São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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A mensagem de Galileu

Um dos principais marcos da ciência moderna


Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico e Copernicano Galileu Galilei
Tradução, notas e introdução: Pablo Rubén Mariconda
Discurso Editorial/Fapesp (Tel. 0/xx/ 11/ 3814-5383)
882 págs., R$ 68,00


RONALDO R. DE FREITAS MOURÃO

A obra "Dialogo sopra i Due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano", de Galileu Galilei, editada em Florença, em 1632, foi finalmente traduzida para o português, com muita competência, pelo professor Pablo Rubén Mariconda, do departamento de filosofia da USP. Trata-se de uma excelente tradução, enriquecida por valiosas notas e um magnífico estudo, talvez o mais importante já publicado no Brasil sobre o período polêmico da vida de Galileu, que inicia em 1610, com a publicação do "Sidereus Nuncius" (A Mensagem das Estrelas), e termina com a publicação do "Diálogo".
É um período de 22 anos durante o qual se arrasta uma defesa do copernicanismo e um ataque à cosmologia tradicional e à visão de ciência na qual se apoiavam as idéias relativas ao sistema do mundo geocêntrico, defendidas pelos adeptos de Cláudio Ptolomeu, durante cerca de 15 séculos. Apesar das evidências observacionais anunciadas por Galileu, os professores universitários de teologia, de filosofia e até mesmo de matemática se recusaram a observar pelo aparelho -"perspicilium"-, afirmando que se tratava de ilusões produzidas pelo próprio instrumento. Entre 1613 e 1616, a polêmica teológico-cosmológica relativa à compatibilidade entre a teoria de Copérnico e a Bíblia, conduziu Galileu à primeira condenação pela Inquisição. Seguiu-se um segundo subperíodo de 1616 a 1632, em que Galileu é impedido de tratar diretamente do copernicanismo como alternativa à cosmologia tradicional.

Em defesa do copernicanismo
O "Diálogo" relata a conversa entre três indivíduos: Salviati, o defensor das idéias de Copérnico; Simplício, o defensor do sistema geocêntrico de Ptolomeu; e Sagredo, um homem de bom senso que procura tudo compreender. Nesta obra comparativa entre as teorias ptolomaica e copernicana, em que existe uma evidente parcialidade em favor da teoria heliocêntrica, o estilo é vivo, em geral irônico e mordaz, característico do temperamento polêmico de Galileu, considerado, com justiça, um dos maiores prosadores italianos de todos os tempos.
Na realidade, o "Diálogo" não é uma obra de astronomia nem um tratado de mecânica ou de física, mas uma obra filosófica, cujo objetivo principal é o de rever a condenação de 1616. Elaborado para defender o sistema heliocêntrico do mundo proposto por Copérnico, o "Diálogo" compreende quatro jornadas, que se desenvolvem em dias diferentes.
Durante a primeira jornada, Galileu procurou demonstrar que a doutrina aristotélica da imutabilidade do mundo superlunar era falsa. Para tanto, apresentou como argumento a descoberta de estrelas novas, as manchas solares, os montes e irregularidades topográficas da Lua. É nessa jornada que o aspecto filosófico do "Diálogo" se torna mais claro, ao estabelecer uma crítica objetiva à cosmologia aristotélica ao mesmo tempo em que contribui para a construção de uma cosmologia copernicana.
Durante a segunda jornada, a discussão é dedicada às consequências do movimento da Terra, quando apresentou dois importantes princípios da física moderna: o princípio da inércia e o princípio da relatividade. Essa jornada teve como finalidade principal responder às objeções mecânicas no movimento de rotação da Terra, constituindo uma aula de física sobre os movimentos efetuados na Terra: projéteis de balas etc.
Durante a terceira jornada, o diálogo versa sobre o movimento de revolução da Terra ao redor do Sol. Galileu usa as novas descobertas, tais como as fases de Vênus, os satélites de Júpiter etc., para confirmar mais uma vez a teoria heliocêntrica. Nessa jornada pode-se apreciar a influência que "De Magnete" (1600), de William Gilbert, teve para a cultura científica emergente, especialmente para o método experimental. Essas duas últimas jornadas, a segunda e a terceira, podem ser vistas como aulas de física e de astronomia.
A quarta jornada representa a parte mais ousada, quando Galileu usou os limites de suas possibilidades para conceituar a mecânica do movimento e a concepção cosmológica de Copérnico. Nela a discussão trata do "fluxo e refluxo do mar", que Galileu considerava fundamental para o movimento da Terra. Infelizmente, tal raciocínio era errôneo.
Em defesa das idéias copernicanas, Galileu fez com que os melhores argumentos fossem aqueles de Salviati e, os mais fracos e ridículos, os de Simplício. Lamentavelmente, os inimigos de Galileu conseguiram convencer o papa de que Simplício era a sua caricatura. Logo o livro foi proibido. Galileu foi convocado a Roma, com 69 anos, quando foi ameaçado de tortura. Seu principal protetor, Cosme de Médicis, estava morto desde 1621. Em 22 de junho de 1633, no Convento de Santa Maria Sopra da Minerva, os padres dominicanos obrigaram-no a se ajoelhar e abjurar de suas idéias, em frente aos juizes que o condenaram à prisão domiciliar, em Roma, assim como o proibiram de publicar livros.
Como registrou no prefácio, além de manter o texto em português o mais próximo do original italiano, Mariconda conseguiu conservar o estilo barroco, após uma leitura cuidadosa de trechos dos "Sermões" do padre Antônio Vieira, que usou em sua pregação o mesmo estilo barroco. Assim procedendo, este clássico da literatura científico-filosófica da história da ciência não perdeu o seu valor literário. Além do caráter polêmico de sua retórica, o "Diálogo" possui um aspecto inovador, razão pela qual é considerado um dos principais marcos do aparecimento da ciência moderna.
Além das minuciosas anotações no fim e ao longo de todo livro, o tradutor acrescentou à edição brasileira um precioso sumário analítico, uma das falhas das edições estrangeiras do "Diálogo", que não fornecem aos leitores um resumo da obra. De fato, a sua consulta facilita em muito a pesquisa.
Todavia, sem dúvida, o mais valioso nesta obra é o conjunto de notas, acréscimos e correções. Aliás, Mariconda teve o cuidado de indicar, ao lado da paginação de sua edição brasileira, as mudanças introduzidas nas páginas da Edição Nacional italiana de Antônio Favaro, obra de referência de uso universal tendo em vista que ela é, na verdade, uma reimpressão esmerada da primeira edição de 1632. As notas, os acréscimos e as correções são efetivamente fundamentais à leitura desta obra e constituem um instrumento necessário a todos os pesquisadores que desejarem compreender esse período da filosofia e da história da ciência. Finalmente, desejo cumprimentar a Discurso Editorial pela coragem e esmero na publicação desta obra fundamental, que vem enriquecer a bibliografia em língua portuguesa.
Concluindo, convém lembrar que a tradução da obra "Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a Due Nuove Scienze" (1638), de Galileu, publicada com o título resumido de "Duas Novas Ciências" (1985) em tradução de Mariconda, está a exigir uma nova edição primorosa como a do "Diálogo".


Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é pesquisador titular e fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins. É autor de mais de 65 livros, entre os quais o "Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica" (ed. Nova Fronteira).


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