São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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A revolução

Em um cartão-postal, sua forma preferida de comunicação, já anunciara o fato a outro amigo, Conrad Habicht. Tratava-se da teoria da relatividade, e o jovem era Albert Einstein, que, alguns anos mais tarde, seria aclamado como "o novo Isaac Newton".
O motivo dessa comparação ainda não tinha aparecido: seria sua nova teoria da gravitação, de 1916, que substituiria a consagrada "gravitação universal" de sir Isaac, e que era uma extensão natural da relatividade de 1905.
Mas havia também um outro motivo: em 1666 Newton realizara um conjunto extraordinário de trabalhos em que a física, mas também a matemática, foi redesenhada. Na física, Newton não só resolveu um problema fundamental, o da gravitação, como forneceu, ao explicar, pelas mesmas leis, o movimento da Terra em torno do Sol, da Lua em torno da Terra e da "maçã" em direção ao centro da Terra, as primeiras bases sólidas que permitiam inferir que as leis da física válidas em torno de mim são as mesmas que regem "o céu estrelado sobre mim", para usar uma expressão de Kant.
E, de fato, foi o seu grande sucesso nessa unificação que gerou a filosofia básica da física moderna (isto é, pós-newtoniana), a que chamamos hoje de reducionismo. Surgiu, isto é, a tentação de desvendar, com essas mesmas leis, "a lei moral dentro de mim", para permanecer com Kant (o próprio Newton não poderia estar mais distante dessa posição: antes que o primeiro racionalista, é considerado hoje como o último mágico). Como subproduto de suas descobertas, Newton introduziu um método novo, que chamamos hoje de física teórica. Na matemática, inventou o cálculo diferencial e integral, concebendo pela primeira vez idéias e métodos adequados para descrever mudanças contínuas e, em particular, o movimento (em minha opinião essa descoberta foi a maior realização intelectual do milênio que terminou recentemente).
Por isso 1666 tem sido chamado de "annus mirabilis". Eis que 1905 foi também um ano miraculoso, dessa vez por obra e arte de Einstein. No resto deste texto explicaremos por quê.

Movimento molecular
Em 1925 Einstein, já famoso, visitou o Brasil, de passagem para a Argentina. Demorou-se alguns dias no Rio de Janeiro e cumpriu, entre conferências, o itinerário turístico tradicional. Teve como cicerone o inevitável Austregésilo de Athayde. Um jornal da época narra a seguinte história, certamente inventada. Einstein notara que Austregésilo, volta e meia, escrevinhava alguma coisa em seu caderno de notas. Perguntou-lhe do que se tratava. Austregésilo: "Sempre que tenho alguma idéia, anoto-a imediatamente. O senhor não faz isso?". Einstein: "É que eu só tive uma única idéia!".
Na verdade, só em 1905 Einstein tivera cinco grandes idéias, das quais resultaram cinco grandes trabalhos, que constituem o núcleo do livro que estou resenhando. O primeiro deles, na verdade, é uma transcrição, para o estilo das revistas científicas, de sua tese de doutoramento. Consiste num método de determinação do tamanho das moléculas de açúcar em uma solução aquosa, usando técnicas da mecânica dos fluidos e da teoria da difusão. Embora seu "orientador" fosse o físico experimental Alfred Kleiner, este não participou nem sequer da escolha do problema, fato insólito na época. O método permite também uma determinação do número de Avogadro. Por suas numerosas aplicações em muitas áreas da física e da química, tornou-se um dos trabalhos mais citados de Einstein.
No segundo, denominado "Sobre o Movimento de Pequenas Partículas em Suspensão em Líquidos em Repouso...", Einstein considera o seguinte problema: imagine uma pequena esfera imersa em um líquido em repouso. As moléculas do líquido chocam-se contra ela e, em primeira aproximação, o número de moléculas N que incidem "daqui pra lá" é o mesmo que o número M das que incidem "de lá pra cá", de maneira que a esfera permanece em repouso. Se a esfera for muito pequena, e sensível às colisões, mesmo a pequena diferença entre N e M faz-se sentir, e a esferinha realiza um movimento de ziguezague. Esse movimento tinha sido observado pelo botânico Robert Brown, que estudava pequenas partículas de pólen, e era denominado movimento browniano. No texto do artigo, diz Einstein: "É possível que os movimentos a serem aqui discutidos sejam idênticos ao assim chamado "movimento molecular browniano'; entretanto os dados que tenho disponíveis sobre este último são tão imprecisos que não poderia formar uma opinião a respeito". Einstein desenvolve importantes resultados da teoria das flutuações do equilíbrio e apresenta também um novo método de determinação das dimensões atômicas.

A teoria da relatividade
O terceiro artigo apresenta a teoria da relatividade. Chama-se "Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento". Curiosamente, não possui nenhuma referência, e a única pessoa nele citada é seu amigo Michele Besso, a quem agradece pelas "inúmeras e valiosas sugestões". Einstein manteve uma intensa correspondência com Besso ao longo de toda a sua vida. Esse precioso material foi publicado por Pierre Speziali num livro extraordinário. Besso era um engenheiro suíço-italiano.
Do que trata esse artigo? Num famoso texto Galileu argumenta que, dentro de um navio em águas tranquilas e com velocidade constante, experiências de mecânica são incapazes de revelar se o navio está andando ou parado. Nesse artigo Einstein mostra o que deve ser alterado no eletromagnetismo para que o movimento do navio tampouco possa ser revelado por experiências eletromagnéticas. As consequências são extraordinárias, e não só o eletromagnetismo, mas toda a física deve ser alterada.
Considere a seguinte experiência simples: em cima de uma mesa estão dois flashes eletrônicos, a uma distância L (medida sobre a mesa) um do outro. O primeiro dispara num instante T1, o segundo, num instante T2, medidos por um relógio sobre a mesa. Um segundo observador passa pela mesa, num trem, para usar uma imagem cara a Einstein, com velocidade constante V. Está munido de um relógio idêntico ao da mesa, e sincronizado com ele. Marca (na parede do trem) a posição do primeiro flash no instante em que ele dispara, bem como a leitura de seu relógio nesse instante. Faz o mesmo em relação ao disparo do segundo flash. Segundo Einstein, encontrará um intervalo de tempo, entre os flashes, diferente de T2-T1! Também a distância entre as marcas da parede no trem será diferente de L. Distâncias e durações passam a ser relativas. Uma continuação dessa análise mostrará que o conceito de simultaneidade também é relativo. Esses efeitos, porém, são extremamente pequenos se a velocidade V for pequena em relação à velocidade da luz.
No quarto artigo, "A Inércia de um Corpo Depende de Seu Conteúdo de Energia?", é obtida a mais famosa de todas as fórmulas, E = mc2, como uma aplicação da teoria da relatividade. Ela diz que um corpo de massa m, mesmo parado, possui uma quantidade enorme de energia, que, em princípio, pode ser usada para produzir trabalho. É bem sabido que os efeitos catastróficos de uma bomba atômica se devem a que uma pequena quantidade de massa é transformada em energia, rigorosamente segundo essa fórmula. A "melhor" dedução dela está num cartum imortal de Sidney Harris: Einstein está diante de uma lousa, onde estão escritas, e canceladas, as fórmulas E = ma2 e E = mb2. O mestre apronta-se para escrever a terceira tentativa...
O quinto artigo denomina-se "Sobre um Ponto de Vista Heurístico a respeito da Produção e Transformação da Luz" e contém uma explicação do "efeito fotoelétrico" ou, nas palavras de Einstein, da "geração de raios catódicos por meio da iluminação de corpos sólidos", pela introdução dos "quanta" de luz, que hoje chamamos fótons. Esse foi o artigo pelo qual Einstein recebeu o Prêmio Nobel de Física.

Um Einstein diferente
Note o leitor que esses artigos científicos são traduções dos originais, como apareceram na revista científica "Annalen der Physik". Estão, portanto, fora do alcance do leitor comum. Devem estar ao alcance de um bom estudante de física. Mais acessíveis são as notas de autoria de John Stachel, uma autoridade em Einstein e um dos editores de suas obras completas, que precedem cada artigo, bem como uma apresentação do famoso físico inglês Roger Penrose.
Para um estudante de física, a leitura deste livro será uma experiência valiosa e inesquecível. Os "cinco artigos que mudaram a face da física", como vem escrito na capa, são física da mais alta qualidade: exibem uma profunda compreensão dos fenômenos aliada ao mínimo de matemática. Surge um Einstein bem diferente da imagem popularmente divulgada, que o quer um gênio da matemática.
Einstein era um físico até a raiz dos cabelos, e sua formação matemática era inferior a muitos de seus contemporâneos, como Sommerfeld ou Lorentz. Era um mestre da termodinâmica, o que é uma boa caracterização de um físico "de verdade". Mais tarde as necessidades da teoria da relatividade o levaram a estudar e usar matemática mais avançada, mas mesmo então seu conhecimento era o de um praticante, e não o de uma autoridade: sua introdução ao cálculo tensorial, na parte B do famoso artigo "Die Grundlage der allgemeinen Relativitätstheorie", de 1916, contém demonstrações que deixam a desejar, embora sejam extremamente interessantes como esforço didático.
Em certa ocasião explicou por que, tendo estudado no Politécnico de Zurique, uma escola mais famosa pela sua matemática do que pela sua física, optara pela segunda. É que, disse, na matemática tudo lhe parecia igualmente importante, enquanto na física se sentia capaz de discernir o essencial do acessório.
Estamos todos mais ricos com a publicação desta excelente obra entre nós, com os cuidados que Einstein exige. Destaca-se a elegante, precisa e perspicaz tradução do professor Alexandre Tort. Anteriormente, um belo volume sobre a viagem de Einstein ao Brasil já tinha saído nessa coleção, dirigida por Ildeu de Castro Moreira. Quase simultaneamente, lança a Edusp o primeiro volume dos "Principia" de Newton. Alguma coisa está se movendo!


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.


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