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Uma radiografia da globalização
Cretinismo econômico
JOSÉ LUÍS FIORI
Primeiro, foi o entusiasmo simplório dos que festejaram a chegada da globalização como a hora final de convergência da riqueza
das nações. Depois chegaram as
inevitáveis lamúrias dos perdedores, com a denúncia chorosa dos
"efeitos perversos do capital volátil". Otimistas ingênuos, não viram a dimensão da luta pelo poder e riqueza mundial que esteve
na origem da globalização recente
da economia capitalista e hoje erram de novo desconhecendo que
a "volatilidade do capital" é apenas uma das manifestações da nova forma de organização e funcionamento do capitalismo mundial.
Se tudo se tratasse apenas de debate intelectual e a "força da razão" pudesse se impor num mundo de interesses tão poderosos,
seria o caso de recomendar às novas viúvas da globalização a leitura do último livro de François
Chesnais. Reúne nove ensaios de
economistas, keynesianos, regulacionistas e marxistas, que traçam em conjunto um perfil sintético e uma radiografia didática
dessa grande transformação econômica mundial.
A coletânea mapeia as decisões
políticas e as trajetórias econômicas que conduziram à mundialização das finanças e à consolidação de um novo "regime de acumulação financeirizada" à escala
global, que se consolida a partir
da década de 80. Na sua origem,
convergem os efeitos da mudança
do regime cambial, na década de
70, a desregulação dos mercados
de capitais e a adoção massiva das
políticas deflacionistas e monetaristas, nos anos 80, e o processo de
transformação endógena do capital financeiro, liderado, desde os
anos 60, pelos fundos de pensão e
de investimento de origem anglo-saxã.
Uma convergência que liberou
as finanças das amarras que lhe
foram impostas a partir da crise
de 1930, permitindo uma conexão
cada vez mais direta entre os sistemas monetários nacionais e os
mercados financeiros bem como
o reaparecimento de uma finança
privada, direta e mundial, descomprometida com qualquer tipo de padrão monetário internacional. Essa nova liberdade permitiu que o carro-chefe da acumulação da riqueza se transferisse
para o mundo das finanças, que
se expande a uma velocidade cada
vez maior do que a da formação
de capital e do intercâmbio comercial.
Centralidade dos EUA
A mundialização do capital e a
supremacia do capital financeiro,
contudo, não eliminam os Estados e sistemas financeiros nacionais, integrando-os de forma incompleta dentro de um espaço
hierarquizado. No seu ensaio sobre a instabilidade financeira internacional, Suzanne de Brunhoff
calcula que, em meados dos anos
90, 2/3 do comércio mundial e 3/4
dos créditos bancários internacionais eram designados em dólar, e conclui que o novo "regime"
recolocou de forma mais nítida o
dólar no topo da pirâmide das
moedas, transformando a política
monetária norte-americana no
principal mecanismo de regulação do novo modo de acumulação financeirizado mundial.
Na segunda metade dos anos 80
vários acordos monetários tentaram coordenar as flutuações do
dólar, do iene e do marco alemão.
Mas seu insucesso devolveu, nos
anos 90, aos EUA e ao dólar, uma
liberdade de manobra e um poder
econômico e político sem precedente na história do capitalismo.
Por isso, Chesnais também conclui que a "pretensão do capital financeiro, de dominar a movimentação do capital em sua totalidade, foi acompanhada pela reafirmação da centralidade dos
EUA. Esse país acabou reafirmando seu peso, não apenas pelo desmoronamento da União Soviética
e por sua posição militar incontestável, mas também em função
do próprio processo de financeirização".
Na outra ponta do "novo regime de acumulação", os ensaios de
Claude Serfati e Richard Farnetti
identificam e analisam as novas
formas de organização e as estratégias dos seus principais agentes
"microeconômicos", os fundos
de pensão, os "mutual funds" e os
grandes grupos industriais.
O ensaio de Serfati concentra-se
no estudo dos grandes grupos industriais franceses e constata um
"aumento espetacular de suas
aplicações financeiras, que acompanha, desde 1990, um desabamento igualmente espetacular
dos seus investimentos produtivos". Constata, além disso, que o
aumento da liquidez detida pelos
grupos foi o que os empurrou na
direção das fusões e privatizações
também incluídas por seus gestores na categoria de "ativos financeiros rentáveis". Diz o autor que
"uma das particularidades dessas
operações é que, em vez de contribuir para uma retomada duradoura da acumulação de capital
produtivo, elas se traduzem por
um fortalecimento da financeirização dos grupos. Empresas e
grupos inteiros foram adquiridos
sob esta perspectiva, frequentemente esfacelados e, depois, revendidos".
O ensaio de Farnetti concentra-se no estudo dos fundos de pensão e investimentos coletivos anglo-saxões, os novos "investidores institucionais" que ocupam
lugar central dentro do novo regime de acumulação. A pesquisa do
autor mostra como o "curto-prazismo" é da essência desses grupos, sendo uma decorrência lógica de sua própria função. Uma capacidade e necessidade de alta liquidez e rápido retorno que faz o
capital passar de um produto a
outro com uma velocidade que
hoje ultrapassa em muito o que se
conheceu durante a vigência do
padrão ouro, com a diferença que
agora não existe mais um padrão
monetário e "sim uma imensa pirâmide de ativos financeiros, e esses, frequentemente, são totalmente fictícios".
Nesse sentido, ambos autores
concluem que no novo regime de
acumulação, os horizontes de valorização do capital são muito
curtos, e essa urgência orienta e se
impõe também aos investimentos
produtivos, levando Chesnais a
concluir que "as formas de valorização exigidas por esse capital
têm que atender à liquidez e segurança do investimento. E são especulativos no sentido de que são
operações motivadas apenas pela
expectativa de alterações no preço
do ativo". Comportamentos e
tendências que se intensificam e
agravam na periferia do sistema,
em que a instabilidade é mais alta
e maior a propensão a manter-se
em "estado de alerta", pronto para a fuga na direção de outro produto ou refúgio.
Outro ponto importante do argumento, que se constrói por
meio dos vários ensaios do livro,
tem a ver com as relações entre a
mundialização, o novo regime de
acumulação, as políticas públicas
e as políticas monetárias nacionais em particular. Dominique
Plihon analisa o processo de mão
dupla responsável pelo efeito dominó que disseminou as políticas
monetaristas pelo mundo e pelo
efeito "boomerang" que essas
mesmas políticas tiveram, imobilizando os seus estados de origem.
Como se sabe, foi a partir das vitórias conservadoras do final da década de 70 e da reunião do G-5 em
Tóquio, em 1979, que a estabilidade monetária passou a ser o objetivo prioritário dos governos centrais, enquanto o monetarismo e
o liberalismo se tornavam a religião oficial da política econômica.
Desde então, as políticas monetárias restritivas tiveram sucesso
no combate à inflação, mas desencadearam em todo o mundo
uma alta das taxas de juros nominais que se mantiveram inalteradas durante as décadas seguintes,
transformando-se em peça essencial do novo modo de acumulação financeirizado. Mas essas
mesmas taxas permanentemente
elevadas induziram uma desaceleração do crescimento econômico nos principais países industrializados e provocaram um desequilíbrio crescente das contas públicas, multiplicando por todo lado as famosas "crises de Estado".
Como as taxas de juros passaram a ser sistematicamente superiores às taxas de inflação e crescimento das economias centrais,
transformaram-se em fonte de
expansão contínua dos déficits
públicos, que, alimentados pelos
juros, aprisionaram e paralisaram
as políticas públicas. Para sair do
impasse, os Estados recorreram
sucessivamente à "titulização" e
venda de suas dívidas nos mercados financeiros, apelando aos investidores internacionais.
Essa foi, aliás, uma das primeiras razões por que as autoridades
públicas de quase todos Estados
centrais liberalizaram seus sistemas financeiros, buscando atender suas próprias necessidades de
financiamento. Como resultado,
depois de 15 anos, os mercados de
títulos públicos tornaram-se um
dos segmentos mais ativos do
mercado financeiro internacional, só superado pelas operações
cambiais. Por isso os autores dessa coletânea consideram que, se a
alta das taxas de juros obedeceu
inicialmente objetivos deflacionários, já faz tempo que elas se
transformaram em peça essencial
do novo modo de regulação internacional imposto pela desregulação das finanças.
Como consequência, pode-se
prever um aumento contínuo e irreversível dos déficits públicos,
sobretudo quando se tem presente que as altas taxas de juros têm
sido acompanhadas pela queda
das receitas fiscais decorrentes do
achatamento salarial, da diminuição da produção e do emprego e
da redução da tributação sobre os
rendimentos do capital. Como diz
Chesnais, neste regime econômico da mundialização financeira,
os déficits crescem na forma de
uma "bola de neve", modificando
a divisão da renda em favor dos
rendimentos financeiros e estrangulando os governos que aceitam
e promovem sucessivos e inúteis
ajustes orçamentários responsáveis pela crescente ingovernabilidade dos Estados e de suas instâncias subnacionais de poder.
Por isso, finalmente, acuados,
os monetaristas que comandam a
política econômica da maioria
dos países capitalistas perdedores
no jogo financeiro global começam hoje a implorar pela re-regulamentação dos mercados. Mas
seguem desconhecendo o fato
que "colocar em julgamento a "especulação" e sugerir que ela poderia ser exterminada graças a medidas menores, do tipo taxa Tobin, somente serve para ocultar as
dimensões sistêmicas do regime
mundial das finanças de mercado, bem como dos fundamentos
de caráter rentista dos mecanismos de determinação das taxas de
juros e das taxas de câmbio".
Como as teorias monetaristas
não dão conta dos privilégios que
o novo sistema outorga aos EUA e
aos países detentores de moedas
fortes, os seus defensores periféricos acabam depositando todas as
suas esperanças num gesto benevolente dos que são os maiores
beneficiários do novo regime das
finanças desreguladas. Triste fim
o da cretinice econômica, pior
ainda o dos países perdedores,
governados por esses idiotas.
A Mundialização Financeira
François Chesnais (org.)
Tradução: Carmen Cacciacarro
Ed. Xamã (Tel. 0/xx/11/575-9075)
334 págs., R$31,00
José Luís Fiori é professor do Instituto de
Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
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