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Vazio político ameaça democracia
Privatização do espaço público
RICARDO MUSSE
Para o filósofo dialético, nada mais previsível.
Mas, para o atual senso comum, moldado por correntes opostas, não deixa de ser paradoxal que, ao se
tornar norma universal, na plenitude de sua realização, a democracia liberal tenha, como que por prestidigitação, se desmanchado no ar ou, para dizer o
mínimo, perdido sua eficácia.
Como se sabe, as esperanças utópicas depositadas
nas "transições democráticas", tanto na América
Latina quanto no Leste Europeu, foram levadas de
roldão pelo bonde aparentemente desgovernado da
globalização. Mas qual seria a dimensão dessa
trombada? Eis, sucintamente, o escopo de "Os Sentidos da Democracia", como aliás expõe com clareza Maria Célia Paoli na introdução que, fato raro,
funciona também como um artigo autônomo.
Apesar da variada gama dos assuntos, da diversidade intelectual dos autores -seja quanto à filiação
teórica, seja no que tange à latitude de sua inserção
cultural-, não há como deixar de observar que
nessa coletânea dois pressupostos são integralmente compartilhados. A democracia e, por conseguinte, a vida política não surgem aí como uma esfera
autônoma, mas como uma forma histórica atrelada, pouco importa como, às configurações cambiantes da vida econômica e social. No mundo
atual, a tendência à destituição dos conflitos e da
própria política, a compreensão da governabilidade
como forma de controle de tensões e divergências
ou, ainda, o esvaziamento da esfera pública colocam sob ameaça o legado e o próprio sentido do termo democracia.
Como não se trata de reiterar o velho chavão da
incompatibilidade entre democracia liberal e economia de mercado, principalmente porque essa associação funcionou perfeitamente por décadas, pelo menos nos países centrais, cabe então -tarefa à
qual não se furtam os autores- determinar precisamente por que a "mundialização do capital" parece prescindir e mesmo obstacularizar a ampliação
do espaço democrático.
Novamente -não há como escapar a essa questão- estamos diante de diagnósticos do presente
histórico. Marilena Chaui, sempre atenta àquilo que
interessa, abre seu artigo, o primeiro da coletânea,
com um esboço do capitalismo contemporâneo. A
explicitação de seus principais aspectos -predomínio do capital financeiro (e do monetarismo),
fragmentação e dispersão da produção, transformação da ciência e tecnologia em forças produtivas,
fim dos direitos sociais, desemprego estrutural
etc.- torna-se uma espécie de baliza a partir da
qual procura compreender o modo como se processa o encolhimento do espaço público. Concede
especial atenção à universidade, um pólo que por
definição (e tradição) deveria resistir a essa maré,
mas que acabou sendo contaminado também pelas
inversões ideológicas promovidas pelo neoliberalismo. Sua avaliação final é sombria. Não se trata apenas do fato de que estamos submetidos a formas de
vida marcadas pela insegurança e pela violência institucionalizadas pelo mercado. Para ela, a forma
contemporânea do capitalismo e da ideologia que o
reproduz opõe-se aos valores e normas que constituem o campo ético-democrático.
Francisco de Oliveira também parte de uma caracterização do capitalismo contemporâneo que
ressalta, como faz Chaui, sua especificidade em relação ao Estado do Bem-Estar. A racionalidade administrativa, que regulava "de fora" a concorrência intercapitalista e a compra e venda da força de trabalho, teria sido substituída pela soberania do mercado. Isso instaura, principalmente no Brasil, uma clivagem decisiva. A burguesia, até mesmo subjetivamente, opera em tal escala uma apropriação privada dos conteúdos outrora públicos que coloca em
risco a própria esfera pública. A face mais visível
desse processo seria a regressão do Estado de universal abstrato, de "comunidade ilusória", a mero
chão de interesses privados. Já os dominados, destituídos de sua política, de sua fala, excluídos do universo reivindicativo, em suma, reduzidos à condição de mera mercadoria encontrarão ainda maiores
dificuldades em seu esforço em prol da democratização, da criação de uma esfera pública. Mesmo assim, constituem ainda, segundo Oliveira, a única alternativa ao totalitarismo.
Boaventura de Souza Santos examina a relação
entre capitalismo e democracia a partir do conceito
de contrato social, ou seja, da capacidade já demonstrada pelo trabalho em promover a socialização da economia e a politização do Estado. No mundo contemporâneo, no entanto, vigoraria uma espécie de contramodernização na qual a exclusão social torna-se norma e o trabalho perde seu estatuto
político de produtor (e produto) da cidadania. Com
isso, emergem novas relações sociais e civilizatórias,
características da desestatização da regulação social
e da erosão do contrato social -apartheid social,
ação prática do Estado discrepante da lei e do direito, usurpação de poderes estatais por entidades poderosas, poder discricionário do capital financeiro
etc.-, que Boaventura não hesita em chamar de
fascismo, ainda que adjetivado pelo termo "societal" para diferenciá-lo do regime político dos anos
30 e 40. A democracia representativa por si só parece-lhe insuficiente para se contrapor a essa tendência. Para reconstituir o espaço público, propõe formas de democracia participativa e redistribuitiva
fortes o bastante para democratizar tanto o Estado
quanto a esfera não estatal.
A globalização constitui também o assunto principal dos artigos de Gabriele Muzio e Wanderley
Guilherme dos Santos. Enquanto Muzio concentra-se na extensão mundial de um modelo de capitalismo financeiro marcado pela transferência da administração dos fluxos financeiros, atuais e futuros, do
Estado para corporações privadas, Santos dedica-se
ao estudo da hierarquia dos países que constituem o
sistema mundial. Segundo ele, assiste-se hoje a uma
curiosa inversão. A crença, predominante nos anos
50, de que os países pobres iriam alcançar o padrão
de vida dos países centrais cedeu lugar ao determinismo oposto, à convicção da inviabilidade de qualquer tentativa de convergência ("catch-up"). O exame das modificações desse sistema a longo prazo,
no entanto, atestaria, segundo Santos, a presença de
anomalias que abrem brechas para países que estejam dispostos a reduzir a taxa de desigualdade interna e acelerar o crescimento econômico.
Peter Beilharz, Anthony Woodiwiss e Huw Beynon relatam histórias semelhantes de destituição de
direitos sociais, respectivamente, na Austrália, na
Ásia do Pacífico e na Inglaterra. O destaque nesse
bloco é o texto de Beynon (já conhecido entre nós
sobretudo por meio da coletânea "Neoliberalismo,
Trabalho e Sindicatos", ed. Boitempo), notável pela
capacidade de expor e captar sinteticamente o principal.
Por fim, Laymert Garcia dos Santos discute os novos desafios do direito diante da pretensão do mercado e da atividade tecnocientífica de transgredir
inclusive a natureza do homem. Explicitando um
tema indissociável da questão da modernização,
tem o mérito de chamar a atenção para um aspecto
muitas vezes negligenciado -o vínculo entre racionalidade econômica e racionalidade tecnocientífica.
Os Sentidos da Democracia
Francisco de Oliveira e Maria Célia Paoli (orgs.)
Fapesp/Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
336 págs., R$ 26,00
Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).
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