São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Antropologia e cultura nacional

GUSTAVO SORÁ


Ao se doutorar em antropologia social, um aluno do Museu Nacional pode se tornar um "expert" nas obras de Wagley, Nimuendajú, Lévi-Strauss ou outro etnólogo reconhecido. Mas, durante sua conversão à profissão, dificilmente ele gastou tempo percorrendo as salas do velho prédio imperial tombado. Essa dicotomia entre erudição livresca e amnésia de posição, dissecção das leituras de seu tempo e espaço de realização, teoria e prática, evidencia um estado da antropologia e corresponde a esquemas de percepção gestados na própria legitimação das ciências, na transmissão das "heranças culturais", na elaboração de uma educação que, por isso, ainda pode ser retratada como "bacharelesca". Um estudo como o de Grupioni luta por mudar tais inércias intelectuais interessadas.
Ao buscar compreender o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas (CFE), Grupioni alongou o circunscrito espaço dos textos de um conjunto de etnólogos consagrados para observar os indivíduos nos bastidores da pesquisa. Se o trabalho de campo forma o emblema identitário dos antropólogos, os esforços mobilizados por esses especialistas para concretizar suas viagens e experiências de colheita de informações encaminham para práticas, redes de relações, competências, competições, enfim, condições de possibilidades diferenciais para construir um lugar no espaço disciplinar.
As energias condensadas em tais ocasiões e, de um modo particular, a negociação de recursos permitem reconstituir aspectos centrais das trajetórias pessoais dos cientistas e do meio institucional circundante. Ao incorporar este ponto de vista, Lévi-Strauss e seu "Tristes Trópicos", por exemplo, podem ser compreendidos com maior densidade, distanciados do senso comum que costuma baratear autores, livros e temas obrigatórios do panteão.
Criado em 1933, o CFE foi um órgão a mais dentre os inúmeros montados pela burocracia varguista nos processos de concentração de funções e poderes que cimentaram o Estado nacional. Com sede na capital do país, essa instituição foi, em seu início, conformada por renomados representantes dos principais setores científicos. Antes de ancorar o contexto da instituição no varguismo, o autor relaciona sua gênese às dinâmicas de formação de um campo de agentes e instituições que, desde o começo do século, procuraram controlar os conhecimentos e destino das populações indígenas ""brasileiras". Mas as funções centrais do CFE estiveram intimamente ligadas aos anos 30: o controle do território, a delimitação e inculcação da fronteira nacional/estrangeiro, a patrimonialização da genuína ""cultura brasileira" mediante a seleção étnica, sua teorização e a planificação da população.
A crença na proletarização dos índios ou seu extermínio pelo inexorável avanço da indústria e do progresso, incentivaram sua tutela. Segundo o pensamento da época, seriam os últimos anos em que se poderia fazer o estudo e a coleta das culturas materiais desses povos. Essas nobres ações resgatariam os vestígios dos descendentes dos ""primeiros brasileiros". O colecionismo e o museu seriam a prática e o lugar para preservar aquele prístino patrimônio e torná-lo, mediante sua exibição, de todos.

A OBRA
Coleções e Expedições Vigiadas - Os Etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil Luis Donisete Benzi Grupioni Hucitec (Tel. 011/530-4532) 342 págs., R$ 24,00



O CFE regulamentou a possibilidade de que brasileiros ""pessoas físicas" ou pesquisadores estrangeiros pudessem colecionar traços dos ""silvícolas" nacionais para os projetos universalistas de museus em outros territórios. Sem impedir tal prática, o CFE fez com que cada etnólogo estrangeiro tivesse que solicitar autorização para realizar expedições no país. Ao finalizar sua estadia, qualquer objeto que o expedicionário quisesse transportar além das fronteiras tinha que ser vistoriado e negociado no órgão de governo, onde se visava a partilha das coleções com os museus brasileiros interessados, como o Museu Nacional, o Museu Goeldi e o Museu Paulista.
Licenciar e fiscalizar eram as coordenadas de trabalho no CFE. Muitos são os efeitos para o desenvolvimento da antropologia e para a definição de um patrimônio cultural da nação, que Grupioni desvenda com a análise desse labirinto burocrático. Significativos são os aportes para os estudos da circulação internacional de bens culturais, dos movimentos migratórios -no caso dos cientistas-, para compreender o mundo de problemas e violências simbólica e física que enfrenta a definição de alguém ou alguma coisa como estrangeiro ou nacional. Com leituras como essa, conhecemos novas facetas de como a nação se constrói com o internacional, no jogo, vaivém e disputas entre o particular e o universal.
Para avançar sistematicamente, além de escolher a tribo dos etnólogos, Grupioni fixou a indagação em casos de expedições realizadas por Charles Wagley, William Lipkind e Buell Quain, David Maybury Lewis, Lévi-Strauss e Curt Nimuendajú. O estudo das relações desses pesquisadores com o CFE se concentrou, talvez em excesso, nos dossiês preservados no modelar arquivo do Museu de Astronomia e Ciências Afins do CNPq, no Rio de Janeiro.
Dos papéis do arquivo o autor vai erguendo, revelando e ordenando cientistas, burocratas, mecenas e outros intermediários, formas de financiamento das expedições, técnicas para sua montagem, projetos intelectuais, contextos institucionais e interesses de pesquisa que tornaram o Brasil e as etnias contidas em seu espaço físico e simbólico como um capítulo, entre outros, do americanismo.
Este livro também recupera o peso central do colecionismo, os museus e o naturalismo, como fundamentos das práticas específicas que preenchia a antropologia até os anos 60, década em que o ensino universitário e a especialização terminaram por quebrar o rumo da história disciplinar, não sem provocar, de maneira dominante, as referidas dicotomias perversas que quase apagaram museus da percepção histórico-científica.
Outra face do significado deste livro talvez possa ser ressaltada pela exclamação de júbilo de Luiz de Castro Faria, ao lhe ser mostrado um exemplar de ""Coleção e Expedições Vigiadas". Sem precisar de apresentação, Castro Faria foi fiscal do CFE e enviado do Museu Nacional durante a expedição à Serra do Norte que, em 1938, Dinah e Claude Lévi-Strauss fizeram ao longo da linha de telégrafos estratégica montada por Rondon em Mato Grosso.
Na introdução ao catálogo do acervo do CFE do Museu de Astronomia, Castro Faria faz um tempo escreveu: ""Só com o auxílio desse arquivo -matéria-prima- poderá ser construída a história de um dos períodos mais obscurecidos do nosso passado recente". Ele escondia naquela frase uma certa preocupação por ter vivido e observado como a antropologia se desenvolveu por meio de lutas como as que ele protagonizou, não sem omissões interessadas. Grupioni soma-se à tarefa de devolução de sentidos à história das ciências no Brasil e o faz em uma abordagem original e instigante para descobrir novos aspectos da presença da antropologia na construção da cultura nacional.


Gustavo Sorá é doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional.


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