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A reforma do Estado em questão
A sociedade policêntrica
MAURO LEONEL
Enxuga-se o Estado, incapaz de responder ao drama das exclusões
sociais, não gerando soluções na escala necessária. O mercado não
oferece os empregos que seus defensores prometiam. A concentração de capital e tecnologia amplia as esferas desfavorecidas. Convoca-se então um terceiro setor, nas energias potenciais da sociedade
civil, e esses novos/velhos atores dariam conta da fatura social, pois
já não teríamos Estado demais.
As respostas que não ofereceram a outorga e abdicação excessivas
da soberania e tampouco o "laissez-faire" seriam dadas pela diversidade dos cidadãos, reconvocados à ação pública. Realidade em curso ou utopia, e o como fazer, é o que discutem 15 autores, introduzidos por L. C. Bresser Pereira e N. C. Grau.
O conjunto, por reunir experiências em diversos países, em tipos
de atividades sociais e diferentes pontos de vista, permite tomar o
pulso do estado deste tema, de inquestionável atualidade.
Se uma coletânea, com os méritos de ser comparativa, latino-americana, pluralista, pudesse levar à paz da solução descoberta, poder-se-ia pôr fim a uma inquietação da passagem do milênio. Uma refundação estaria ocorrendo na sociedade, carregada por valores de
solidariedade, participação cidadã e eficácia, dando conta de suas insuportáveis distorções: ter-se-ia aberto um caudal de possibilidades,
permitindo a reabilitação da esperança.
Os autores são os primeiros a adiantar-nos que não há como dormir tranquilos o sono dos justos. Nas águas correntes da participação, há meandros a serem desvendados, para admiti-la como panacéia corretiva aos desajustes do Estado e do mercado. O que se tem é
inicial -experiências, realizações positivas. Seria justo magnificar
os valores dessas iniciativas societárias? Mais uma promessa, incapaz de dar conta dos permanentes e maiores desafios da história, os
da igualdade e da liberdade, fundadas na solidariedade? O que impede ver-se aí uma receita mágica? A dúvida não está no mérito da proposta, mas na capacidade efetiva de resposta da sociedade civil ao
desafio da abertura de novos mecanismos de participação.
Na proposta-chave do livro, as respostas dependeriam dos próprios atores da sociedade civil, convidados a participar dos conselhos de organizações sociais autonomizadas, que viriam a ampliar a
esfera do público não-estatal e estariam voltadas à prestação de serviços, como os de saúde, educação e pesquisa. O propósito seria intensificar o controle social por meio de instrumentos da democracia
participativa. O debate foi aberto adequadamente pelos artigos da
coletânea e deve tomar a sociedade, dada a atualidade de sua temática e a profunda mudança da sociedade que a reforma propõe. Poderia esta ampliação do público não-estatal evitar os abusos da discricionalidade burocrática, da corrupção, do clientelismo e aumentar a
eficácia dos serviços sociais básicos e atender aos excluídos?
As não-governamentais vivem dinâmicas controversas, inerentes
à iniciativa social, multiplicam-se, mas sofrem de vida curta, pouca
articulação interinstitucional, fraca voz consensual coletiva, descontinuidade administrativa, falta de recursos, autoritarismo, personalismo, inclusive de ideologismo, manipulação e "pilantropia". Mas
seu potencial, seus exemplos bem-sucedidos têm vindo de sua diversidade, da dedicação cidadã de seus atores, daqueles movidos
mais por valores, civis ou religiosos, do que por interesses.
As organizações sociais fomentadas pelo Estado seriam a mesma
coisa que as iniciativas de atores da sociedade civil? Até que ponto
pode o Estado desencarregar-se de ajustes básicos de qualidade de
vida e igualdade de oportunidades, diante dos mais desfavorecidos?
Essas novas instituições podem ampliar a esfera pública não-estatal,
desfazendo-se da poeira e da inércia burocráticas. Mas continuam
quase-estatais, mesmo melhorando alguns serviços, pela agilidade e
fim específico. E estão prejudicadas como instrumentos de exercício
do controle social da cidadania sobre o Estado e o mercado, porque
estão dependentes dos laços com seus financiadores. O problema se
põe para todas as organizações da sociedade civil, pois a sua virtude
esperada é a autonomia, a mediação, a qualificação dos problemas
sociais, a independência, somada à diversidade.
A coletânea oferece exemplos de cooperação com o aparelho de
Estado, sem perda de identidade, e essa dificuldade é discutida. O esperado dos atores públicos da sociedade civil, do setor social, é a sua
vivacidade inovadora, sua força de experimentar, de formar opinião, de reafirmar direitos, reformulá-los, de dar voz a excluídos e
multiplicá-la, até que se imponha como política pública, reformando o Estado.
Ora, como guardar o "tesouro perdido", o da participação cidadã
republicana de Arendt, e introduzir a racionalidade instrumental,
tecnoburocrática, critérios de competência e de resultados? Como
institucionalizar o inovador e manter acesa sua chama criativa? Como pedir aos atores da sociedade civil que aliem gerência competitiva, mantendo as mãos criativas da sociedade, sobrepondo valores a
interesses?
Esses atores são diversos: locais, culturais, de gênero, étnicos, religiosos, filantrópicos, mediadores, representativos, prestadores de
serviços, cooperativas, de autogestão, fundações, clubes, movimentos sociais, tantos outros. Para que o século 21 amplie o público e diminua o Estado, em direção ao policêntrico, deve-se aprimorar a
consulta, a qualificação, oferecer oportunidades iguais a todos os
atores coletivos.
Mauro Leonel é professor visitante no Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP) e professor de ciência
política na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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