São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Uma radiografia da globalização
Cretinismo econômico

JOSÉ LUÍS FIORI

Primeiro, foi o entusiasmo simplório dos que festejaram a chegada da globalização como a hora final de convergência da riqueza das nações. Depois chegaram as inevitáveis lamúrias dos perdedores, com a denúncia chorosa dos "efeitos perversos do capital volátil". Otimistas ingênuos, não viram a dimensão da luta pelo poder e riqueza mundial que esteve na origem da globalização recente da economia capitalista e hoje erram de novo desconhecendo que a "volatilidade do capital" é apenas uma das manifestações da nova forma de organização e funcionamento do capitalismo mundial.
Se tudo se tratasse apenas de debate intelectual e a "força da razão" pudesse se impor num mundo de interesses tão poderosos, seria o caso de recomendar às novas viúvas da globalização a leitura do último livro de François Chesnais. Reúne nove ensaios de economistas, keynesianos, regulacionistas e marxistas, que traçam em conjunto um perfil sintético e uma radiografia didática dessa grande transformação econômica mundial.
A coletânea mapeia as decisões políticas e as trajetórias econômicas que conduziram à mundialização das finanças e à consolidação de um novo "regime de acumulação financeirizada" à escala global, que se consolida a partir da década de 80. Na sua origem, convergem os efeitos da mudança do regime cambial, na década de 70, a desregulação dos mercados de capitais e a adoção massiva das políticas deflacionistas e monetaristas, nos anos 80, e o processo de transformação endógena do capital financeiro, liderado, desde os anos 60, pelos fundos de pensão e de investimento de origem anglo-saxã.
Uma convergência que liberou as finanças das amarras que lhe foram impostas a partir da crise de 1930, permitindo uma conexão cada vez mais direta entre os sistemas monetários nacionais e os mercados financeiros bem como o reaparecimento de uma finança privada, direta e mundial, descomprometida com qualquer tipo de padrão monetário internacional. Essa nova liberdade permitiu que o carro-chefe da acumulação da riqueza se transferisse para o mundo das finanças, que se expande a uma velocidade cada vez maior do que a da formação de capital e do intercâmbio comercial.

Centralidade dos EUA
A mundialização do capital e a supremacia do capital financeiro, contudo, não eliminam os Estados e sistemas financeiros nacionais, integrando-os de forma incompleta dentro de um espaço hierarquizado. No seu ensaio sobre a instabilidade financeira internacional, Suzanne de Brunhoff calcula que, em meados dos anos 90, 2/3 do comércio mundial e 3/4 dos créditos bancários internacionais eram designados em dólar, e conclui que o novo "regime" recolocou de forma mais nítida o dólar no topo da pirâmide das moedas, transformando a política monetária norte-americana no principal mecanismo de regulação do novo modo de acumulação financeirizado mundial.
Na segunda metade dos anos 80 vários acordos monetários tentaram coordenar as flutuações do dólar, do iene e do marco alemão. Mas seu insucesso devolveu, nos anos 90, aos EUA e ao dólar, uma liberdade de manobra e um poder econômico e político sem precedente na história do capitalismo. Por isso, Chesnais também conclui que a "pretensão do capital financeiro, de dominar a movimentação do capital em sua totalidade, foi acompanhada pela reafirmação da centralidade dos EUA. Esse país acabou reafirmando seu peso, não apenas pelo desmoronamento da União Soviética e por sua posição militar incontestável, mas também em função do próprio processo de financeirização".
Na outra ponta do "novo regime de acumulação", os ensaios de Claude Serfati e Richard Farnetti identificam e analisam as novas formas de organização e as estratégias dos seus principais agentes "microeconômicos", os fundos de pensão, os "mutual funds" e os grandes grupos industriais.
O ensaio de Serfati concentra-se no estudo dos grandes grupos industriais franceses e constata um "aumento espetacular de suas aplicações financeiras, que acompanha, desde 1990, um desabamento igualmente espetacular dos seus investimentos produtivos". Constata, além disso, que o aumento da liquidez detida pelos grupos foi o que os empurrou na direção das fusões e privatizações também incluídas por seus gestores na categoria de "ativos financeiros rentáveis". Diz o autor que "uma das particularidades dessas operações é que, em vez de contribuir para uma retomada duradoura da acumulação de capital produtivo, elas se traduzem por um fortalecimento da financeirização dos grupos. Empresas e grupos inteiros foram adquiridos sob esta perspectiva, frequentemente esfacelados e, depois, revendidos".
O ensaio de Farnetti concentra-se no estudo dos fundos de pensão e investimentos coletivos anglo-saxões, os novos "investidores institucionais" que ocupam lugar central dentro do novo regime de acumulação. A pesquisa do autor mostra como o "curto-prazismo" é da essência desses grupos, sendo uma decorrência lógica de sua própria função. Uma capacidade e necessidade de alta liquidez e rápido retorno que faz o capital passar de um produto a outro com uma velocidade que hoje ultrapassa em muito o que se conheceu durante a vigência do padrão ouro, com a diferença que agora não existe mais um padrão monetário e "sim uma imensa pirâmide de ativos financeiros, e esses, frequentemente, são totalmente fictícios".
Nesse sentido, ambos autores concluem que no novo regime de acumulação, os horizontes de valorização do capital são muito curtos, e essa urgência orienta e se impõe também aos investimentos produtivos, levando Chesnais a concluir que "as formas de valorização exigidas por esse capital têm que atender à liquidez e segurança do investimento. E são especulativos no sentido de que são operações motivadas apenas pela expectativa de alterações no preço do ativo". Comportamentos e tendências que se intensificam e agravam na periferia do sistema, em que a instabilidade é mais alta e maior a propensão a manter-se em "estado de alerta", pronto para a fuga na direção de outro produto ou refúgio.
Outro ponto importante do argumento, que se constrói por meio dos vários ensaios do livro, tem a ver com as relações entre a mundialização, o novo regime de acumulação, as políticas públicas e as políticas monetárias nacionais em particular. Dominique Plihon analisa o processo de mão dupla responsável pelo efeito dominó que disseminou as políticas monetaristas pelo mundo e pelo efeito "boomerang" que essas mesmas políticas tiveram, imobilizando os seus estados de origem. Como se sabe, foi a partir das vitórias conservadoras do final da década de 70 e da reunião do G-5 em Tóquio, em 1979, que a estabilidade monetária passou a ser o objetivo prioritário dos governos centrais, enquanto o monetarismo e o liberalismo se tornavam a religião oficial da política econômica.
Desde então, as políticas monetárias restritivas tiveram sucesso no combate à inflação, mas desencadearam em todo o mundo uma alta das taxas de juros nominais que se mantiveram inalteradas durante as décadas seguintes, transformando-se em peça essencial do novo modo de acumulação financeirizado. Mas essas mesmas taxas permanentemente elevadas induziram uma desaceleração do crescimento econômico nos principais países industrializados e provocaram um desequilíbrio crescente das contas públicas, multiplicando por todo lado as famosas "crises de Estado".
Como as taxas de juros passaram a ser sistematicamente superiores às taxas de inflação e crescimento das economias centrais, transformaram-se em fonte de expansão contínua dos déficits públicos, que, alimentados pelos juros, aprisionaram e paralisaram as políticas públicas. Para sair do impasse, os Estados recorreram sucessivamente à "titulização" e venda de suas dívidas nos mercados financeiros, apelando aos investidores internacionais.
Essa foi, aliás, uma das primeiras razões por que as autoridades públicas de quase todos Estados centrais liberalizaram seus sistemas financeiros, buscando atender suas próprias necessidades de financiamento. Como resultado, depois de 15 anos, os mercados de títulos públicos tornaram-se um dos segmentos mais ativos do mercado financeiro internacional, só superado pelas operações cambiais. Por isso os autores dessa coletânea consideram que, se a alta das taxas de juros obedeceu inicialmente objetivos deflacionários, já faz tempo que elas se transformaram em peça essencial do novo modo de regulação internacional imposto pela desregulação das finanças.
Como consequência, pode-se prever um aumento contínuo e irreversível dos déficits públicos, sobretudo quando se tem presente que as altas taxas de juros têm sido acompanhadas pela queda das receitas fiscais decorrentes do achatamento salarial, da diminuição da produção e do emprego e da redução da tributação sobre os rendimentos do capital. Como diz Chesnais, neste regime econômico da mundialização financeira, os déficits crescem na forma de uma "bola de neve", modificando a divisão da renda em favor dos rendimentos financeiros e estrangulando os governos que aceitam e promovem sucessivos e inúteis ajustes orçamentários responsáveis pela crescente ingovernabilidade dos Estados e de suas instâncias subnacionais de poder.
Por isso, finalmente, acuados, os monetaristas que comandam a política econômica da maioria dos países capitalistas perdedores no jogo financeiro global começam hoje a implorar pela re-regulamentação dos mercados. Mas seguem desconhecendo o fato que "colocar em julgamento a "especulação" e sugerir que ela poderia ser exterminada graças a medidas menores, do tipo taxa Tobin, somente serve para ocultar as dimensões sistêmicas do regime mundial das finanças de mercado, bem como dos fundamentos de caráter rentista dos mecanismos de determinação das taxas de juros e das taxas de câmbio".
Como as teorias monetaristas não dão conta dos privilégios que o novo sistema outorga aos EUA e aos países detentores de moedas fortes, os seus defensores periféricos acabam depositando todas as suas esperanças num gesto benevolente dos que são os maiores beneficiários do novo regime das finanças desreguladas. Triste fim o da cretinice econômica, pior ainda o dos países perdedores, governados por esses idiotas.



A Mundialização Financeira
François Chesnais (org.) Tradução: Carmen Cacciacarro Ed. Xamã (Tel. 0/xx/11/575-9075) 334 págs., R$31,00




José Luís Fiori é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).



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