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Crítica de sete faces
Vinte e um ensaios de João Alexandre
LETÍCIA MALARD
Alguma Crítica
João Alexandre Barbosa
Ateliê Editorial
(Tel.0/xx/11/4612-9666)
348 págs., R$ 36,00
"Alguma Crítica" reúne 21 ensaios, entre inéditos e publicados.
Para eles pode-se transpor a comparação que João Cabral criou para o rio de "O Cão sem Plumas":
"Espesso/ (como uma ave/ que
vai cada segundo/ conquistando
seu vôo)". Os ensaios se adensam
à medida que o caminho hermenêutico vai adentrando os textos-objeto de estudo, até atingir as
suas entranhas. Cada passo é uma
conquista de disciplina crítica e de
uma prática discursiva erudita,
sem adornos, que se caracteriza
pela espessura do cão sem plumas.
Tanto o título quanto a formatação do livro remetem a "Alguma
Poesia", de Drummond, porém
numa ordem invertida de cronologia e de experiências com a escrita. Se, no primeiro livro do poeta, longe estava ele da maturidade
criadora, neste último do crítico,
em pleno vigor produtivo, a maturidade aflora. Sua perspicácia
de leitor privilegiado faz com que
retorne a assuntos antes abordados -como José Veríssimo e
João Cabral- ou apresente leituras fundadoras sobre escritores
que lê e relê há muito.
O livro tem três secções -"Crítica e Historiografia", "Prosa",
"Poesia"- e cada uma se divide
em sete partes, tal como as sete estrofes do "Poema de Sete Faces",
que abre "Alguma Poesia". O crítico não é um "gauche" profissional, mas sua foto -tanto de rosto
quanto de intelecto- está clicada
na quarta estrofe, a do homem
atrás dos óculos e do bigode, sério, simples e forte. E a fumaça do
seu cachimbo subindo, sentado
de bem com a vida na poltrona de
humorista inglês, foi deslocado
para o poema "Sweet Home".
Outras intertextualizações podem ser descobertas em "Ensaios
versus Poemas": do poema "Infância", a eterna história de Robson Crusoé reacende-se no segundo ensaio, "Para a Biblioteca
do Século", discussão crítico-analítica sobre as eternas leituras que
marcaram o 20. Esse ensaio também dialoga com o poema "Europa, França e Bahia", que chamaríamos de peão articulador da
montagem de "Alguma Crítica".
O poeta começa falando de seus
olhos brasileiros sonhando exotismos, passeando por Paris, pela
Mancha, Londres, Rússia, Itália
etc. Acaba saudoso, dizendo que
sua boca procura a "Canção do
Exílio".
Ora, o ensaísta escreve sobre os
francófilos Valéry e Ponge, ressaltando a complexidade de seus
projetos literários experimentais.
Visita Cervantes, pontuando leituras de vários estudiosos do
"Quixote", inclusive as do tão londrino Borges. Surpreende Dostoiévski em sua imaginação extremada, exposta na "enciclopédia
de gêneros" que é o "Diário", bem
como os motivos da permanência
de seus romances. Comenta o livro de Anselmo Pessoa Neto sobre Italo Calvino.
Poetas brasileiros
Nos três últimos textos, desembarca no Brasil. Viaja pelos fundamentos da obra de João Cabral, ou seja, as tensões entre composição e expressão, e se ilumina com o poeta-crítico. Percorre o meio
século de poesia de Haroldo de
Campos, navegador no mar de
significantes e realizador de convergências. Fecha o volume com o
co-estaduano Sebastião Uchoa
Leite, focalizando-lhe a rara poética, a propósito de seu último livro, "A Espreita". O único desvio
de rota é o ensaio sobre "Conhecimento Proibido", de R. Shattuck,
o qual hoje lê Sade com moralismo polêmico.
No texto que abre o volume,
"Literatura e Sociedade do Fim do
Século", o crítico prepara teoricamente o leitor para as leituras dos
ensaios subsequentes. Insiste em
que, para que uma obra do passado se transforme em nossa contemporânea, fazem-se necessários o preenchimento ou a recuperação dos "acréscimos de significante", e não apenas de significados. Isso é o que permite o sentido de continuidade da leitura
para além do tempo e do espaço
em que a obra foi escrita, mediado
pela experiência de outras obras e
outras leituras. Daí uma relação
com o texto respaldada nas transformações dos modos de articulação entre experiência, representação e linguagem, que, nos dizeres
do crítico, são vetores principais
entre literatura e sociedade.
Assim, João Alexandre trabalha
as faces do texto primeiro e dos
metatextos, reconstruindo-os
num produto final -o seu próprio texto, em cuja densidade permeiam as práticas sociais dos textos trabalhados. Esse procedimento justifica as longas citações,
que permitem fisgar os elementos
significantes que comporão a visibilidade final do texto último, ou
seja, o ensaio do crítico
Seu melhor exemplo comparece
nos três ensaios sobre "Dom Quixote", cujo fulcro são as leituras
de Maria Augusta da Costa Vieira,
José Veríssimo e as várias de Borges, perpassadas pela recepção
dessa narrativa no Brasil. Neles se
patenteia a prática crítica em que
se articulam experiência, representação e linguagem. Trata-se de
uma crítica socioliterária crítica
da crítica, se assim se pode chamá-la, e que não deve ser confundida com o simples comentário
argumentativo-sociológico de um
tipo de leitura-padrão.
No capítulo quatro, a propósito
das relações sociais entre literatura e história, o crítico analisa o
"Instinto de Nacionalidade", de
Machado de Assis. A intuição machadiana do nacional ultrapassa a
questão da representatividade da
tradição histórica, fundamental
em Santiago Nunes Ribeiro. Continuando as reflexões sobre a imitação, chega a Antonio Candido
relendo Machado cem anos depois, em "Os Primeiros Baudelairianos": Candido transforma a
imitação de Baudelaire, defeito
para Machado, em instrumento
cultural demolidor pela nova geração de poetas, afirma Barbosa.
Nos capítulos seguintes o crítico
retoma José Veríssimo, em duas
vertentes: enquanto leitor de estrangeiros e como historiador de
nossa literatura. Na primeira
-para ressaltar como Veríssimo,
ao falar de homens e coisas de fora, às vezes distantes no tempo e
lugar-, atualiza-os para a circunstância brasileira, fazendo-os
aqui repercutir. Na segunda, torna espesso o tecido analítico ao
apontar os erros e acertos do historiador literário, sob a ótica do
tripé experiência, representação e
linguagem. Os erros são: Gregório
de Matos apequenado como imitador, e ausência dos poetas simbolistas. O maior acerto foi iniciar
uma nova historiografia cuja continuidade será dada por Candido,
na década de 50, assunto do capítulo seguinte.
Ao tratar do método crítico do
grande mestre, João Alexandre
acentua a integração dos elementos internos e externos, incluindo
os psicológicos, sem se limitar ao
contexto social e histórico, o que
irá resultar no valor da obra. Certa
vez, Antonio Candido escreveu
que a literatura é uma atividade
sem sossego. Transpondo a metáfora para a crítica literária, poderíamos dizer que "Alguma Crítica" é um livro de desassossego,
com os cinco "s" do vocábulo: sério, sereno, significativo, sólido e
sustentável.
Letícia Malard é professora aposentada
da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
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