretexto para refinadas explanações teóricas.
Um outro descompasso encontra-se na própria relação entre a ficção literária do período, que desejava ser realista, e a vida real. Enquanto os romancistas, tomados por um surto tardio de pessimismo pós-industrial, concentravam sua atenção na defesa da subjetividade dos personagens ameaçada pelo processo de modernização, este, silenciosamente, dava à luz um fato político novo: o reaparecimento do movimento operário com as greves iniciadas em 1973-74.
A progressiva ascensão dos trabalhadores na vida do país fez-se acompanhar de uma intensa atividade cultural (poesia, música, teatro, relatos, contos etc.) de escasso valor estético, mas de grande valor cultural (para tratar desse assunto, a referência maior continua sendo Gramsci). Os operários fabris ainda não adquiriram direitos de cidadania na República das Letras. As "Crônicas da Vida Operária", de Roniwalter Jatobá (1979) -que não passaram despercebidas ao júri da Casa de las Americas e que, segundo avaliação de Renato Pompeu, na época, era o que de mais interessante havia-, é um fato a contrapelo em nossa história literária. Deveria, por isso, ter merecido um espaço no belo livro de Renato Franco.


Celso Frederico é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de "Lukács, um Clássico do Século 20" (Moderna).


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