|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
União das coroas
ANA PAULA TORRES MEGIANI
União ibérica, união das coroas ou dominação filipina. São estas as denominações mais comuns utilizadas pelos historiadores luso-brasileiros quando se referem ao período dos 60 anos
em que o reino de Portugal e suas colônias estiveram dinasticamente unidos à Espanha na pessoa de um mesmo monarca, ou
seja, os três Filipes de Habsburgo. Uma outra expressão que tem
sido menos adotada é a que vemos no título "Portugal no Tempo dos Filipes", do historiador espanhol Fernando Bouza Álvares, que apresenta duas vantagem em relação aos nomes referidos. Contempla, a principio, o período histórico, e sugere, no
plural, a tríade de Filipes que reinaram em Portugal. Além disso,
exclui a concepção conciliatória embutida no termo "união" e
elimina a tendenciosa e anacrônica visão implícita na palavra
"dominação".
A obra é uma reunião de artigos do professor e pesquisador da
Universidade Complutense de Madri, agora traduzidos para o
português e anteriormente publicados em diversas línguas nos
principais periódicos europeus. Especialista e apaixonado pela
história das representações políticas no reinado de Filipe 2º,
Fernando Bouza tratou, nesse conjunto de dez textos, de variados aspectos da cultura política ibérica, tanto na sua relação
com a corte dos Filipes quanto com o complexo do Império
Habsburgo, do qual os Filipes eram também os soberanos.
Antes de mais nada é necessário afirmar que estamos diante
de um autor que, como poucos, vê a história cultural no seu sentido estrito, em que o conceito de representação surge calcado
na análise e interpretação das fontes diretamente ligadas à ação
do complexo burocrático e administrativo dos Filipes, tendo
como fim último o estabelecimento das relações entre a política
e a sociedade ibéricas na passagem do século 16 para o 17. Nesse
sentido, não se encontram em seus textos as descrições e narrativas vazias -ou as análises superficiais e invertidas- que se
tornaram a marca de muitos historiadores ditos "culturais", as
quais acabaram angariando o desprezo de uma considerável
parcela de pesquisadores por incorporarem à análise histórica,
aleatoriamente e sem critério, os conceitos da antropologia e sociologia acerca da imagem do rei, da monarquia e da sociedade
de corte.
Seu ponto de partida para as interpretações do tempo dos Filipes é o acordo feito entre D. Manuel e os Reis Católicos, que deu
início aos casamentos cruzados entre os descendentes e herdeiros das monarquias ibéricas, inaugurando a linhagem de reis
aparentados, que perdurou por todo o século 16 e resultou, finalmente, na união das coroas em 1580.
O amplo conhecimento que Fernando Bouza possui das fontes existentes nos arquivos portugueses e espanhóis traz à tona,
num texto erudito e de humor refinado, certos âmbitos ainda
pouco esmiuçados do "modus gobernandi" da Casa de Áustria,
em sua versão ibérica. A imprensa régia na época de Filipe 2º é
um desses âmbitos, pois tratar-se-ia de um sistema inovador no
modo de governar europeu, por meio de um mecanismo de divulgação das decisões régias em todo o vasto império. Num império universal como o de Filipe 2º, a difusão de novas técnicas
tipográficas foi elementar para dar a conhecer não só as decisões, mas a própria imagem régia, espalhada aos quatro cantos
pelas gravuras de fácil reprodução em grande quantidade. Nesse sentido, foi fundamental a participação de livreiros e impressores, tais como Alonso Gómez, "Typographus Curiae Regiae"
ou "Regis Catholici Typographus", que acompanhou o rei Papelero entre 1567 e 1584, imprimindo e editando desde suas determinações e advertências até as relações de viagem pelos reinos europeus.
Em outra discussão elementar e pouco difundida entre nós, o
autor contempla o desejo frustrado dos portugueses de transferir a corte de Madri para Lisboa, a partir da jornada e permanência de Filipe 2º em Portugal entre 1580 e 1583. Aqui, Bouza
Álvares revela efetivamente sua vocação para extrair de fontes
burocráticas e administrativas, tanto portuguesas quanto espanholas, as expectativas em torno da construção da Corte Universal, que Jean Delumeau encontrou em alguns textos proféticos e literários da época. Demonstra, assim, que o milenarismo
não era o sonho somente dos seguidores de Savonarolla ou dos
sebastianistas, mas impregnava invariavelmente as esperanças
dos adeptos da causa filipista em Portugal (como é o caso de
Luís Mendes de Vasconcelos), considerados durante muito
tempo os "traidores da pátria". Estes, por sua vez, são até hoje
pouco conhecidos devido à força da Lenda Negra sobre Filipe 2º
e à dificuldade dos portugueses em colocar o Portugal dos Filipes em seu devido lugar, isto é, na esfera das relações internacionais de poder que marcaram a passagem do século 16 para o 17.
Numa espécie de movimento inverso a este, Bouza trata também da presença dos nobres portugueses que se transferiram,
junto com a saída de Filipe 2º, para a corte de Madri e que por lá
permaneceram até os duros tempos do conde-duque Olivares,
quando encontravam-se já extremamente desgastados os termos iniciais do Acordo de Tomar de 1581 -acordo que deu início ao tempo dos Filipes em Portugal.
A coletânea enriquece a onda revisionista dos estudos sobre
"O Tempo dos Filipes em Portugal", a Restauração e o século 17,
que ganhou grande ênfase com os trabalhos de historiadores
como António Oliveira, António Manuel Hespanha -autor do
prefácio desta obra- e outros. O autor foi também o rigoroso
responsável pelas reedições espanhola e portuguesa das "Cartas
para as Infantas Meninas", um dos conjuntos documentais
mais raros e delicados da época de Filipe 2º -sua afetuosa correspondência com as filhas durante o período em que o monarca encontrava-se em Lisboa para a consolidação do reinado das
Duas Coroas.
Embora a obra de Bouza Álvarez não faça nenhuma menção à
América portuguesa, a nós, que também tivemos nosso Tempo
dos Filipes, seus artigos ajudam a pensar novas possibilidades
de análise desse complexo burocrático-administrativo, ampliando as hipóteses de investigação e sugerindo conjuntos de
fontes pouco explorados, especialmente para aqueles que desejam ir um pouco além do já consagrado tempo dos Flamengos.
Ana Paula Torres Megiani é professora de história na Unibero.
Portugal no Tempo dos Filipes - Política, Cultura e Representações (1580-1668)
Fernando Bouza Álvarez
Tradução: Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim
Edições Cosmos (Lisboa)
373 págs., 5.500 escudos
Onde encomendar: Livraria Portugal (0/xx/11/3104-1748)
Texto Anterior: Toussaint e a revolução Próximo Texto: O espaço globalizado Índice
|