São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Vazio político ameaça democracia
Privatização do espaço público

RICARDO MUSSE

Para o filósofo dialético, nada mais previsível. Mas, para o atual senso comum, moldado por correntes opostas, não deixa de ser paradoxal que, ao se tornar norma universal, na plenitude de sua realização, a democracia liberal tenha, como que por prestidigitação, se desmanchado no ar ou, para dizer o mínimo, perdido sua eficácia.
Como se sabe, as esperanças utópicas depositadas nas "transições democráticas", tanto na América Latina quanto no Leste Europeu, foram levadas de roldão pelo bonde aparentemente desgovernado da globalização. Mas qual seria a dimensão dessa trombada? Eis, sucintamente, o escopo de "Os Sentidos da Democracia", como aliás expõe com clareza Maria Célia Paoli na introdução que, fato raro, funciona também como um artigo autônomo.
Apesar da variada gama dos assuntos, da diversidade intelectual dos autores -seja quanto à filiação teórica, seja no que tange à latitude de sua inserção cultural-, não há como deixar de observar que nessa coletânea dois pressupostos são integralmente compartilhados. A democracia e, por conseguinte, a vida política não surgem aí como uma esfera autônoma, mas como uma forma histórica atrelada, pouco importa como, às configurações cambiantes da vida econômica e social. No mundo atual, a tendência à destituição dos conflitos e da própria política, a compreensão da governabilidade como forma de controle de tensões e divergências ou, ainda, o esvaziamento da esfera pública colocam sob ameaça o legado e o próprio sentido do termo democracia.
Como não se trata de reiterar o velho chavão da incompatibilidade entre democracia liberal e economia de mercado, principalmente porque essa associação funcionou perfeitamente por décadas, pelo menos nos países centrais, cabe então -tarefa à qual não se furtam os autores- determinar precisamente por que a "mundialização do capital" parece prescindir e mesmo obstacularizar a ampliação do espaço democrático.
Novamente -não há como escapar a essa questão- estamos diante de diagnósticos do presente histórico. Marilena Chaui, sempre atenta àquilo que interessa, abre seu artigo, o primeiro da coletânea, com um esboço do capitalismo contemporâneo. A explicitação de seus principais aspectos -predomínio do capital financeiro (e do monetarismo), fragmentação e dispersão da produção, transformação da ciência e tecnologia em forças produtivas, fim dos direitos sociais, desemprego estrutural etc.- torna-se uma espécie de baliza a partir da qual procura compreender o modo como se processa o encolhimento do espaço público. Concede especial atenção à universidade, um pólo que por definição (e tradição) deveria resistir a essa maré, mas que acabou sendo contaminado também pelas inversões ideológicas promovidas pelo neoliberalismo. Sua avaliação final é sombria. Não se trata apenas do fato de que estamos submetidos a formas de vida marcadas pela insegurança e pela violência institucionalizadas pelo mercado. Para ela, a forma contemporânea do capitalismo e da ideologia que o reproduz opõe-se aos valores e normas que constituem o campo ético-democrático.
Francisco de Oliveira também parte de uma caracterização do capitalismo contemporâneo que ressalta, como faz Chaui, sua especificidade em relação ao Estado do Bem-Estar. A racionalidade administrativa, que regulava "de fora" a concorrência intercapitalista e a compra e venda da força de trabalho, teria sido substituída pela soberania do mercado. Isso instaura, principalmente no Brasil, uma clivagem decisiva. A burguesia, até mesmo subjetivamente, opera em tal escala uma apropriação privada dos conteúdos outrora públicos que coloca em risco a própria esfera pública. A face mais visível desse processo seria a regressão do Estado de universal abstrato, de "comunidade ilusória", a mero chão de interesses privados. Já os dominados, destituídos de sua política, de sua fala, excluídos do universo reivindicativo, em suma, reduzidos à condição de mera mercadoria encontrarão ainda maiores dificuldades em seu esforço em prol da democratização, da criação de uma esfera pública. Mesmo assim, constituem ainda, segundo Oliveira, a única alternativa ao totalitarismo.
Boaventura de Souza Santos examina a relação entre capitalismo e democracia a partir do conceito de contrato social, ou seja, da capacidade já demonstrada pelo trabalho em promover a socialização da economia e a politização do Estado. No mundo contemporâneo, no entanto, vigoraria uma espécie de contramodernização na qual a exclusão social torna-se norma e o trabalho perde seu estatuto político de produtor (e produto) da cidadania. Com isso, emergem novas relações sociais e civilizatórias, características da desestatização da regulação social e da erosão do contrato social -apartheid social, ação prática do Estado discrepante da lei e do direito, usurpação de poderes estatais por entidades poderosas, poder discricionário do capital financeiro etc.-, que Boaventura não hesita em chamar de fascismo, ainda que adjetivado pelo termo "societal" para diferenciá-lo do regime político dos anos 30 e 40. A democracia representativa por si só parece-lhe insuficiente para se contrapor a essa tendência. Para reconstituir o espaço público, propõe formas de democracia participativa e redistribuitiva fortes o bastante para democratizar tanto o Estado quanto a esfera não estatal.
A globalização constitui também o assunto principal dos artigos de Gabriele Muzio e Wanderley Guilherme dos Santos. Enquanto Muzio concentra-se na extensão mundial de um modelo de capitalismo financeiro marcado pela transferência da administração dos fluxos financeiros, atuais e futuros, do Estado para corporações privadas, Santos dedica-se ao estudo da hierarquia dos países que constituem o sistema mundial. Segundo ele, assiste-se hoje a uma curiosa inversão. A crença, predominante nos anos 50, de que os países pobres iriam alcançar o padrão de vida dos países centrais cedeu lugar ao determinismo oposto, à convicção da inviabilidade de qualquer tentativa de convergência ("catch-up"). O exame das modificações desse sistema a longo prazo, no entanto, atestaria, segundo Santos, a presença de anomalias que abrem brechas para países que estejam dispostos a reduzir a taxa de desigualdade interna e acelerar o crescimento econômico.
Peter Beilharz, Anthony Woodiwiss e Huw Beynon relatam histórias semelhantes de destituição de direitos sociais, respectivamente, na Austrália, na Ásia do Pacífico e na Inglaterra. O destaque nesse bloco é o texto de Beynon (já conhecido entre nós sobretudo por meio da coletânea "Neoliberalismo, Trabalho e Sindicatos", ed. Boitempo), notável pela capacidade de expor e captar sinteticamente o principal.
Por fim, Laymert Garcia dos Santos discute os novos desafios do direito diante da pretensão do mercado e da atividade tecnocientífica de transgredir inclusive a natureza do homem. Explicitando um tema indissociável da questão da modernização, tem o mérito de chamar a atenção para um aspecto muitas vezes negligenciado -o vínculo entre racionalidade econômica e racionalidade tecnocientífica.



Os Sentidos da Democracia
Francisco de Oliveira e Maria Célia Paoli (orgs.) Fapesp/Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112) 336 págs., R$ 26,00



Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).


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