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Reinventar a cidade
Estudos examinam praças e parques brasileiros
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO
Praças Brasileiras
Fabio Robba e Silvio Soares Macedo
Edusp/ Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo
(Tel. 0/xx/11/3091-4156)
311 págs., R$ 75,00
Parques Urbanos no Brasil
Silvio Soares Macedo e
Francine Gramacho Sakata
Edusp/ Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo
207 págs., R$ 60,00
Fruto da pesquisa realizada pelo Projeto Quapá -Quadros do Paisagismo no
Brasil (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP)-, os dois livros se complementam e oferecem um panorama da
história e dos principais conceitos, problemas e procedimentos projetuais relativos a esses espaços fundamentais para a
construção da dimensão pública de nossas cidades: as praças e os parques.
Nossa bibliografia a respeito do assunto
é extremamente precária. Temos trabalhos específicos como, por exemplo, sobre a obra de Burle Marx; relatórios ou levantamentos assistemáticos ou aplicados
apenas a contextos restritos; e, ainda, algumas teorias sobre esses lugares intra-urbanos, mas de matriz estrangeira ou
não suficientemente apoiadas em exemplos e levantamentos mais rigorosos ou
adequados ao nosso contexto. "Praças
Brasileiras" e "Parques Urbanos no Brasil" suprem um pouco essa lacuna.
Não esgotam a teoria e a revisão histórica a respeito do assunto nem alcançam o
nível crítico exigido num ensaio. Seu objetivo é outro: registrar e sistematizar a extensa produção das praças e parques
no Brasil desde o século 19 até nossos dias
e introduzir uma pedagogia das estratégias de projeto, da conservação e da valorização da arquitetura paisagística brasileira. Alcançarem plenamente esse objetivo e, portanto, configurarem-se como
inéditas em nosso meio é o maior mérito
destas publicações e das pesquisas que as
alimentam.
A primeira parte de ambos os livros dedica-se a uma revisão histórica da evolução desses logradouros nos últimos dois
séculos, desde as suas origens entre nós,
como os largos da cidade colonial, até as
principais diretrizes e problemas afetos à
sua produção contemporânea, como os
espaços temáticos e ecológicos, os calçadões e os parques lineares à margem de
praias ou rios, antes desvalorizados.
Três grandes estratégias projetuais conformam essa história. Os projetos "ecléticos" nos oferecem composições clássicas
e românticas nas quais desfruta-se um lazer contemplativo de matriz européia,
sobretudo francesa e inglesa, como as
praças-jardins, os bulevares e os passeios
públicos. O "modernismo" nos introduz
em espaços voltados para um lazer mais
ativo e dirigido a todas as camadas da população. Neles assistimos também à
emergência de projetos voltados para a
construção de uma identidade nacional,
explorando usos e recursos próprios ao
nosso contexto natural e cultural.
Espaços multifuncionais
O período ou linha "contemporânea",
cuja base ainda é modernista, caracteriza-se pela produção de espaços multifuncionais, combinando fortemente o lazer
ativo com o comércio e o lazer contemplativo, uma acentuada liberdade de formas e usos, um caráter mais cenográfico
e uma preocupação com revitalizações
do espaço preexistente fundamentais para a preservação de nossa memória histórica e cultural, como no Bairro do Recife,
no Pelourinho (Salvador) e na Praça Ari
Coelho (Campo Grande).
Amplamente ilustrados com fotos, diagramas e desenhos, esses três períodos e
procedimentos projetuais são complementados na parte final dos dois livros
pela apresentação sumária de vários parques e praças encontrados nas principais
cidades brasileiras, especialmente em
suas capitais, e que englobam "o que
mais significativo se produziu no país
nessa área".
Aí visitamos, por exemplo, os remanescentes da mata amazônica no Bosque Rodrigues Alves, em Belém, e no Parque do
Mindu, em Manaus; o vigor e a brasilidade de Burle Marx na Praça Alberto D. Simão ou no Parque das Mangabeiras, em
Belo Horizonte, na Praça de Casa Forte,
em Recife, na Praça Duque de Caxias, em
Brasília, e no Calçadão de Copacabana,
no Rio; a perenidade do Campo de Santana e a antiguidade e exuberância do Jardim Botânico, também no Rio; o extenso
investimento curitibano, destacando-se a
relação da arquitetura com a natureza como nas obras coordenadas por D. Bongestabs e no Jardim Ambiental 1; os grafismos contemporâneos e a superposição
de percursos na Praça Pio 12, em Florianópolis; a cuidadosa elaboração do Horto Florestal Antônio de Albuquerque, em
Campo Grande; a integração com o tecido urbano do Parque do Pajeú, em Fortaleza, e entre os espaços público e privado,
no Centro Itaú Conceição, em São Paulo;
a função e dimensão metropolitanas do
Anhagabaú, do Ibirapuera e do Parque
Raposo Tavares, erguido sobre o lixo,
também na capital paulista.
O resultado é uma sistematização funcional, morfológica e histórica, oportuna
não apenas para a formação de arquitetos, urbanistas e paisagistas, mas também
para colocar em cena a relevância desses
lugares e dos valores públicos que os legitimam, fomentar sua discussão e crítica,
alavancar novos estudos e ampliar e difundir a base de conhecimento e o repertório dos futuros produtores da paisagem
urbana brasileira. Sobretudo em um momento onde a valorização do design e a
requalificação dos ambientes urbanos, a
demanda de espaços públicos de lazer e
as preocupações de caráter ambiental
tornam-se temas centrais do planejamento das nossas cidades, o trabalho torna-se de grande valia.
Ao estudarem praças e parques urbanos, os livros nos introduzem também as
concepções da cidade e os modos pelos
quais são vividas em nosso contexto. No
conto "Tempo de Crise" e em "A Semana" (29/1 e 13/8 de 1893), Machado de Assis vê a Rua do Ouvidor -fechada ao
trânsito de cavalos e carroças desde 1867
para se converter em ponto de encontro
de toda a sociedade- como uma "espécie de loja única, variada, estreita e comprida", logradouro que "resume o Rio de
Janeiro", "rosto eloqüente que exprime
todos os sentimentos e todas as idéias" e
"onde a vida passa em burburinho de todos os dias e a cada hora". Em ambientes
como este, se funda a comunidade e se inventam a polis e o seu comércio de homens, mulheres, culturas, sentimentos,
idéias e mercadorias.
Ao final de sua vida, contudo, saindo da
Garnier e vendo, 15 anos depois, a mesma
rua tomada por pessoas ofegantes e sem
trocarem um olhar ou cumprimento,
Machado sacode a cabeça tristemente e
murmura a Manuel Bonfim: "Festa de estalagem, todos dançam e ninguém se conhece". Nessa última Rua do Ouvidor
vista pelo escritor, prenúncio do que assistimos hoje nas multidões que desfilam
nos shoppings, já nada mais se funda e se
inventa. Estudar os parques e praças da
cidade é modo de se combater este mundo estéril e privado de toda alma citadina,
cuja expulsão da polis iniciou-se juntamente com a daqueles que habitavam os
cortiços e os becos do velho Centro e foram obrigados a se exilarem nos morros:
"Sem embargo, lá vão os quiosques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as turcas e árabes, os engraxadores de
botas, uma porção de negócios de rua,
que nos dava certa feição de grande cidade levantina", lamentava Machado.
Cumpre fazer das praças e parques
-tão mal conservados quanto os valores
públicos diante da voracidade do interesse privado- o local da festa cívica e do
encontro em que reinventamos a cidade e
nos reconhecemos aderidos a uma mesma comunidade de espaço, história, tradição e identidade. "Praças Brasileiras" e
"Parques Urbanos no Brasil" incentivam-nos a investigar os "rostos em que se
resumem nossas cidades" e as almas que
as frequentam ou as abandonam, se elas
passam a abrigar apenas as "festas de estalagem" e os logradouros da solidão. Entre os dois olhares de Machado sobre a
Rua do Ouvidor movimenta-se a nossa
leitura quando passamos as páginas coloridas destas duas obras. Também por isso, vale a pena consultá-las: nelas frequentamos os quiosques onde a fecundidade do encontro com o outro compensa
as faltas de uma vida pública cada vez
mais escassa.
Carlos Antônio Leite Brandão é professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
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