São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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Crítica de sete faces

Vinte e um ensaios de João Alexandre

LETÍCIA MALARD

Alguma Crítica
João Alexandre Barbosa
Ateliê Editorial
(Tel.0/xx/11/4612-9666)
348 págs., R$ 36,00

"Alguma Crítica" reúne 21 ensaios, entre inéditos e publicados. Para eles pode-se transpor a comparação que João Cabral criou para o rio de "O Cão sem Plumas": "Espesso/ (como uma ave/ que vai cada segundo/ conquistando seu vôo)". Os ensaios se adensam à medida que o caminho hermenêutico vai adentrando os textos-objeto de estudo, até atingir as suas entranhas. Cada passo é uma conquista de disciplina crítica e de uma prática discursiva erudita, sem adornos, que se caracteriza pela espessura do cão sem plumas.
Tanto o título quanto a formatação do livro remetem a "Alguma Poesia", de Drummond, porém numa ordem invertida de cronologia e de experiências com a escrita. Se, no primeiro livro do poeta, longe estava ele da maturidade criadora, neste último do crítico, em pleno vigor produtivo, a maturidade aflora. Sua perspicácia de leitor privilegiado faz com que retorne a assuntos antes abordados -como José Veríssimo e João Cabral- ou apresente leituras fundadoras sobre escritores que lê e relê há muito.
O livro tem três secções -"Crítica e Historiografia", "Prosa", "Poesia"- e cada uma se divide em sete partes, tal como as sete estrofes do "Poema de Sete Faces", que abre "Alguma Poesia". O crítico não é um "gauche" profissional, mas sua foto -tanto de rosto quanto de intelecto- está clicada na quarta estrofe, a do homem atrás dos óculos e do bigode, sério, simples e forte. E a fumaça do seu cachimbo subindo, sentado de bem com a vida na poltrona de humorista inglês, foi deslocado para o poema "Sweet Home".
Outras intertextualizações podem ser descobertas em "Ensaios versus Poemas": do poema "Infância", a eterna história de Robson Crusoé reacende-se no segundo ensaio, "Para a Biblioteca do Século", discussão crítico-analítica sobre as eternas leituras que marcaram o 20. Esse ensaio também dialoga com o poema "Europa, França e Bahia", que chamaríamos de peão articulador da montagem de "Alguma Crítica". O poeta começa falando de seus olhos brasileiros sonhando exotismos, passeando por Paris, pela Mancha, Londres, Rússia, Itália etc. Acaba saudoso, dizendo que sua boca procura a "Canção do Exílio".
Ora, o ensaísta escreve sobre os francófilos Valéry e Ponge, ressaltando a complexidade de seus projetos literários experimentais. Visita Cervantes, pontuando leituras de vários estudiosos do "Quixote", inclusive as do tão londrino Borges. Surpreende Dostoiévski em sua imaginação extremada, exposta na "enciclopédia de gêneros" que é o "Diário", bem como os motivos da permanência de seus romances. Comenta o livro de Anselmo Pessoa Neto sobre Italo Calvino.

Poetas brasileiros
Nos três últimos textos, desembarca no Brasil. Viaja pelos fundamentos da obra de João Cabral, ou seja, as tensões entre composição e expressão, e se ilumina com o poeta-crítico. Percorre o meio século de poesia de Haroldo de Campos, navegador no mar de significantes e realizador de convergências. Fecha o volume com o co-estaduano Sebastião Uchoa Leite, focalizando-lhe a rara poética, a propósito de seu último livro, "A Espreita". O único desvio de rota é o ensaio sobre "Conhecimento Proibido", de R. Shattuck, o qual hoje lê Sade com moralismo polêmico.
No texto que abre o volume, "Literatura e Sociedade do Fim do Século", o crítico prepara teoricamente o leitor para as leituras dos ensaios subsequentes. Insiste em que, para que uma obra do passado se transforme em nossa contemporânea, fazem-se necessários o preenchimento ou a recuperação dos "acréscimos de significante", e não apenas de significados. Isso é o que permite o sentido de continuidade da leitura para além do tempo e do espaço em que a obra foi escrita, mediado pela experiência de outras obras e outras leituras. Daí uma relação com o texto respaldada nas transformações dos modos de articulação entre experiência, representação e linguagem, que, nos dizeres do crítico, são vetores principais entre literatura e sociedade.
Assim, João Alexandre trabalha as faces do texto primeiro e dos metatextos, reconstruindo-os num produto final -o seu próprio texto, em cuja densidade permeiam as práticas sociais dos textos trabalhados. Esse procedimento justifica as longas citações, que permitem fisgar os elementos significantes que comporão a visibilidade final do texto último, ou seja, o ensaio do crítico
Seu melhor exemplo comparece nos três ensaios sobre "Dom Quixote", cujo fulcro são as leituras de Maria Augusta da Costa Vieira, José Veríssimo e as várias de Borges, perpassadas pela recepção dessa narrativa no Brasil. Neles se patenteia a prática crítica em que se articulam experiência, representação e linguagem. Trata-se de uma crítica socioliterária crítica da crítica, se assim se pode chamá-la, e que não deve ser confundida com o simples comentário argumentativo-sociológico de um tipo de leitura-padrão.
No capítulo quatro, a propósito das relações sociais entre literatura e história, o crítico analisa o "Instinto de Nacionalidade", de Machado de Assis. A intuição machadiana do nacional ultrapassa a questão da representatividade da tradição histórica, fundamental em Santiago Nunes Ribeiro. Continuando as reflexões sobre a imitação, chega a Antonio Candido relendo Machado cem anos depois, em "Os Primeiros Baudelairianos": Candido transforma a imitação de Baudelaire, defeito para Machado, em instrumento cultural demolidor pela nova geração de poetas, afirma Barbosa.
Nos capítulos seguintes o crítico retoma José Veríssimo, em duas vertentes: enquanto leitor de estrangeiros e como historiador de nossa literatura. Na primeira -para ressaltar como Veríssimo, ao falar de homens e coisas de fora, às vezes distantes no tempo e lugar-, atualiza-os para a circunstância brasileira, fazendo-os aqui repercutir. Na segunda, torna espesso o tecido analítico ao apontar os erros e acertos do historiador literário, sob a ótica do tripé experiência, representação e linguagem. Os erros são: Gregório de Matos apequenado como imitador, e ausência dos poetas simbolistas. O maior acerto foi iniciar uma nova historiografia cuja continuidade será dada por Candido, na década de 50, assunto do capítulo seguinte.
Ao tratar do método crítico do grande mestre, João Alexandre acentua a integração dos elementos internos e externos, incluindo os psicológicos, sem se limitar ao contexto social e histórico, o que irá resultar no valor da obra. Certa vez, Antonio Candido escreveu que a literatura é uma atividade sem sossego. Transpondo a metáfora para a crítica literária, poderíamos dizer que "Alguma Crítica" é um livro de desassossego, com os cinco "s" do vocábulo: sério, sereno, significativo, sólido e sustentável.


Letícia Malard é professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


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