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A revolução
Em um cartão-postal, sua forma
preferida de comunicação, já
anunciara o fato a outro amigo,
Conrad Habicht. Tratava-se da
teoria da relatividade, e o jovem
era Albert Einstein, que, alguns
anos mais tarde, seria aclamado
como "o novo Isaac Newton".
O motivo dessa comparação
ainda não tinha aparecido: seria
sua nova teoria da gravitação, de
1916, que substituiria a consagrada "gravitação universal" de sir
Isaac, e que era uma extensão natural da relatividade de 1905.
Mas havia também um outro
motivo: em 1666 Newton realizara
um conjunto extraordinário de
trabalhos em que a física, mas
também a matemática, foi redesenhada. Na física, Newton não só
resolveu um problema fundamental, o da gravitação, como
forneceu, ao explicar, pelas mesmas leis, o movimento da Terra
em torno do Sol, da Lua em torno
da Terra e da "maçã" em direção
ao centro da Terra, as primeiras
bases sólidas que permitiam inferir que as leis da física válidas em
torno de mim são as mesmas que
regem "o céu estrelado sobre
mim", para usar uma expressão
de Kant.
E, de fato, foi o seu grande sucesso nessa unificação que gerou
a filosofia básica da física moderna (isto é, pós-newtoniana), a que
chamamos hoje de reducionismo.
Surgiu, isto é, a tentação de desvendar, com essas mesmas leis, "a
lei moral dentro de mim", para
permanecer com Kant (o próprio
Newton não poderia estar mais
distante dessa posição: antes que
o primeiro racionalista, é considerado hoje como o último mágico).
Como subproduto de suas descobertas, Newton introduziu um
método novo, que chamamos hoje de física teórica. Na matemática, inventou o cálculo diferencial
e integral, concebendo pela primeira vez idéias e métodos adequados para descrever mudanças
contínuas e, em particular, o movimento (em minha opinião essa
descoberta foi a maior realização
intelectual do milênio que terminou recentemente).
Por isso 1666 tem sido chamado
de "annus mirabilis". Eis que 1905
foi também um ano miraculoso,
dessa vez por obra e arte de Einstein. No resto deste texto explicaremos por quê.
Movimento molecular
Em 1925 Einstein, já famoso, visitou o Brasil, de passagem para a
Argentina. Demorou-se alguns
dias no Rio de Janeiro e cumpriu,
entre conferências, o itinerário turístico tradicional. Teve como cicerone o inevitável Austregésilo
de Athayde. Um jornal da época
narra a seguinte história, certamente inventada. Einstein notara
que Austregésilo, volta e meia, escrevinhava alguma coisa em seu
caderno de notas. Perguntou-lhe
do que se tratava. Austregésilo:
"Sempre que tenho alguma idéia,
anoto-a imediatamente. O senhor
não faz isso?". Einstein: "É que eu
só tive uma única idéia!".
Na verdade, só em 1905 Einstein
tivera cinco grandes idéias, das
quais resultaram cinco grandes
trabalhos, que constituem o núcleo do livro que estou resenhando. O primeiro deles, na verdade,
é uma transcrição, para o estilo
das revistas científicas, de sua tese
de doutoramento. Consiste num
método de determinação do tamanho das moléculas de açúcar
em uma solução aquosa, usando
técnicas da mecânica dos fluidos e
da teoria da difusão. Embora seu
"orientador" fosse o físico experimental Alfred Kleiner, este não
participou nem sequer da escolha
do problema, fato insólito na época. O método permite também
uma determinação do número de
Avogadro. Por suas numerosas
aplicações em muitas áreas da física e da química, tornou-se um
dos trabalhos mais citados de
Einstein.
No segundo, denominado "Sobre o Movimento de Pequenas
Partículas em Suspensão em Líquidos em Repouso...", Einstein
considera o seguinte problema:
imagine uma pequena esfera
imersa em um líquido em repouso. As moléculas do líquido chocam-se contra ela e, em primeira
aproximação, o número de moléculas N que incidem "daqui pra
lá" é o mesmo que o número M
das que incidem "de lá pra cá", de
maneira que a esfera permanece
em repouso. Se a esfera for muito
pequena, e sensível às colisões,
mesmo a pequena diferença entre
N e M faz-se sentir, e a esferinha
realiza um movimento de ziguezague. Esse movimento tinha sido
observado pelo botânico Robert
Brown, que estudava pequenas
partículas de pólen, e era denominado movimento browniano. No
texto do artigo, diz Einstein: "É
possível que os movimentos a serem aqui discutidos sejam idênticos ao assim chamado "movimento molecular browniano'; entretanto os dados que tenho disponíveis sobre este último são tão imprecisos que não poderia formar
uma opinião a respeito". Einstein
desenvolve importantes resultados da teoria das flutuações do
equilíbrio e apresenta também
um novo método de determinação das dimensões atômicas.
A teoria da relatividade
O terceiro artigo apresenta a
teoria da relatividade. Chama-se
"Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento". Curiosamente, não possui nenhuma referência, e a única pessoa nele citada é seu amigo Michele Besso, a
quem agradece pelas "inúmeras e
valiosas sugestões". Einstein
manteve uma intensa correspondência com Besso ao longo de toda a sua vida. Esse precioso material foi publicado por Pierre Speziali num livro extraordinário.
Besso era um engenheiro suíço-italiano.
Do que trata esse artigo? Num
famoso texto Galileu argumenta
que, dentro de um navio em
águas tranquilas e com velocidade
constante, experiências de mecânica são incapazes de revelar se o
navio está andando ou parado.
Nesse artigo Einstein mostra o
que deve ser alterado no eletromagnetismo para que o movimento do navio tampouco possa
ser revelado por experiências eletromagnéticas. As consequências
são extraordinárias, e não só o eletromagnetismo, mas toda a física
deve ser alterada.
Considere a seguinte experiência simples: em cima de uma mesa
estão dois flashes eletrônicos, a
uma distância L (medida sobre a
mesa) um do outro. O primeiro
dispara num instante T1, o segundo, num instante T2, medidos por
um relógio sobre a mesa. Um segundo observador passa pela mesa, num trem, para usar uma imagem cara a Einstein, com velocidade constante V. Está munido de
um relógio idêntico ao da mesa, e
sincronizado com ele. Marca (na
parede do trem) a posição do primeiro flash no instante em que ele
dispara, bem como a leitura de
seu relógio nesse instante. Faz o
mesmo em relação ao disparo do
segundo flash. Segundo Einstein,
encontrará um intervalo de tempo, entre os flashes, diferente de
T2-T1! Também a distância entre
as marcas da parede no trem será
diferente de L. Distâncias e durações passam a ser relativas. Uma
continuação dessa análise mostrará que o conceito de simultaneidade também é relativo. Esses
efeitos, porém, são extremamente
pequenos se a velocidade V for
pequena em relação à velocidade
da luz.
No quarto artigo, "A Inércia de
um Corpo Depende de Seu Conteúdo de Energia?", é obtida a
mais famosa de todas as fórmulas,
E = mc2, como uma aplicação da
teoria da relatividade. Ela diz que
um corpo de massa m, mesmo
parado, possui uma quantidade
enorme de energia, que, em princípio, pode ser usada para produzir trabalho. É bem sabido que os
efeitos catastróficos de uma bomba atômica se devem a que uma
pequena quantidade de massa é
transformada em energia, rigorosamente segundo essa fórmula. A
"melhor" dedução dela está num
cartum imortal de Sidney Harris:
Einstein está diante de uma lousa,
onde estão escritas, e canceladas,
as fórmulas E = ma2 e E = mb2. O
mestre apronta-se para escrever a
terceira tentativa...
O quinto artigo denomina-se
"Sobre um Ponto de Vista Heurístico a respeito da Produção e
Transformação da Luz" e contém
uma explicação do "efeito fotoelétrico" ou, nas palavras de Einstein, da "geração de raios catódicos por meio da iluminação de
corpos sólidos", pela introdução
dos "quanta" de luz, que hoje chamamos fótons. Esse foi o artigo
pelo qual Einstein recebeu o Prêmio Nobel de Física.
Um Einstein diferente
Note o leitor que esses artigos científicos são traduções dos originais, como apareceram na revista científica "Annalen der Physik". Estão, portanto, fora do
alcance do leitor comum. Devem estar ao alcance de um bom estudante de física. Mais acessíveis são as notas de autoria de John Stachel, uma autoridade em Einstein e um dos editores de suas obras completas, que precedem cada artigo, bem como uma apresentação do famoso físico inglês Roger
Penrose.
Para um estudante de física, a
leitura deste livro será uma experiência valiosa e inesquecível. Os
"cinco artigos que mudaram a face da física", como vem escrito na
capa, são física da mais alta qualidade: exibem uma profunda
compreensão dos fenômenos
aliada ao mínimo de matemática.
Surge um Einstein bem diferente
da imagem popularmente divulgada, que o quer um gênio da matemática.
Einstein era um físico até a raiz
dos cabelos, e sua formação matemática era inferior a muitos de
seus contemporâneos, como
Sommerfeld ou Lorentz. Era um
mestre da termodinâmica, o que é
uma boa caracterização de um físico "de verdade". Mais tarde as
necessidades da teoria da relatividade o levaram a estudar e usar
matemática mais avançada, mas
mesmo então seu conhecimento
era o de um praticante, e não o de
uma autoridade: sua introdução
ao cálculo tensorial, na parte B do
famoso artigo "Die Grundlage der
allgemeinen Relativitätstheorie",
de 1916, contém demonstrações
que deixam a desejar, embora sejam extremamente interessantes
como esforço didático.
Em certa ocasião explicou por
que, tendo estudado no Politécnico de Zurique, uma escola mais
famosa pela sua matemática do
que pela sua física, optara pela segunda. É que, disse, na matemática tudo lhe parecia igualmente
importante, enquanto na física se
sentia capaz de discernir o essencial do acessório.
Estamos todos mais ricos com a
publicação desta excelente obra
entre nós, com os cuidados que
Einstein exige. Destaca-se a elegante, precisa e perspicaz tradução do professor Alexandre Tort.
Anteriormente, um belo volume
sobre a viagem de Einstein ao
Brasil já tinha saído nessa coleção,
dirigida por Ildeu de Castro Moreira. Quase simultaneamente,
lança a Edusp o primeiro volume
dos "Principia" de Newton. Alguma coisa está se movendo!
Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.
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