São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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Em nome da razão

Uma resposta aos desafios do relativismo e do naturalismo


A Última Palavra
Thomas Nagel
Tradução: Carlos Felipe Moisés
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
172 págs., R$ 20,00


PAULO ABRANTES

Existe a "última palavra" com respeito ao que devemos acreditar ou fazer, que se imponha racionalmente por seu conteúdo objetivo e universalidade, ou nossos pensamentos (normativos) estão irremediavelmente marcados por pontos de vista (de indivíduos ou de grupos), por determinadas práticas e convenções (linguísticas, culturais etc.), por nossa constituição contingente (biológica, psicológica etc.), tornando inevitável o subjetivismo e, logo, o relativismo?
Nagel defende neste livro a primeira posição. Não haveria, segundo ele, a alternativa de sair totalmente do âmbito da razão, contentando-nos em simplesmente explicar nossas crenças e ações com base em fatores "externos" contingentes: psicológicos, sociais, históricos, culturais, biológicos etc. Nagel ataca a "sedução" que exerce o relativismo, que ele atribui à "preguiça intelectual da cultura contemporânea".
Suas principais fontes de inspiração filosófica são o platonismo e o racionalismo cartesiano. O platonismo que defende revela-se na tese de que o conteúdo objetivo dos conceitos pode ou não ser expresso em palavras ou pensamentos, não se deixando reduzir ao uso linguístico ou a estados psicológicos. O conhecimento do mundo externo (em especial o não-observável) é possibilitado por uma "base" que já estaria, de certa forma, "latente" em nosso "self objetivo" e se atualizaria sob determinadas condições. Além disso, a mente humana seria uma dentre várias instâncias possíveis de um tipo mais geral de mente, todas elas capazes de utilizar os mesmos métodos e relações lógicas objetivas que, nesse sentido, não seriam "meramente humanas".
O problema central é, portanto, o de conciliar a nossa existência contingente de um ponto de vista psicológico, biológico e também cultural, com a pretensão racionalista à universalidade e à objetividade. Nagel analisa outras respostas, além da racionalista, para esse mesmo problema: a subjetivista, a religiosa e a do naturalismo evolucionista.
Ele defende um racionalismo não-fundacionalista: há sempre a possibilidade de rever os resultados de raciocínios particulares através de mais raciocínio -o que se mantém, portanto, dentro da esfera da razão. Mas seu âmbito estaria restrito à lógica e à matemática, domínios nos quais a razão se impõe de forma imediata, não deixando espaço para o subjetivismo e o naturalismo, ou incluiria também as razões empírica (científica) e prática? Nagel explora esses vários domínios, de modo a mostrar a superioridade de uma posição racionalista.
A estratégia de Nagel no domínio da razão empírica pretende mostrar que mesmo os pensamentos (de primeira ordem) do subjetivista têm um conteúdo objetivo e que, portanto, têm que "competir" com um objetivismo mais amplo.
No domínio da razão empírica, seria inevitável adotar um "quadro de referência de pensamento sobre o mundo" ao qual nossos pontos de vista sejam integrados. O perspectivismo puro não é uma alternativa aí. Isso nos mostrou Descartes e também Kant, que supôs a existência de um mundo independente da mente. Este último negou, claro, a possibilidade de conhecermos algo a respeito desse mundo, mas Nagel defende que essa "hipótese" deve confrontar a alternativa de que o nosso conhecimento estende-se para além dos fenômenos. Ambas as hipóteses têm que se submeter aos métodos usuais de avaliação comparativa de hipóteses (o que Kant não aceitaria).
Admitir que o mundo interage conosco causalmente não é suficiente, entretanto, para fundar a objetividade do conhecimento científico. O trabalho mais importante dá-se, diz Nagel, após essa interação com os órgãos dos sentidos, na atividade racional de construção de teorias -que nos permitem desvendar um mundo não-observável que supostamente explica a ordem observada- e de seleção dessas teorias com o emprego de métodos confiáveis.

A razão prática
No domínio da razão prática, não há um análogo para o mundo objetivo em que atua a razão empírica. Um reducionismo (como o proposto pelo naturalismo evolucionista) é, aqui, uma alternativa inteligível e podemos, de fato, ser "um mero produto da biologia".
Essa possibilidade, contudo, vai de encontro às intuições kantianas de Nagel. Seu argumento é que, no caso da razão prática, temos uma competição não mais entre diferentes hipóteses a respeito de um mundo objetivo, mas entre uma hipótese que pretende descrever um mundo onde tudo é determinado, inclusive as nossas ações, e uma prática: a da busca irreprimível de razões para a nossa conduta. Nesse domínio, Kant está, para Nagel, correto em ver a possibilidade de uma genuína razão moral (não instrumental, mas categórica) como fundada no livre-arbítrio.
A questão da verdade e da falsidade dos juízos morais deve também ser decidida internamente, no nível do conteúdo moral (objetivo) e com base no raciocínio moral; não nos esquivando da questão com (meta-)qualificações psicológicas, históricas, antropológicas etc., como fazem os subjetivistas e relativistas de vários matizes.
Nagel admite que o racionalismo que propõe tem um tom "quase-religioso", espinosista, mas esclarece que sua proposta não pressupõe a existência de Deus ou de uma "alma do mundo" -hipóteses que seriam, para ele, "menos explicativas".
Já o reducionismo cientificista contemporâneo refletiria uma "Weltanschauung desencantada", a manifestação de um "medo de religião", de uma "profunda aversão a quaisquer princípios últimos que não estejam mortos". Nagel não acredita que mentes capazes de consciência e de raciocínio possam ser meros "acidentes naturais", produtos da atuação das "leis não-teleológicas da física", em que não há lugar para "propósito, significado e design". Ele propõe que se procure por "relações mente-corpo" irredutíveis e condições de contorno cosmológicas que possibilitem o surgimento de mentes. Essas "relações" podem ser, acredita Nagel, compatíveis com a nossa imagem científica de mundo, somando-se às leis da física atualmente conhecidas.
Nagel defende que há limites intransponíveis para os progressos que possamos fazer na compreensão naturalista da nossa inserção no mundo e, simultaneamente, da nossa capacidade para compreendê-lo (voltando a reflexão, por assim dizer, para si mesma). Qualquer empreendimento desse tipo empregará fatalmente a razão, da qual o naturalista tentará em vão "sair", em sua tentativa obstinada de "fechar" o círculo explicativo adotando uma posição "externa".
Nagel descarta, desse modo, a alternativa de um "naturalismo evolucionista", criticando, em particular, a posição de Nozick que propõe uma inversão da dependência kantiana dos fatos com respeito à razão, em que seria esta última a "variável dependente". A dificuldade é que a razão evidentemente participa da construção e validação de teorias como a darwinista. Como, então, pretender usar a seleção natural para justificar a razão?
Necessitamos, diz Nagel, de uma "base independente", puramente "interna", para confiarmos na razão, o que não nos impede de aceitar que a seleção natural tenha operado sobre "possibilidades biológicas fundamentais" que apontem para a consciência e a racionalidade, de acordo com leis naturais que ainda nos são desconhecidas, mas que certamente não se restringiriam àquelas descritas pela física atual. Nagel reconhece, entretanto, que se mantém o problema central de conciliar a nossa confiança na razão e o seu caráter contingente, como revelado por uma história evolucionista.
O livro de Nagel insere-se no debate contemporâneo que opõe aqueles que, usando as imagens de Dennett no livro "A Perigosa Idéia de Darwin" (Rocco), apoiam-se em "skyhooks" ("ganchos pendurados no céu") na compreensão das capacidades mentais e aqueles que só admitem princípios mecânicos, eventualmente apoiando-se em "cranes" ("guindastes") que, entretanto, resultam daqueles mesmos princípios. Nessa arena confrontam-se fisicalistas e naturalistas, de um lado, e os que flertam, de outro lado, com algum tipo de teleologia nos processos naturais, um panpsiquismo ou harmonia preestabelecida. No primeiro campo estão os que consideram as capacidades mentais como "cranes", no último, os que apelam para "skyhooks".
Ao reificar a razão e a consciência, Nagel tende a colocar-se neste último, a despeito de suas ambiguidades. A sua proposta não é, certamente, a "última palavra", e a polêmica em curso terá implicações dramáticas para a imagem que fazemos de nós mesmos e de nossa inserção no mundo físico.
O texto de Nagel é claro, embora denso. As eventuais dificuldades de compreensão devem ser imputadas, em primeiro lugar, aos inúmeros e graves erros de tradução, que poderiam ter sido corrigidos numa revisão especializada.


Paulo Abrantes é professor do departamento de filosofia da Universidade de Brasília e autor de "Imagens de Natureza, Imagens de Ciência" (Editora Papirus).


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