São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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União das coroas

ANA PAULA TORRES MEGIANI

União ibérica, união das coroas ou dominação filipina. São estas as denominações mais comuns utilizadas pelos historiadores luso-brasileiros quando se referem ao período dos 60 anos em que o reino de Portugal e suas colônias estiveram dinasticamente unidos à Espanha na pessoa de um mesmo monarca, ou seja, os três Filipes de Habsburgo. Uma outra expressão que tem sido menos adotada é a que vemos no título "Portugal no Tempo dos Filipes", do historiador espanhol Fernando Bouza Álvares, que apresenta duas vantagem em relação aos nomes referidos. Contempla, a principio, o período histórico, e sugere, no plural, a tríade de Filipes que reinaram em Portugal. Além disso, exclui a concepção conciliatória embutida no termo "união" e elimina a tendenciosa e anacrônica visão implícita na palavra "dominação".
A obra é uma reunião de artigos do professor e pesquisador da Universidade Complutense de Madri, agora traduzidos para o português e anteriormente publicados em diversas línguas nos principais periódicos europeus. Especialista e apaixonado pela história das representações políticas no reinado de Filipe 2º, Fernando Bouza tratou, nesse conjunto de dez textos, de variados aspectos da cultura política ibérica, tanto na sua relação com a corte dos Filipes quanto com o complexo do Império Habsburgo, do qual os Filipes eram também os soberanos.
Antes de mais nada é necessário afirmar que estamos diante de um autor que, como poucos, vê a história cultural no seu sentido estrito, em que o conceito de representação surge calcado na análise e interpretação das fontes diretamente ligadas à ação do complexo burocrático e administrativo dos Filipes, tendo como fim último o estabelecimento das relações entre a política e a sociedade ibéricas na passagem do século 16 para o 17. Nesse sentido, não se encontram em seus textos as descrições e narrativas vazias -ou as análises superficiais e invertidas- que se tornaram a marca de muitos historiadores ditos "culturais", as quais acabaram angariando o desprezo de uma considerável parcela de pesquisadores por incorporarem à análise histórica, aleatoriamente e sem critério, os conceitos da antropologia e sociologia acerca da imagem do rei, da monarquia e da sociedade de corte.
Seu ponto de partida para as interpretações do tempo dos Filipes é o acordo feito entre D. Manuel e os Reis Católicos, que deu início aos casamentos cruzados entre os descendentes e herdeiros das monarquias ibéricas, inaugurando a linhagem de reis aparentados, que perdurou por todo o século 16 e resultou, finalmente, na união das coroas em 1580.
O amplo conhecimento que Fernando Bouza possui das fontes existentes nos arquivos portugueses e espanhóis traz à tona, num texto erudito e de humor refinado, certos âmbitos ainda pouco esmiuçados do "modus gobernandi" da Casa de Áustria, em sua versão ibérica. A imprensa régia na época de Filipe 2º é um desses âmbitos, pois tratar-se-ia de um sistema inovador no modo de governar europeu, por meio de um mecanismo de divulgação das decisões régias em todo o vasto império. Num império universal como o de Filipe 2º, a difusão de novas técnicas tipográficas foi elementar para dar a conhecer não só as decisões, mas a própria imagem régia, espalhada aos quatro cantos pelas gravuras de fácil reprodução em grande quantidade. Nesse sentido, foi fundamental a participação de livreiros e impressores, tais como Alonso Gómez, "Typographus Curiae Regiae" ou "Regis Catholici Typographus", que acompanhou o rei Papelero entre 1567 e 1584, imprimindo e editando desde suas determinações e advertências até as relações de viagem pelos reinos europeus.
Em outra discussão elementar e pouco difundida entre nós, o autor contempla o desejo frustrado dos portugueses de transferir a corte de Madri para Lisboa, a partir da jornada e permanência de Filipe 2º em Portugal entre 1580 e 1583. Aqui, Bouza Álvares revela efetivamente sua vocação para extrair de fontes burocráticas e administrativas, tanto portuguesas quanto espanholas, as expectativas em torno da construção da Corte Universal, que Jean Delumeau encontrou em alguns textos proféticos e literários da época. Demonstra, assim, que o milenarismo não era o sonho somente dos seguidores de Savonarolla ou dos sebastianistas, mas impregnava invariavelmente as esperanças dos adeptos da causa filipista em Portugal (como é o caso de Luís Mendes de Vasconcelos), considerados durante muito tempo os "traidores da pátria". Estes, por sua vez, são até hoje pouco conhecidos devido à força da Lenda Negra sobre Filipe 2º e à dificuldade dos portugueses em colocar o Portugal dos Filipes em seu devido lugar, isto é, na esfera das relações internacionais de poder que marcaram a passagem do século 16 para o 17.
Numa espécie de movimento inverso a este, Bouza trata também da presença dos nobres portugueses que se transferiram, junto com a saída de Filipe 2º, para a corte de Madri e que por lá permaneceram até os duros tempos do conde-duque Olivares, quando encontravam-se já extremamente desgastados os termos iniciais do Acordo de Tomar de 1581 -acordo que deu início ao tempo dos Filipes em Portugal.
A coletânea enriquece a onda revisionista dos estudos sobre "O Tempo dos Filipes em Portugal", a Restauração e o século 17, que ganhou grande ênfase com os trabalhos de historiadores como António Oliveira, António Manuel Hespanha -autor do prefácio desta obra- e outros. O autor foi também o rigoroso responsável pelas reedições espanhola e portuguesa das "Cartas para as Infantas Meninas", um dos conjuntos documentais mais raros e delicados da época de Filipe 2º -sua afetuosa correspondência com as filhas durante o período em que o monarca encontrava-se em Lisboa para a consolidação do reinado das Duas Coroas.
Embora a obra de Bouza Álvarez não faça nenhuma menção à América portuguesa, a nós, que também tivemos nosso Tempo dos Filipes, seus artigos ajudam a pensar novas possibilidades de análise desse complexo burocrático-administrativo, ampliando as hipóteses de investigação e sugerindo conjuntos de fontes pouco explorados, especialmente para aqueles que desejam ir um pouco além do já consagrado tempo dos Flamengos.


Ana Paula Torres Megiani é professora de história na Unibero.

Portugal no Tempo dos Filipes - Política, Cultura e Representações (1580-1668)
Fernando Bouza Álvarez
Tradução: Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim
Edições Cosmos (Lisboa)
373 págs., 5.500 escudos
Onde encomendar: Livraria Portugal (0/xx/11/3104-1748)



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