São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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Dizer o outro


Hartog interpreta obra de Heródoto à luz de uma antropologia histórica


FRANCISCO MURARI PIRES

Já para Aristóteles, Heródoto valia por designativo de história; mas, quando, dois séculos mais tarde, Cícero cristaliza essa identidade, sua fama vem acompanhada por certa reserva, em que o "pai da história" é estigmatizado como contador de lendas fabulosas. Por toda a Antiguidade, a começar por Tucídides, avolumaram-se máculas denegrindo a reputação do historiador. É no Renascimento que emerge a consciência da contradição dessa fama. No século 19, a vertente acadêmica do pensamento historiográfico de orientação positivista toma a frente das discussões. Desdobrando-se pelo nosso século, várias questões correlatas dos preceitos e regras dessa metodologia de crítica interna/externa de documentos se sucedem, compondo o que J.A.S. Evans denominou de a nova mitologia herodotiana.
Em "O Espelho de Heródoto", a viagem hermenêutica de Hartog parte à descoberta de novos horizontes epistemológicos. Por Hartog, o livro de Heródoto abre-se à leitura de uma antropologia histórica, herdada de Louis Gernet, partilhada pela convivência com Jean-Pierre Vernant e ainda especialmente orientada pelos rumos dos ensaios sobre a escrita da história de Michel de Certeau. A dicotomia simplista, que acusava ou a verdade ou a mentira na reconstituição dos fatos narrados, é deslocada por análises que exploram significações mais refinadas de abordagem das tradições herodotianas.
A viagem, ao principiar pelo "lógos" (discurso) dos citas, nele busca depreender a construção de uma figura do nômade que torna pensável sua alteridade no mundo da "pólis", neste espaço de destinatários helênicos, para os quais a narração das histórias está voltada. Mas, para dizer o outro, dotando de credibilidade sua inscrição narrativa no mundo do destinatário, o historiador confronta-se com um problema de tradução: remeter o que é diferente, alteridade de sentido opaco, o bárbaro, para os códigos de inteligibilidade do mesmo, a identidade helênica. Heródoto põe, então, em obra uma retórica da alteridade, mediante figuras e procedimentos narrativos de inversão, de comparação e analogia, com o que a narração faz ver o outro filtrado no mesmo.
E, se o relato de viagem dispõe-se por relato fiel, deve comportar uma rubrica: "thoma", maravilhas, curiosidades, o que compõe mais outro desses recursos retóricos. Quatro marcas de enunciação do sujeito narrativo balizam os efeitos persuasivos de veracidade do relato: "Eu vi, eu ouvi, eu digo, eu escrevo".

O bárbaro e o tirano
E, como na oratória antiga, antecipadamente respondendo a uma eventual crítica que denunciasse a falta de uma percepção totalizante da obra herodotiana, Hartog aborda também a questão do poder, do poder bárbaro, do poder régio que, diante do mundo da cidade, atravessa o conjunto das histórias e constitui uma peça importante de sua organização. Mas o poder régio, bárbaro, especialmente persa pelas "Histórias", tem um par, o tirano (grego), seu duplo especular no mundo da "pólis". Pelo cruzamento dessas duas imagens constitui-se a representação do poder despótico. E as histórias do despotismo revelam uma essência hibrística, um desejo excessivo cuja lei é a transgressão. O déspota não consegue impedir a si mesmo de violar os "nómoi" (costumes), quer sociais, religiosos ou sexuais. Então, homem ímpio e criminoso, o déspota é receptáculo de todas as perversões. Mas as histórias do poder despótico, porque lugar mesmo da "hybris" (desmedida), compõem reiterações de um destino certamente ruinoso: desmedida que, amadurecendo, produz a espiga do erro funesto, cuja colheita é feita apenas de lágrimas. Os déspotas devem terminar mal.
Pelo olhar grego do espelho herodotiano projeta-se, pois, uma visão inteligível do bárbaro. Pela narrativa da guerra movida por Xerxes contra a Hélade pode-se compreender a expedição de Dario contra os citas. A guerra cita de Dario e a expedição de Xerxes contra a Grécia, espelhadas pela narrativa herodotiana, compõem reiteração da essência imperial ruinosa da realeza persa, com aquela prefigurando esta ou esta repetindo aquela, como se o poder dos grandes reis fosse uma máquina voltada para a repetição: uma sorte de compulsão em afirmar o próprio poder para, afirmando-o, destruí-lo.

A OBRA
O Espelho de Heródoto - Ensaio sobre a Representação do Outro
François Hartog
Tradução: Jacyntho Lins Brandão
Editora da UFMG (Tel.0/xx/31/499-4650)
488 págs., R$ 45,00



Certamente as "Histórias" dispõem uma representação do poder despótico e de seus projetos históricos imperiais apreendidos pela inteligibilidade do olhar grego. Mas trata-se do olhar grego "tout court", mesmo que aureolado como o dos gregos animados pelos melhores sentimentos? Qual olhar? Ateniense, certamente, para as Guerras Medas (a defesa da liberdade, a união helênica, a salvação da Hélade). Por que são as razões apresentadas por esse discurso ateniense as que definem a expressão mesma da identidade helênica? Por que ele avoca em seu nome ser a projeção desse olhar "nacional"? Oblitere-se, então, dessas histórias a inteligibilidade que as razões discursivas do olhar lacedemônio, por exemplo, sustentaram contra ele, propugnando antes por retroceder a linha de resistência para o istmo de Corinto, abandonando a Ática ao bárbaro para agora cuidar da preservação do Peloponeso (Lacedemônia)? Ignore-se, pois, por essa equação que eleva as razões do discurso ateniense como a expressão da identidade helênica, a dialética dos interesses parciais de um mundo antes cindido em cidades antagônicas, cada uma mormente voltada para a sua própria salvação, e mesmo com o sacrifício das outras? Comunidade helênica contra pólis singular compõe equação de conveniência retórica ambígua, que nela e por ela circunstancialmente joga união contra cisão e vice-versa.
A transparência fulgurante da inteligibilidade dessas histórias, consoante o olhar do discurso ateniense, se dá contra o silenciamento das vozes de outros discursos, pelos quais afloram outros sentidos para os mesmos fatos: cisões, antagonismos, dissensões, egoísmos, pânicos, fugas, traições. Na e pela narração herodotiana, tanto o rei bárbaro quanto o tirano grego são memorizados por duplo registro, por episódios que contam seus atos transgressores contra outros que revelam justiça, sacrilégios contra reverências piedosas, cegueira desvairada contra discernimento sapiente.
As imagens refletidas pelo espelho herodotiano não se dariam então pela sobreposição de sua memorização dominante contra o fundo opaco de suas memórias recessivas? A luz que a visão do espelho herodotiano projeta, por essa dominância branca de fulgurante inteligibilidade no âmbito da memória histórica, não poderia ser analisada pelo prisma de uma crítica que decompusesse as cores recessivas assim absorvidas pelo "olhar grego" unívoco e homogeneizante assumido como "o olhar do Espelho"?


Francisco Murari Pires é professor do departamento de história da USP.


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