São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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O mundo dos intelectuais


Intelectuais à Brasileira
Sérgio Miceli
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
436 págs., R$ 47,00


MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

Dentre os empreendimentos editoriais recentes na área das ciências sociais, a reunião de textos representativos da obra de um mesmo autor em um único volume merece ser saudada como um recurso econômico de pesquisa e uma iniciativa de largo alcance pedagógico. São, em geral, coletâneas de autores que já alcançaram notoriedade entre seus pares, cujos textos têm servido à formação de novas gerações de praticantes do seu campo de conhecimento. A reunião de parte ou da totalidade da produção desses autores em uma reedição cuidadosa, compreendendo os retoques necessários às edições originais, organiza a apreensão das suas respectivas agendas intelectuais, daquilo que lhes é peculiar, fornecendo aos leitores uma noção abrangente das suas questões, bem como dos desdobramentos que tais questões conheceram ao longo do tempo.
No caso de Sérgio Miceli, um renomado sociólogo, com sólida carreira construída em instituições de ensino e pesquisa celebradas em todo o país, reuniram-se dois de seus livros de grande interesse, editados originalmente por volta da década de 80, e artigos mais recentes, que circularam em jornais ou em revistas pouco acessíveis ao público não-especializado, vindo a compor esse aguardado "Intelectuais à Brasileira".
Concebido assim, o livro expõe as matrizes do pensamento de Miceli sobre o sistema intelectual brasileiro, analisado desde as suas origens, no contexto da República Velha, quando teriam germinado as condições sociais favoráveis à profissionalização dos homens de letras, até o final do período de vigência do Estado Novo, momento de rápida modernização do país, cujo impacto sobre o campo cultural, embora notável, não conseguiria deslocar as condições de acesso às profissões intelectuais, as quais permaneceriam dependentes, em larga medida, das redes de relações sociais mobilizadas por membros individuais daquele estrato.
Nesse sentido, a pesquisa empírica sobre o perfil e as estratégias de profissionalização acionadas por diferentes intelectuais, quase sempre oriundos de famílias socialmente declinantes, comporia, junto com a narrativa histórico-institucional que o autor empresta à sua análise, o fio da argumentação sobre as relações entre os intelectuais e a classe dirigente brasileira.
O cerne, pois, da obra de Sérgio Miceli consiste em trazer para os estudos sobre a formação do nosso sistema intelectual uma perspectiva analítica de cunho eminentemente sociológico, concentrando-se na relação entre a origem social daquela categoria e a ocupação de postos no mercado intelectual, em processo de institucionalização. Sobre esse andamento histórico, sua mirada sociológica, herdeira do melhor Bourdieu, propõe-se a desvelar a lógica constitutiva do mundo dos intelectuais, daquele "lugar" de onde falam e que lhes impõe um conjunto de constrangimentos sociais de diversas naturezas, que vão desde o estabelecimento de padrões de carreira até a legitimação pública do conhecimento produzido, com tudo o que isso implica em termos de disputas por poder e pelo controle do seu exercício profissional.
O mundo dos intelectuais possui, portanto, na perspectiva recepcionada por Miceli, uma trama, uma densidade, uma estrutura. É esse mundo, assim modelado, que condiciona as possibilidades de ação dos agentes empíricos que o integram, para além da consciência que possam ter de si e do seu lugar social, para além do que escrevem, do conteúdo de suas teorias e das polêmicas mantidas por eles. Daí a relevância que o autor empresta aos contextos institucionais que teriam constrangido as possibilidades de ação dos intelectuais brasileiros e lhes concedido uma feição de grupo até certo ponto homogêneo e com um destino mais ou menos comum.
Opção argumentativa que, no plano teórico, implica a recusa tanto de perspectivas que conferem aos intelectuais uma identidade naturalizada, derivada da sua auto-representação como intérpretes olímpicos do mundo social, quanto das que se contentam em descrever a multiplicidade de biografias e de obras singulares, sem extrair um sentido e uma ordem.
Em suma, o projeto de Miceli, tal como exposto nesse "Intelectuais à Brasileira", envolve a explicitação das mediações analíticas necessárias à definição dos intelectuais como um grupo social específico, tornando-o passível, como os demais grupos, de uma análise estritamente disciplinar, no âmbito da sociologia. Não à toa, sua obra foi recepcionada a partir dessa consideração e acolhida, ainda hoje, como geratriz de uma escola sociológica de pesquisas nesse campo.
Em um país como o Brasil, cuja formação e trajetória históricas são tributárias de grandes idéias, a tematização da nossa intelligentsia, bem como da sua obra, deverá ser, sempre, objeto de animadas disputas. Com seu foco propositadamente dirigido, dedicado a revelar a lógica e a estrutura constitutivas da agência intelectual, pode-se dizer que a sociologia operada por Sérgio Miceli se mostra, afinal, pouco interessada nas vicissitudes políticas que presidiram a modernização autoritária do país e cercearam as possibilidades de os intelectuais conhecerem uma trajetória mais autônoma em relação ao Estado e identificada com os interesses da sociedade.
Mas esse parece ser um insanável dilema: privilegiar o sistema ou o seu entorno. Válida ou não a ressalva, é obrigatório reconhecer que não se pode mais compreender a vida intelectual do país sem as razões de Sérgio Miceli.

Maria Alice Rezende de Carvalho é professora de sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e autora, entre outros, de "O Quinto Século - André Rebouças e a Construção do Brasil" (Revan).


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