São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Aquiles e a tartaruga

NEWTON DA COSTA

Esta obra, publicada em inglês há mais de 20 anos, tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e mereceu tanto o prêmio Pulitzer como o American Book Award em 1980. Poucos livros despertaram tanto interesse, não apenas de especialistas em variadas áreas, como também do leitor leigo. O trabalho de Hofstadter é provocante e atraente, tratando de temas cativantes, curiosos e importantes; por isso, é auspicioso que seja publicado em tradução vernácula.
Torna-se praticamente impossível resumir o conteúdo tão rico e amplo do livro. Mas se pode dizer que Hofstadter recorreu a analogias (nem sempre óbvias) entre as realizações de Gödel, Escher e Bach para tentar esclarecer aspectos da atividade cognitiva, em particular do significado da inteligência artificial.
Por outro lado, Hofstadter discorre sobre conceitos teóricos de grande significado e dos quais é difícil dar um tratamento em nível elementar. Assim, ele expõe as noções de sistema formal, de sistema axiomático, de axiomas de Peano, de auto-referência (lógica) e de teste de Turing e discute resultados tais como o teorema de incompletude de Gödel, o teorema da verdade de Tarski e o teorema da parada de Turing. Paralelamente, examina questões de música, de pintura, de teoria do conhecimento, de inteligência artificial e de filosofia Zen. Somente um escritor brilhante e bem informado poderia ser capaz de abordar tudo isso sem incorrer em confusão ou se perder em detalhes.
Podemos condensar alguns dos problemas considerados pelo autor como se segue. Um sistema cognitivo (sistema lógico-formal, teoria matemática, o cérebro como base da mente, esta encarada qual aparato cognitivo etc.) pode ocupar-se de si mesmo? Tal procedimento envolve situações paradoxais? Há limitações para o poder cognitivo de sistemas desse tipo?
Para sentirmos o sabor do livro, fixaremos a atenção sobre algumas questões, ainda que de modo informal e aproximado.
Um sistema formal S constitui aparato simbólico, sujeito a regras bem determinadas, por meio das quais derivamos combinações simbólicas que se chamam teoremas de S. As regras e as combinações simbólicas devem ser definidas de maneira efetiva, isto é, há métodos para se decidir efetivamente, por exemplo, se uma combinação simbólica é combinação aceitável em S e se dada aplicação das regras é correta. S pode ser tal que certos arranjos simbólicos expressem sentenças e que a aritmética elementar esteja nele contida. Condições como essas sendo satisfeitas, o teorema de incompletude basilar de Gödel pode ser enunciado assim: Se S for consistente (ele não contém teoremas um dos quais é a negação do outro), então existem sentenças aritméticas verdadeiras que não são teoremas de S.
Todo computador (máquina de Turing), falando por alto, não passa, no fundo, de um sistema formal. Logo, em certo sentido, está sujeito ao teorema de Gödel. Então, se o cérebro humano funcionar qual máquina de Turing, ele não conseguirá, jamais, demonstrar todas as sentenças verdadeiras da aritmética elementar (permanecendo consistente). Esse fato expressa um limite de nosso poder de cognição, se o cérebro for, realmente, uma espécie de computador.
Ademais, teoremas fundamentais da lógica hodierna, como os de Tarski e de Church, evidenciam outros possíveis limites do cérebro-computador; por exemplo, de acordo com o resultado de Tarski, a mente, associada a um tal cérebro, não pode tratar, por assim dizer, de si mesma de forma completa e coerente. Além disso, se não nos enquadrarmos apropriadamente, envolvemo-nos em paradoxos e dificuldades.
É patente a relevância do que se disse para a inteligência artificial e as ciências cognitivas em geral. Com efeito, dado que se pode demonstrar, fora do sistema S acima referido, que a sentença indemonstrável é, de fato, verdadeira, parece que nossa mente ultrapassa as restrições advindas do teorema de Gödel. Se este for o caso, fica provado que o cérebro não é máquina de Turing, mas um sistema bem mais flexível, pelo menos sob determinados aspectos.
A exposição tem como pano de fundo um longo diálogo entre Aquiles, a tartaruga e outros personagens. O núcleo da argumentação centra-se na existência de vários níveis estruturais tanto em lógica e em matéria de conhecimento, como na arte de Bach e na pintura de Escher.
Com fundamento na argumentação desenvolvida, o autor deriva algumas conclusões, tais como: 1) Belas músicas podem ser compostas por um computador? A resposta é: isso se afigura possível, embora não tão cedo. 2) Pode-se programar um computador de modo que ele tenha emoções? Especulação: jamais. 3) Os programas de inteligência artificial acabarão sendo super-inteligentes? Contestação especulativa: não se sabe.
Tendo-se em vista as dificuldades inerentes ao estilo de Hofstadter e o caráter técnico de diversos dos temas ventilados, a tradução é boa. No entanto, poderia estar mais em conformidade com a terminologia hoje vigente entre nós. Por exemplo, em vez de "completitude", conviria dizer "completude", em vez de "funções recorrentes", "funções recursivas". Há, todavia, lapsos de tradução, por exemplo, quando se traduz "w-consistent" por "coerente em w"; o correto seria "w-consistente".


Newton da Costa é professor de lógica da USP e da Unip (Universidade Paulista) e autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).

Gödel, Escher, Bach. Um Entrelaçamento de Gênios Brilhantes
Douglas R. Hofstadter
Tradução: José Viegas Filho
Ed. UnB (Tel. 0/xx/61/226-6874)
866 págs., R$ 79,00



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