São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Nossa arquitetura

Dicionário apresenta 33 arquitetos brasileiros

CARLOS BRANDÃO

Em um contexto de extrema importação de modelos arquitetônicos e culturais, de desconfiança na possibilidade de construirmos uma identidade, um ethos e um futuro próprios à história e à sociedade brasileira, a publicação deste "Guia" adquire um caráter épico. Por suas qualidades intrínsecas e pelo sentido que adquire dentro desse contexto, ele se candidata a ser uma das mais importantes publicações deste início de século sobre a arquitetura de nosso país.
Depois de rápida introdução, onde se consideram o advento e as especificidades da nossa arquitetura modernista, se segue o núcleo do "Guia": em ordem alfabética, 33 arquitetos são apresentados mediante breve biografia, resumo das principais características de suas obras e análise sumária dos seus edifícios mais significativos, desde a primeira casa modernista de Warchavchik (1928), "o introdutor da arquitetura contemporânea no país", até a inauguração de Brasília (1960), "ápice e final da linguagem modernista clássica". Tais análises, devidamente ilustradas por fotos e esquemas de plantas, cortes e fachadas, permitem a compreensão preliminar das obras, podendo ser aprofundadas por meio das indicações bibliográficas específicas que as acompanham.
Indo além da mera descrição, os textos ultrapassam o relato morfológico e comportam uma crítica dos valores contidos nas edificações -apontando, por exemplo, a criatividade e competência de Reidy no Conjunto Pedregulho (1947-52) e sua ingenuidade do ponto de vista antropológico e social.

Pluralidade
Preenchendo uma lacuna em nossa produção editorial, autores e obras -antes dispersos em várias publicações ou em vias de esquecimento, como Attilio Lima e a produção brasileira de Rudofsky- são reunidos e cotejados. Projetos não realizados ou destruídos como o Pavilhão, de Bernardes (1953-54), ou o Estádio Olímpico, de Niemeyer (1941), são recuperados devido à importância que tiveram na construção e vitalidade de nosso modernismo. Por sua relevância no movimento, "Projetos Especiais" são analisados separadamente: o Ministério da Educação e Saúde (1937-43), o Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York (1938-39), a Pampulha (1942-43), o conjunto de Cataguases (1943-51) e Brasília (1956-60).
Cuidado e precisão são as primeiras qualidades do livro. O cuidado observa-se na qualidade gráfica, na linguagem acessível a todos e no carinho que preside a feitura e que comandou os trabalhos da equipe coordenada por Cavalcanti. Alicerçada numa pesquisa bem mais ampla do que o material publicado, percebe-se uma interpretação criteriosa que, não se contentando com o "racionalismo funcionalista", é capaz tanto de apresentar os ícones arquitetônicos do movimento quanto os desvios e a pluralidade de suas propostas.
À justa avaliação da arquitetura modernista e daquilo que a determina se alia a inquirição pelo que seu estudo pode contribuir para a produção atual, diante do desgaste das figurações pós e neomodernistas. Daí resulta a precisão das escolhas, do texto e das ilustrações. Não se confundindo com um catálogo, este "Guia" ultrapassa a exposição superficial de obras e arquitetos para comportar uma análise proveitosa para a reflexão sobre o passado e o futuro da arquitetura brasileira e para a promoção de nossa identidade cultural, artística e científica dentro do século 21.
O admirável trabalho de síntese, patente na concisão e riqueza dos textos, faz justiça à abrangência e fecundidade do modernismo, desmontando uma idéia monolítica e homogênea por meio da qual se costuma enquadrá-lo. No lugar do funcionalismo burocrático que passou a dominar a partir dos anos 60 -mas contra o qual Niemeyer já se rebelava desde a década de 40-, o que lemos é uma aventura rica e movida por uma dimensão muito mais ética do que estética ou técnica. Essa dimensão configura-se como o melhor modo de acessar o modernismo brasileiro.
Cavalcanti e sua equipe compreendem-na perfeitamente e fazem dela tanto o convite para ingressarmos no seu edifício quanto o contraponto à espetacularização perseguida pela arquitetura contemporânea e à sua matriz importada. Também a matriz do nosso modernismo descende das linguagens formuladas no hemisfério norte, mas, simultaneamente, desenvolveu-se uma hermenêutica em que elas foram interpretadas e postas a serviço da nossa vida e cultura, como verificamos na adequação e esmero dedicados aos conjuntos habitacionais, no virtuosismo do trabalho no concreto armado, na consciência crítica e criteriosa que era berço da invenção das formas e nas combinações inéditas de materiais e técnicas construtivas.
Investigava-se um país novo e inventava-se um homem livre, sem perder de vista a tradição e o contexto local. Daí a maior conquista desses arquitetos: "Conseguiram deslocar a discussão com seus oponentes neocoloniais e acadêmicos do terreno estético para um domínio ético".

Construir a liberdade
A necessidade presente de refazer esse deslocamento confere atualidade ao "Guia". É essa esperança a luz maior que suas páginas lançam no espírito do leitor. A maior sabedoria dos arquitetos estudados foi fazer dessa esperança um "projeto". Fazer "projeto", como os "especiais" que concluem o livro, é construir a liberdade, recusar a submissão a forças heterônomas que nos impedem de conferir à nossa existência uma dimensão histórica e uma autoridade para decidir sobre o que queremos ser.
O modernismo teve projeto e aceitou a responsabilidade de criarmos o nosso próprio mundo. Os arquitetos recenseados eram os responsáveis pelo "reconhecimento do capital simbólico e a autoridade de diagnosticar o presente e indicar os caminhos a seguir", competindo-lhes não apenas resolver um problema espacial mas, sobretudo, formular um novo modelo para a sociedade. Isso se reflete, por exemplo, na radicalidade das proposições técnicas e na renovação dos elementos de arquitetura e de composição, como na Casa Lotta Soares, de Bernardes (1951-53).
Os projetos escolhidos revelam esse plano ético maior e, como o modernismo, não foram mera transplantação de modelos estrangeiros. Eles nos mostram, ainda, que não houve propriamente uma linguagem modernista, mas várias, como o experimentalismo heterodoxo de F. Carvalho, o esforço de W. Souza por conciliar o ecletismo tardio e a proposta modernista, a rusticidade e ousadia de Warchavchik na Casa Marjorie Prado (1946), a simplicidade refinada de J. Ferreira, as pesquisas com as técnicas construtivas autóctones de C. Ferreira, as intervenções dissonantes em sítios históricos e a combinação bruta do artesanato vernacular do adobe e da palha com o funcionalismo exigido pela síntese da Casa V. Cirrel, de Lina (1958).
O apelo da síntese se amplia e explica a obra de Lúcio Costa: síntese entre interior e exterior, tradição e revolução, identidade e universalidade, passado e futuro, artesanato e indústria, e entre o clima, a estrutura, a função e a forma. Síntese em que o determinante ético disciplina a arte e a tecnologia, como nos Apartamentos Proletários (1931-33), no Museu das Missões (1937) e no Hotel de Friburgo (1940-44).
Também a obra de Niemeyer é lida a partir desse esforço de síntese tensionado pela construção de um novo ethos. Rompendo com a burocracia estética em que se acomodava o "international style", a Pampulha alia a ousadia e a simplicidade, a liberdade criativa e a disciplina técnica. Dessa aliança nasce "uma linguagem cosmopolita brasileira, mais do que simples adaptação de princípios internacionais aos ares tropicais", que culmina em Brasília.

Erros e lições
Lições preciosas como as de Artigas e Vital Brazil podem ser aprendidas, e mesmo os confrontos de volumes e tratamentos, como na Casa João Carvalho (1954), de J. Fonyat, tão contemporâneos, podem ser úteis, pelo menos para demonstrar como o novo de hoje não é tão novo assim. Mas aprende-se também quando o livro não se furta a apontar erros, como os da execução do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que servem de lição para o presente.
"O tempo se encarregou de apagar o sonho dos poderes transformadores da arquitetura modernista".
Esse "Guia", além de atingir o propósito de "conhecer e visitar" esse movimento, reacende o sonho de transformar o ethos. A partir dele, ficamos à espera de que o sentido do movimento, mais que visitado, seja compreendido em nova chave, reatualizado e ampliado: ampliado, de modo que essa edição, focada nas escolas carioca e paulista, sirva para estimular outras dedicadas à arquitetura modernista de outras regiões do país, tão significativas quanto as daquelas escolas; compreendido, de modo a verificarmos a pluralidade de linguagens que a generosidade do modernismo abrigou; reatualizado, de modo que o sentido ético e o desejo de criar uma autonomia e identidade cultural capazes de gerarem um país novo e um homem livre sirvam de "guia" para a produção contemporânea.


Carlos Antônio Leite Brandão é professor de arquitetura na Universidade Federal de Minas Gerais.

Quando o Brasil Era Moderno - Guia de Arquitetura (1928-1960)
Lauro Cavalcanti (org.)
Aeroplano
(Tel.0/xx/21/2529-6974)
486 págs., R$ 40,00



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