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Trajetória de Lygia Clark, do construtivismo aos objetos terapêuticos, é tema de exposição
O essencial do desejo
RICARDO FABBRINI
Depois de Barcelona, Marselha, Porto,
Bruxelas e Rio de Janeiro, "Lygia Clark"
aninhou-se no MAM de São Paulo. Essa
mostra não é, contudo, a retrospectiva
que caminhou da Fundação Tapiès de
Barcelona ao Paço Imperial do Rio de Janeiro, de outubro de 1997 a fevereiro de
1999. É uma antologia dessa retrospectiva, mas também significativa, dada a relevância das obras selecionadas. O público, seguindo o curador, vivencia a paixão pela coerência que sempre orientou
a artista, desorientando a crítica. Ele
apreende a lógica dessa trajetória: o cordão que une as pinturas construtivas da
década de 50 aos objetos terapêuticos
dos anos 80.
Abrem a mostra as primeiras pinturas
geométricas de Lygia, raramente expostas, do fim dos anos 40 e início dos 50. É
uma geometria que incorpora tanto as
sinuosidades de Burle Marx e o cubismo
de Léger, seus professores, como a translucidez de Klee e a retidão de Mondrian.
É nítida, contudo, nesse período de formação, uma preocupação com a expansão do plano da pintura, pelas margens
do quadro ou, frontalmente, pelo contraste entre as cores.
É o que também verificamos na montagem inédita, de execução precisa, da
"Maquete para Interior nº 1", de 1955.
Esse projeto ambiental não é uma simples decoração de superfície, e sim uma
estruturação do espaço que não toma as
paredes isoladamente, mas em função
dos materiais, dos caixilhos da porta e
dos vãos do soalho. É um cômodo que
conjuga a simplicidade e delicadeza das
salas de chá dos mestres zen e a sintaxe
pictórica neoplástica, que, segundo
Mondrian, deveria superar os limites da
pintura de cavalete.
Período de formação
Seguindo a ordem da exposição, vemos também o intento de expandir o
plano em "Quebra da Moldura", de 1954,
em que a moldura se torna a figura central da composição, enquanto a pintura,
tornada fundo, projeta-se no espaço do
mundo. É uma obra em que o plano se
expande além do suporte, avançando
pelas margens ou escoando pelos vãos
da moldura. Esses vãos, que nas "superfícies moduladas" de 57 e 58 decorrerão
da justaposição de placas de madeira,
são, na língua de Lygia, "linhas orgânicas". São nesgas de nada que permitem
ao "espaço da representação" infiltrar-se
no coração do "espaço real", nos termos
da artista e da crítica do período de Ferreira Gullar e Mário Pedrosa.
Seguindo a exposição, temos "contra-relevos", "casulos", "trepantes" e "bichos" moles e duros dos anos 60 a 64.
Lygia também buscou a conquista do espaço anterior ou frontal à obra sobrepondo placas metálicas. Esse intumescimento do suporte iniciou-se nos "contra-relevos", em que os planos vincados,
dobrados e desdobrados criam um espaço entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade. E prosseguiu nos "casulos" em que chapas de ferro invadem
ainda mais o espaço externo, criando um
lugar de recolhimento e aconchego. Nos
casulos, as chapas, como paredes uterinas, abrigam um pedaço do mundo que,
encoberto, seduz o espectador, que só
pode vê-lo de través: o que era fenda se
faz, aqui, região de espaço.
Mas os casulos caíram da parede ao
chão. E de casulos caídos brotaram bichos bicudos. Os "Bichos", as obras mais
conhecidas de Lygia, são bioformas de
alumínio ou organismos de folhas de
flandres: alguns, de espécie rara, são inteiriços, pois possuem espinha fixa; enquanto outros, mais encontradiços, sendo dotados de dobradiças, movimentam-se quando tangidos. Nessa exposição, contudo, abandonados numa bancada lateral, acabaram reduzidos a bibelôs. Eles estão enfileirados e, sendo obras
originais, não podem ser tocados: apenas um, o mais travesso, tendo saltado
ao chão, saúda os visitantes. Quando dispostos em bases variáveis, como em outras mostras, eles se animam: no chão,
rastejam, ocultando-se; na altura dos
olhos, nos fitam como presa; e do alto,
nos espreitam, ameaçando investir.
Máquina de espaços
O "Bicho" nunca é o mesmo, pois sempre se renova quando fecundado pela
manipulação do "ex-espectador", tornado participante. É uma máquina de
construir espaços imprevistos que, uma
vez acionada pela mão de Midas, responde com novas constelações de formas, sombras e reflexos, com "irisações
luminosas, invaginações que se abrem",
na poética de Pedrosa, para uma nova
realidade espacial: o espaço vivencial
que resulta de "um corpo a corpo entre
duas entidades vivas", como dizia Lygia.
Nem todos os bichos são, entretanto,
metálicos e duros. Há bichos moles, desfibrados, de borracha. São obras flexíveis, sem anverso ou reverso, que reagem ao toque do participante de modo
condescendente. Temos, por fim, os
"trepantes", a última cria de 64: são formas serpentinadas, em tira de metal ou
borracha, semelhantes a plantas trepadeiras e bichos-preguiças que se agarram aos troncos das árvores, confundindo-se com a vegetação. Contava Lygia
que certa vez, tendo atirado um desses
trepantes ao chão, Pedrosa lhe disse:
"Enfim, pode-se chutar uma obra de arte...". "E eu adorei isso", concluía.
Lygia, desde então, substituiu as
"obras de arte" por "proposições vivenciais", visando à ampliação das experiências sensoriais dos participantes: "o
suporte", dizia, "é agora o próprio corpo
sensório, a própria fantasmática, o próprio grupo de participantes". Dizendo-se "propositora" (ou "não-artista"), recusou o "esteticismo" (ou o fetichismo
da arte) em defesa de um "estado estético": um "estado singular da arte sem arte", situado aquém das convenções sociais, em que cada gesto se tornaria um
gesto poético, aberto ao delineamento
do devir.
Na segunda sala da mostra há inúmeras proposições, individuais ou grupais,
dos anos 60 e 70 que podem ser livremente vivenciadas pelos visitantes. Nessa sala reina a folia, sobretudo de crianças, assistidas por monitores motivados.
"Respire Comigo" é um saco plástico, inflado de ar, com uma pedra sobreposta,
que uma vez pressionado deve produzir
a experiência da respiração, não como
uma troca gasosa, mas como uma queima gozosa que reverbere por todo o corpo do participante.
"O Eu e o Tu" são vestes vastas sem viseiras que visam a estimular os parceiros
a se procurar e, uma vez se encontrando,
a se apalpar: momento em que cada um,
abrindo os zíperes que ocultam seus parceiros, descobririam que o "eu" não apenas existe para o "tu", mas que também
o "tu" existe para o "eu", enfim, que eles
se correspondem e que, portanto, é a exterioridade do outro (o receptáculo ao
toque) que permitiria, a cada um, conhecer sua própria interioridade.
Fecha a mostra uma reconstituição do
consultório experimental que Lygia
manteve em seu apartamento de Copacabana desde seu regresso da Sorbonne,
no fim dos 70. Desenvolveu, então, retomando várias proposições vivenciais,
uma atitude terapêutica fundada no
contato corporal do "paciente" com os
chamados "objetos relacionais": almofadas leves com bolinhas de poliestireno;
almofadas pesadas com areia de praia;
sacos plásticos cheios de ar, água ou sementes; ou meias-calça com bolas de tênis, ping-pong, pedras e conchas partidas.
Lygia aplicava esses objetos em todo o
corpo do paciente para, eliminando suas
"fissuras", torná-lo íntegro, ou "habitado por um verdadeiro self", como dizia
num texto de 80, escrito com Suely Rolnik. Esse trabalho, no entanto, como revê Rolnik em texto recente, não constitui
um método terapêutico, pois lhe falta
um confinamento teórico, nem uma atividade artística, há muito abandonada
por Lygia, mas um híbrido com força
disruptiva de arte e clínica, que faz fluir
um no outro. Dois meses após interromper sua atitude terapêutica Lygia morreu, em 25 de abril de 1988, ao meio-dia,
aos 67 anos, à beira-mar.
Teia de relações
O catálogo da retrospectiva européia
com alguns textos críticos, muitas passagens inéditas de Lygia e muitíssimas
imagens, sendo várias de época, não vieram ao MAM. Há à disposição um catálogo sem imagens, que não documenta
as obras expostas, mas expõe a interpretação do curador sobre a artista. O ensaio de Herkenhoff, visando à inscrição
de Lygia nos desenvolvimentos moderno e contemporâneo, produz uma teia
de relações. Ele associa, por exemplo,
por conta e risco, o alongamento e ondulação dos "trepantes" ao barroco mineiro e à arquitetura de Niemeyer. Aproxima, ressalvando diferenças, a malemolência das obras moles às esponjas de
Dubuffet, aos algodões de Manzoni e aos
estofados de Oldemburg.
A mostra é, assim, indispensável à
compreensão da trajetória de Lygia
Clark, que, herdeira do espírito de vanguarda do início do século, acreditou nos
poderes transformadores da arte. E é na
idéia de "falha" que encontramos o cordão desse percurso. Há entre a moldura
e a tela, nas invaginações dos "Bichos",
entre "Eu e o Tu", ou no corpo fragmentado dos pacientes, uma "falha", ou seja,
o essencial do desejo: um impulso de reconciliação entre o sujeito que deseja
(uma presença rasgada por uma ausência) e o objeto deste desejo.
Em seu imaginário, portanto, o traço
diferencial do corpo (à revelia de Derrida, Lacan, Lyotard e Leclaire) não traz
em si a impossibilidade do encontro
com o objeto do desejo. Lygia não acredita que o amor seja patético, uma dualidade insuperável dos seres, uma relação
que se esquiva para sempre, mas, sim,
que é possível suprir a falta, ou abolir a
diferença, suturando o vazio aberto por
uma privação: é na nostalgia de um corpo virginal, sem culpa de origem e sem
necessidade alguma de rendição ou castigo, que reside seu utopismo.
Exposição Lygia Clark
Catálogo da Mostra (até 01/08/99)
Curadoria: Paulo Herkenhoff
Museu de Arte Moderna de São Paulo -MAM (Tel. 0/xx/11/549-9688)
68 págs., R$ 10,00
Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark"
(Atlas).
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