São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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Collor e Lamarca

CLÁUDIO LEITÃO

Invasões no Carrossel
Rui Mourão
Mandarim (Tel. 0/xx/11/3649-4600)
347 págs., R$ 37,00

O guerrilheiro Carlos Lamarca, nome de impacto na história recente do Brasil, é personagem de "Invasões no Carrossel", de Rui Mourão, ensaísta e romancista premiado com "Boca de Chafariz" (1992). Morto pelas forças oficiais, inicia e encerra a narração reflexiva, para contar a morte da amante e a sua própria morte. Fernando Collor de Mello é o outro nome que se transfunde em personagem de ficção nesse mesmo carrossel de vozes giratórias. O tom é cambiante e profético. O livro abrange a campanha, o curto mandato presidencial e a deposição de Collor e seus aliados. Nomes conhecidos e inventados tornam-se igualmente personagens. Realidade e ficção querem fundir-se.
As tonalidades modulam-se segundo as várias personagens e a voz espectral de Lamarca, um tanto hamletiana. O nome e a presença de Collor aparecem ainda no primeiro capítulo, na consciência do capitão, como "um nome para lembrar que no Brasil a história continuará se repetindo". Collor tem a instabilidade de uma personagem obstinada e caótica. Beira a alucinação, por droga, na obsessão por um trono imperial. Esgares macbethianos aparecem quando da destituição.
No que tange à personagem Paulo César Faria, os trechos no livro são sempre monótonos, pois aproveitam-se das situações de depoimento sobre a corrupção, para forjar malícia de criminoso. E confessional é o tom apaixonado de Carminha Monteiro, moça atingida pelo erotismo da campanha presidencial carismática de Collor.
O estilo jornalístico contrapõe-se à harmonia tonal da introspecção. Trata-se de um estilo que se insurgiu contra a censura dos jornais da década de 70. Nos livros autobiográficos dos militantes clandestinos, encontra-se o registro de fatos de circulação proibida, como suplemento a um vazio jornalístico momentâneo. "O Que É Isso, Companheiro?", de Gabeira, "Os Carbonários", de Sirkis, "Cartas da Prisão", de Flávia Schilling, "Memórias", de Gregório Bezerra, sirvam de exemplos. Duas décadas antes desses livros, as "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos, legitimaram a denúncia como gênero literário. Em Mourão, Lamarca retorna hoje para escrever o seu livro da guerrilha.
Sob estilos, reside uma prática depoente, como de caso-verdade, comum no cenário da relação entre uma imprensa pouco livre e seu imenso público deseducado para a informação e interpretação de fatos. O leitor encontra diversas maneiras de narrar. Ora uma personagem reflete, ora um narrador comanda pensamentos e fatos acontecidos. Ou, ainda, esses dois pontos de vista se fundem. Predomina a inquietação de consciências as mais díspares, como a de Fritz Teixeira de Salles, personagem homônima de um escritor e jornalista, e a de Collor.
Com o mergulho, algumas personagens são viradas pelo avesso. Carminha Monteiro faz o folhetim da sua própria realidade. O caso platônico fica em suspenso, para o seguidor do folhetim. Desenhado em parte à maneira dos narradores behavioristas, isto é, de consciência rasa e quase nula, o Fernando Collor deste livro tem as atitudes de um megalômano vazio. Na campanha presidencial, "entregou-se ao inflado encontro com a sensibilidade do acontecer", conduta que o levará ao cargo pretendido. A transcrição diz o máximo de absolutamente nada, mas tem tanta sonoridade quanto efeito. Com esses traços, Fernando reforça a inquietação geral das consciências do mesmo mundo, que é o de um livro sobre acontecimentos postos na clave da paródia.
Maior rendimento introspectivo é atingido através das situações de mergulho nas personagens que giram a cada mudança de capítulo. Mas alguns capítulos mostram a condução tênue de um narrador geral, jornalístico e ao mesmo tempo épico. Distanciado dos fatos para pensar sobre eles, e próximo o suficiente a ponto de procurar envolver o leitor.
Sem saber se ressuscitou ou não morreu, "Carlos Lamarca" nomeia a voz da personagem de Rui Mourão engendrada à maneira dos mortos atuantes do mexicano Juan Rulfo. Uma sobrevivência restada, "interminável ascese da construção do homem pelo homem" ou um espectro pensante de Lamarca vem à cena romanesca para conferir o ser, o não-ser e as questões de uma nova ordem. E essa nova ordem transita sem direção por entre domínios tradicionais de esquerda, centro e direita, em mutante "posição de povos e países, de forças e mandos, como se uma avalanche houvesse levado de roldão o apoio de um equilíbrio".
Fantástico, absurdo e "nonsense" são recursos encontrados em equilíbrio, no plano do romance. Na fatura da obra, o uso de cartas, diários e toda a sorte de escrita pessoal encontrada em romances como "Crônica da Casa Assassinada", de Lúcio Cardoso, e "Boquitas Pintadas", de Manuel Puig, é material reciclado com êxito por Mourão. Talvez o livro "Invasões no Carrossel" se ressinta de uma fusão, em temperatura mais alta, das poucas passagens nas quais as vozes e os seres ficcionais de Lamarca e Collor se aproximam. Mas tal carência talvez esteja na ciranda da vida real, instância em que não pararam de girar os atos de um presidente eleito e legalmente deposto.
Premiado com romance histórico sobre o século 18, o autor investe na reflexão sobre a história contemporânea -o mandato de Collor. E lança mão da luta armada para discutir a democratização, a imprensa, a liberdade e os políticos na história brasileira contemporânea.


Cláudio Leitão é professor da Universidade Federal São João del-Rei e autor de "Líquido e Incerto -Memória e Exílio em Graciliano Ramos" (EdUFF, no prelo).


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