São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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O classicismo de Tucídides

PAULO BUTTI DE LIMA

Jacqueline de Romilly foi a principal responsável por uma das mais importantes edições da obra de Tucídides, publicada na coleção "Les Belles Lettres" entre 1953 e 1972. Dedicou ainda dois livros ao historiador grego: o primeiro, em 1947, "Tucídides e o Imperialismo Ateniense"; o segundo, em 1956, "História e Razão em Tucídides".
A clareza de expressão, o cuidado em evitar digressões demasiado eruditas, a prudência e maleabilidade na formulação de hipóteses tornam suas análises acessíveis a um público não só de especialistas, constituindo boa aproximação aos principais temas da obra de Tucídides. Os problemas compositivos colocados por essa obra tinham dado origem a uma longa discussão, da qual participaram algumas das maiores figuras de estudiosos da filologia e da história grega. Romilly, entre outros, ajudou a redimensionar a questão, que nascia da proposta de resolver divergências e ambiguidades na obra do historiador distinguindo os momentos em que esta teria sido composta. Sem desconhecer a pertinência desse procedimento, a autora acentua a visão unitária de Tucídides na concatenação de seu relato e a necessidade de uma aproximação analítica à obra em seu conjunto.
Nessa perspectiva, em seu primeiro livro, Romilly procurava interpretar a posição do historiador, raras vezes manifestada, frente aos episódios que narra: o conflito que opôs Atenas e Esparta no final do século 5º a.C. Na relação entre os discursos com os quais entremeia sua narração e a sequência dos acontecimentos selecionados, Tucídides teria tornado evidente uma interpretação sua da guerra do Peloponeso.
Já em "História e Razão", indo além dessa "visão" geral subjacente ao relato, a autora constata, nos mais diversos momentos da obra histórica, a organização racional da narração e o fim demonstrativo da seleção dos acontecimentos. Não interessa tanto a Romilly destacar o procedimento do historiador na obtenção da informação. Ao contrário, ela se dedica a indagar o modo no qual, a partir da informação obtida, o historiador compõe seu relato, selecionando seu material e dotando-o de uma racionalidade própria. Dando ênfase aos aspectos compositivos, a autora lê o texto de Tucídides segundo uma intenção que guiaria o historiador mesmo na menção de particulares aparentemente secundários. Onde outras tradições de leitura tendem a ver influências das fontes de informação ou mudanças de opinião do historiador, Romilly constata unidade e guia racional, acordo e concatenação. Desprezando as dificuldades da investigação histórica, a autora acaba por afirmar, contra o próprio Tucídides, que o tema por ele escolhido era "limitado" e que sua informação era "fácil".

História e tragédia
"História" e "razão" apresentam-se assim como termos quase antagônicos, que se afirmam em detrimento um do outro, mas se combinam em Tucídides com exemplaridade e mestria artística. O historiador torna-se quer o representante máximo do gênero historiográfico, quer o menos "historiador" entre todos. A racionalidade que exprime em toda a sua obra é concomitantemente a nota peculiar de seu método e o símbolo de um classicismo que a autora não hesita em confirmar na poesia e na tragédia do 5º século a.C. Desse modo, ao mesmo tempo em que levanta questões essenciais para a compreensão do maior historiador ateniense -do que depende a imagem de verdade e racionalidade que transmite do começo ao fim de sua obra?-, Romilly corre o risco de reduzi-la a problemas de "beletrística".

A OBRA
História e Razão em Tucídides Jacqueline de Romilly Tradução: Rosa Bueno (tradução do grego: S. L. Rodrigues da Rocha)
Editora da Universidade de Brasília (Tel. 0/xx/61/226-6874)
227 págs., R$ 22,00



Podemos, todavia, encontrar ainda hoje em "História e Razão" algumas análises cuidadosas de aspectos importantes do texto histórico, em particular dos momentos em que a pura narração parece deixar pouco espaço para o que está além dos "fatos". O estudo desses momentos encontra-se nos dois primeiros capítulos: os procedimentos do relato e os relatos de batalha. O comentário da autora mostra-se aqui original e por vezes exemplar. A rígida seleção da informação e o direcionamento do relato explicam, com efeito, algumas características da narração do assédio ateniense a Siracusa. E a comparação dos vários relatos de batalha permite uma maior inteligibilidade dos procedimentos de Tucídides, diferenciando-o de seus "predecessores", Heródoto e os poetas épicos.
Já o terceiro capítulo, que trata das antilogias, ainda que em princípio pareça oferecer maior interesse para um público mais amplo, tornou-se hoje o mais envelhecido. A apresentação de discursos contrapostos, uma forma comum de expressão na cultura grega clássica, é tratada pela autora como uma "moda intelectual". Protágoras continua sendo o "pai" dessa forma de argumentação; e a leitura de Aristóteles não impede o uso fácil de termos como "dialética" e "lógica". A autora serve-se, enfim, de toda a sua retórica para poder afirmar que Tucídides não atenta contra a "exatidão histórica" atribuindo a seus personagens palavras que não poderiam ter sido "preparadas" por estes.
O último capítulo estuda a "arqueologia", a parte inicial da obra de Tucídides, na qual o historiador expõe sua visão do poder econômico e militar das cidades gregas antes do conflito, com o fim de demonstrar a maior grandeza de seu objeto de narração. O pressuposto de Romilly é pouco preciso: aqui Tucídides se libertaria dos entraves da investigação histórica e poderia compor, finalmente, um discurso o mais racional possível. No entanto, essa posição permite-lhe enfatizar o procedimento do historiador na afirmação da verdade. Com originalidade, a autora indica a importância dos elementos utilizados na expressão de uma narração "verdadeira" -os indícios e a verossimilhança- e sua validade para toda a obra. Percorrendo a história mais antiga e criticando seus predecessores, Tucídides compõe a imagem geral de seu procedimento, que evitará mencionar durante a narração propriamente dita. Como sabemos, também nesse ocultamento, assim convalidado, estão as bases de seu "classicismo" futuro.


Paulo Butti de Lima é professor na Scuola Superiori de Studi Storici da Universidade de San Marino (Itália) e autor de "L'Inchiesta e la Prova: Immagine Storiografica, Pratica Giuridica e Retorica nella Grecia Classica" (Einaudi).


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