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Três talismãs
AURORA BERNARDINI
Hipóteses de Amor
Annalisa Cima
Maria Eugenia Boaventura e Ivo Barroso (orgs.)
Tradução: Alexandre Eulálio e Ivo Barroso
Ateliê Editorial
(Tel.0/xx/11/4612-9666)
128 págs., R$ 38,00
Apesar de as obras de Annalisa Cima (1941) como artista plástica serem conhecidas no Brasil em exposições, apresentadas em
catálogo por grandes nomes da crítica de arte (Alberto Sartoris fala de dualismo temporâneo e ambivalência criadora, e Giulio Carlo Argan, de puro jogo de formas que decodificam o passado com
ironia), sua obra poética só agora nos chega diretamente, graças
ao belo livro de poemas "Hipóteses de Amor" (1984), lançado em
edição bilíngue e ilustrada.
Alexandre Eulálio -que conheceu a autora na década de 70 (fora-lhe apresentado em Roma por Murilo Mendes, naquela época
cônsul do Brasil na Itália) e que manteve com ela uma interessante correspondência (vejam-se as cartas reproduzidas nos anexos,
bem como o posfácio da própria Annalisa)- apaixonou-se a tal
ponto pelos poemas de "Hipóteses de Amor" que traduziu parte
deles de um jato, por ocasião de uma nova visita à autora em 1985.
Dos 36 poemas que compõem o livro, 24 foram traduzidos por
Alexandre Eulálio, que veio a morrer em 1988, sem poder terminá-lo.
A obra, agora em tradução completa, dá prosseguimento -explica Maria Eugenia no prefácio- "ao projeto de publicação da
obra, multifacetada e inédita em livro, de Alexandre Eulálio, iniciado em l993".
Na verdade, certa curiosidade em relação à produção literária
de Annalisa Cima já havia sido indiretamente despertada no Brasil quando, em 2000, a editora Record lançou o "Diário Póstumo"
de Eugenio Montale, também em edição bilíngue e tradução de
Ivo Barroso. Os poemas que o constituem, alguns deles reproduzidos na própria grafia de Montale, eram dedicados a essa bela jovem (Annalisa Cima o conhecera em 1969 e com ele ficara até a
morte do poeta, em 1981) a quem Montale nomeara herdeira universal de sua obra.
Os poemas do "Diário", em grande parte inspirados por ela, dão
uma imagem atraente de Annalisa artista: "Já tens três talismãs:/
pena, música e cores./ Teu acreditar-te inútil, que repetes/ amiúde, me faz dizer: fica, aceita, também eu sou um falido como os
outros;/ somos condenados/ em busca de/ uma trégua e justamente quando tudo/ parecia carbonizar-se, essas almas confusas/
sentiram a seu lado uma alma gêmea". ("Poema 68"); e também
da essência de sua personalidade, que aparece naquilo que Edoardo Sanguineti ("Poesia Italiana del Novecento", 1969) define como sendo o montaliano "romance psicológico particular": "Mas
eis que chegas/ desbaratando o tédio/ com teus discursos variegados". ("Poema 56"); "uma corça com os humildes/ e um leão com
os poderosos" ("Poema 67"); "ebúrnea/ e esquiva. Não precisavas
sentir-te/ elogiada, bastavas/ a ti própria" ("Poema 64"); "Mantém-te longe dos baixios/ tu que buscas o todo/ e recusas notoriedade e fama" ("Poema 55").
Também ficamos sabendo de um mal já distante, responsável
pelo anseio de olvido de Annalisa, uma forma de enfermidade
pulmonar e vicissitudes familiares que de fato marcaram a primeira mocidade da artista, afastando-a dos jovens de seu meio (a
alta burguesia industrial do norte da Itália) e fazendo com que
procurasse nas pessoas de mais idade esse todo a que se refere
Montale.
Isso nos leva de imediato a "Hipóteses de Amor". Já não nos
surpreende que a segunda parte do livro ("A Outros") seja composta por poemas dedicados a figuras ("monstros sagrados", diz
ela) como Franco Fortini, Jorge Guillén, Eugenio Montale, Marianne Moore, Pier Paolo Pasolini, Ezra Pound, Giuseppe Ungaretti, Luchino Visconti, Andrea Zanzotto e o próprio avô Francesco, poemas em nome da "amizade como momento privilegiado",
mas também fruto dos traços da "nova relação com as pessoas e
com a existência" que sua primeira experiência de vida instituíra.
Como exemplo da essencialidade dos retratos dessa galeria privilegiada que Annalisa compôs durante os anos em que conheceu
Montale, veja-se Ezra Pound, na tradução de Alexandre Eulálio:
"Ser-se, mas/ não continuamente/ arrancar da vida/ aquele nada:/ mutação infinita". Ou, então, o dedicado ao próprio Montale,
na tradução de Ivo Barroso: "Terso perfil de mar/ voz que trazes
assombro/ desanuvias pensamentos/ fica naquele mundo/ que
confunde/ presente e passado/ gotas de tempo e sons,/ cristalino
gelado/ onde espelhar-se/ é um outro dia".
"Com que então sou agora sua musa", dissera-lhe Montale, ao
ler o poema que lhe fora dedicado. "A poesia é belíssima, obrigado. Você deve mantê-la secreta até a minha morte, bem como outras que lhe darei", conta Annalisa Cima no "Posfácio", explicando a origem da idéia do "Diário Póstumo", publicado, conforme o
desejo do poeta, cinco anos após sua morte.
É curioso notar o quanto Montale acertara ao considerar-se inspirador de uma nova fase na poética da autora, que já publicara
algumas coletâneas de poemas como "Terzo Modo" (1967-69 );
"La Genesi e Altre Poesie" (1971) e um bom número de prosas
poéticas. De fato, apreciando-se agora a primeira parte de "Hipóteses de Amor" -dedicada mozartianamente "A Cherubino", escrita em 1982, um ano após a morte de Montale, ao mesmo tempo
solilóquio do poeta ("se não tenho quem me ouça/ falo de amor
comigo") e diálogo com Friedriech Glombik, a quem conhecera
então-, o que chama a atenção, logo nos primeiros versos, são
certos procedimentos montalianos tais quais a rima interna, o
"enjambement" ou ainda -como muito bem viu Sanguineti-
"a aposta em certos emblemas do sagrado como construção leiga
da história da alma" ("Há sempre estações de pranto/ e estações
em que o canto dos dias/ muda o passado congelado").
Mas há muito mais do que isso. Entre os vários aspectos, um é
muito peculiar. Em certa fase mais madura de sua pintura, encorajada por Max Ernst, abandona o impressionismo e a arte abstrata e se reconhece numa maneira pessoal de criar, na qual elementos figurativos são introduzidos nas composições abstratas
(ou, como ela diz, quando "finalmente pude voltar a pintar nus e
cabeças, recusando o clichê que queriam me impor"). Do mesmo
modo, há em sua poesia a precisa disposição de vultos, de nomes
e de citações que tornam viva, concreta e nua a presença -como
ela mesmo diz no posfácio, referindo-se a Alexandre Eulálio-
"de ícones de um tempo poético, que é eterno".
Aurora Fornoni Bernardini é professora de teoria literária e literatura comparada na USP.
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