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O classicismo de Tucídides
PAULO BUTTI DE LIMA
Jacqueline de Romilly foi a principal responsável por uma das mais
importantes edições da obra de Tucídides, publicada na coleção "Les
Belles Lettres" entre 1953 e 1972. Dedicou ainda dois livros ao historiador grego: o primeiro, em 1947, "Tucídides e o Imperialismo Ateniense"; o segundo, em 1956, "História e Razão em Tucídides".
A clareza de expressão, o cuidado em evitar digressões demasiado
eruditas, a prudência e maleabilidade na formulação de hipóteses tornam suas análises acessíveis a um público não só de especialistas,
constituindo boa aproximação aos principais temas da obra de Tucídides. Os problemas compositivos colocados por essa obra tinham dado
origem a uma longa discussão, da qual participaram algumas das
maiores figuras de estudiosos da filologia e da história grega. Romilly,
entre outros, ajudou a redimensionar a questão, que nascia da proposta de resolver divergências e ambiguidades na obra do historiador distinguindo os momentos em que esta teria sido composta. Sem desconhecer a pertinência desse procedimento, a autora acentua a visão unitária de Tucídides na concatenação de seu relato e a necessidade de
uma aproximação analítica à obra em seu conjunto.
Nessa perspectiva, em seu primeiro livro, Romilly procurava interpretar a posição do historiador, raras vezes manifestada, frente aos
episódios que narra: o conflito que opôs Atenas e Esparta no final do
século 5º a.C. Na relação entre os discursos com os quais entremeia sua
narração e a sequência dos acontecimentos selecionados, Tucídides
teria tornado evidente uma interpretação sua da guerra do Peloponeso.
Já em "História e Razão", indo além dessa "visão" geral subjacente ao
relato, a autora constata, nos mais diversos momentos da obra histórica, a organização racional da narração e o fim demonstrativo da seleção dos acontecimentos. Não interessa tanto a Romilly destacar o procedimento do historiador na obtenção da informação. Ao contrário,
ela se dedica a indagar o modo no qual, a partir da informação obtida,
o historiador compõe seu relato, selecionando seu material e dotando-o de uma racionalidade própria. Dando ênfase aos aspectos compositivos, a autora lê o texto de Tucídides segundo uma intenção que guiaria o historiador mesmo na menção de particulares aparentemente secundários. Onde outras tradições de leitura tendem a ver influências
das fontes de informação ou mudanças de opinião do historiador, Romilly constata unidade e guia racional, acordo e concatenação. Desprezando as dificuldades da investigação histórica, a autora acaba por
afirmar, contra o próprio Tucídides, que o tema por ele escolhido era
"limitado" e que sua informação era "fácil".
História e tragédia
"História" e "razão" apresentam-se assim como termos quase antagônicos, que se afirmam em detrimento um do outro, mas se combinam em Tucídides com exemplaridade e mestria artística. O historiador torna-se quer o representante máximo do gênero historiográfico,
quer o menos "historiador" entre todos. A racionalidade que exprime
em toda a sua obra é concomitantemente a nota peculiar de seu método e o símbolo de um classicismo que a autora não hesita em confirmar na poesia e na tragédia do 5º século a.C. Desse modo, ao mesmo
tempo em que levanta questões essenciais para a compreensão do
maior historiador ateniense -do que depende a imagem de verdade e
racionalidade que transmite do começo ao fim de sua obra?-, Romilly corre o risco de reduzi-la a problemas de "beletrística".
A OBRA
História e Razão em Tucídides
Jacqueline de Romilly
Tradução: Rosa Bueno (tradução do grego: S. L. Rodrigues da Rocha)
Editora da Universidade de Brasília (Tel. 0/xx/61/226-6874)
227 págs., R$ 22,00
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Podemos, todavia, encontrar ainda hoje em "História e Razão" algumas análises cuidadosas de aspectos importantes do texto histórico,
em particular dos momentos em que a pura narração parece deixar
pouco espaço para o que está além dos "fatos". O estudo desses momentos encontra-se nos dois primeiros capítulos: os procedimentos
do relato e os relatos de batalha. O comentário da autora mostra-se
aqui original e por vezes exemplar. A rígida seleção da informação e o
direcionamento do relato explicam, com efeito, algumas características da narração do assédio ateniense a Siracusa. E a comparação dos
vários relatos de batalha permite uma maior inteligibilidade dos procedimentos de Tucídides, diferenciando-o de seus "predecessores",
Heródoto e os poetas épicos.
Já o terceiro capítulo, que trata das antilogias, ainda que em princípio
pareça oferecer maior interesse para um público mais amplo, tornou-se hoje o mais envelhecido. A apresentação de discursos contrapostos,
uma forma comum de expressão na cultura grega clássica, é tratada
pela autora como uma "moda intelectual". Protágoras continua sendo
o "pai" dessa forma de argumentação; e a leitura de Aristóteles não impede o uso fácil de termos como "dialética" e "lógica". A autora serve-se, enfim, de toda a sua retórica para poder afirmar que Tucídides não
atenta contra a "exatidão histórica" atribuindo a seus personagens palavras que não poderiam ter sido "preparadas" por estes.
O último capítulo estuda a "arqueologia", a parte inicial da obra de
Tucídides, na qual o historiador expõe sua visão do poder econômico e
militar das cidades gregas antes do conflito, com o fim de demonstrar
a maior grandeza de seu objeto de narração. O pressuposto de Romilly
é pouco preciso: aqui Tucídides se libertaria dos entraves da investigação histórica e poderia compor, finalmente, um discurso o mais racional possível. No entanto, essa posição permite-lhe enfatizar o procedimento do historiador na afirmação da verdade. Com originalidade, a
autora indica a importância dos elementos utilizados na expressão de
uma narração "verdadeira" -os indícios e a verossimilhança- e sua
validade para toda a obra. Percorrendo a história mais antiga e criticando seus predecessores, Tucídides compõe a imagem geral de seu
procedimento, que evitará mencionar durante a narração propriamente dita. Como sabemos, também nesse ocultamento, assim convalidado, estão as bases de seu "classicismo" futuro.
Paulo Butti de Lima é professor na Scuola Superiori de Studi Storici da Universidade de San Marino (Itália) e autor de "L'Inchiesta e la Prova: Immagine Storiografica, Pratica Giuridica e Retorica nella Grecia Classica" (Einaudi).
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