São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tutela e fantasmagoria


Oscar Negt e Alexander Kluge desmistificam a "Realpolitik"


MILTON MEIRA

A tradição ilustrada francesa e alemã consagrou as expressões de Voltaire, como "écrasez l'infâme!" ("esmaguem a infame!") -para se referir à necessidade de se eliminarem as práticas decorrentes do fanatismo religioso, da ignorância e da prepotência daí decorrentes-, ou a divisa tão cara a Rousseau, "sapere aude" ("ousa saber") -para designar a urgência da autonomia da razão diante de todos os seus tutores, com a consequente passagem da humanidade da infância para a idade adulta, idéia tão bem desenvolvida por Kant em "O Que É a Ilustração?". Outras manifestações desse teor assinalam o núcleo do ideário ilustrado do século 18, cuja finalidade era desmistificar o argumento de autoridade e o aparato ideológico representado sobretudo pela religião.
O que Oscar Negt e Alexander Kluge propõem agora, ainda em nome dessa tradição, é a desmistificação de uma realidade que nos foi imposta como um muro de concreto armado, a "Realpolitik", que marcou o Ocidente nos dois últimos séculos. É a Kant que recorrem, principalmente para recuperar os conceitos de espaço público e de uso público da razão.
"O que Há de Político na Política" é um convite para o desvelamento do mistério que envolve o argumento dos que invocam sempre a realidade inexorável dos acontecimentos, das guerras, do mercado, do esfacelamento do mundo do trabalho, da inutilidade da leitura dos textos de Marx, porque "perderam a atualidade" e por isso mesmo "devem ser banidos das escolas", e de tantas outras "verdades" que os "fanáticos" não querem enxergar. Resta-nos saber, então, o que é esse muro de concreto. Em vez de realidade, o que vemos, mais uma vez, é pura fantasmagoria. Basta revermos os estragos da "Realpolitik" desde o século 19. "O que se dispendeu neste século, que dá continuidade ao século 19, é considerável: dispêndio em força de trabalho, de capital, crimes raciais, genocídios, vítimas, destruições, reconstrução com base em modelo antigo (insistência, portanto), desperdício de homens e mulheres talentosos, expulsões gigantescas, diásporas, inflações na Europa central, duas Guerras Mundiais."

A repetição do mesmo
A aceitação pura e simples da "realidade", que é apontada pelos novos "condottieri" como sinal de muita sabedoria, é, na verdade, a repetição do mesmo, da "Realpolitik" que insiste na prática da tutela, do clientelismo político, envolvendo o povo como massa de manobra. Negt e Kluge simplesmente nos convidam a aguçar nossa capacidade de julgar, a encontrar "relações de medida na política", as quais só poderão se fazer num espaço público da razão sem tutela, e que nos permitirá repensar a política como expressão de movimentos autônomos, não individuais, mais no espaço da comunidade política.

A OBRA
O que Há de Político na Política Oscar Negt e Alexander Kluge Tradução: João Azenha Júnior Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171) 320 págs., R$ 35,00



O traço marcante da "Realpolitik" tem sido o da exclusão dos segmentos da população que se organizam, que se movimentam por si mesmos, que atuam politicamente, no sentido clássico do verbo "politeuein" (pôr-se em atividade), comportar-se como cidadão, num espaço de liberdade. "Nos momentos em que uma comunidade se insinua, isto é, nos momentos em que as pessoas começam a se organizar por si mesmas e de acordo com seus interesses vitais, a "Realpolitik" dedica-se exatamente a intervir nesses processos, interrompendo sua continuidade, o que significa que ela se empenha em impedir a concretização de melhores possibilidades de organização da comunidade. Diante de interesses que eram orientados em função da comunidade e que se entendiam como políticos, a "Realpolitik" sempre fez valer o ponto de vista depreciativo que os encara como mera utopia, contribuindo assim para a mistificação do "poder de realidade do que é dado"."
E não podemos nos esquecer também de que o processo de desmistificação precisa vir acompanhado de uma recuperação do domínio da linguagem, que nos foi expropriada e expurgada por essa mesma tão decantada "Realpolitik". O que entendemos por política? É o que fazem os profissionais da política? É a movimentação espontânea da comunidade com vistas à sua organização autônoma? É o respeito irrestrito às leis da cidade? É a dedicação total ao povo, com o sacrifício da vida privada? "A luta pelos direitos humanos começa com a luta pelo seu conceito. Isso porque um instrumento essencial dos dominadores é "expropriar" as pessoas que se tornaram conscientes da sua repressão e que querem se emancipar dos meios de expressão de sua linguagem política, na qual estão concentradas, ao mesmo tempo, a recordação de ferimentos sofridos, a memória coletiva e a reivindicação e a promessa de uma vida melhor. Se a confissão de uma sociedade, de que nela existem relações de poder, vale nada menos do que a confissão pública de uma falta de legitimidade de domínio, então essa proibição de existência dos conceitos aplica-se fundamentalmente a todo o espectro de símbolos da questão política em torno do qual se organiza o comportamento e o pensamento críticos."
Como construir novas barricadas da resistência ou reerguer antigas, sem um referencial de medida, sem um instrumental que nos permita julgar essa realidade de cimento armado e que se apresenta como o álibi da política moderna e cada vez mais da pós-moderna? Para a construção desse instrumental de medida é necessário repensar a possibilidade de construção do espaço público, enfim, fazer o uso público da razão. Kant, em sua obra "O Que É Orientar-se pelo Pensamento", considerava que a esfera pública, "essa força externa, que tira do ser humano a liberdade de comunicar publicamente seus pensamentos, também lhe tira a liberdade de "pensar", pois a única garantia para a "exatidão" do nosso pensamento reside no fato de que pensamos em comum com outros a quem comunicamos nossos pensamentos". Alusão clara à necessidade de se conquistar o espaço público como o lugar para a efetivação do uso público da razão autônoma. É aqui que surge a possibilidade da medida e do aguçamento da capacidade de julgar, o que a "Realpolitik" jamais permitiu.
Oscar Negt e Alexandre Kluge são dois alemães às voltas com a nova realidade que se lhes apresenta após a queda do Muro de Berlim, mas sua reflexão de longe ultrapassa as fronteiras da Alemanha reunificada e aos poucos vai-se firmando como uma pequena luz, um convite à ousadia de saber, contra o comodismo dos resignados diante da "realidade inexorável", como se fosse este nosso destino imutável. Finalmente, eis de volta o ideal da ilustração. Se o fanatismo religioso ainda precisa, para esmagá-lo, de uma razão ilustrada, esta, agora, terá o seu trabalho redobrado, pois a "realidade" que nos é imposta também deve ser desmistificada.


Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política da USP, autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp-Nova Stela) e co-autor de "O Iluminismo - A Revolução das Luzes" (Ática).


Texto Anterior: Celso Frederico: Globalização e atraso
Próximo Texto: Paulo Butti de Lima: O classicismo de Tucídides
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.