São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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A conquista da terra


Zimmer descreve o processo evolutivo no qual os primeiros vertebrados saíram da água


NELIO BIZZO

As grandes linhas da evolução biológica têm sido objeto de discórdia desde a época de Charles Darwin. Boa parte dos cientistas acredita que as grandes novidades evolutivas (macroevolução) aparecem como consequência de pequenas, porém numerosas, novidades biológicas que se acumulam com o passar do tempo geológico (microevolução). Talvez um jornalista entendesse bem essa concepção se lhe fosse dito algo como: "Na redação do processo evolutivo não existem manchetes ou furos de reportagem".
Os seguidores de Willi Hennig, um alemão que permaneceu muito tempo desconhecido por trabalhar do lado errado do Muro de Berlim, e do saudoso Collin Patterson, do Museu Britânico, vinham nutrindo crescente desdém pelas informações trazidas pelos fósseis. Para esses estudiosos, que constituem uma escola chamada Sistemática Filogenética, as informações petrificadas dos fósseis diziam muito pouco além de generalidades anatômicas.
Recentemente, no entanto, redimiu-se a idéia de que nosso passado geológico tenha sido habitado por "monstros da esperança", seres vivos bizarros que poderiam ter originado todo um novo grupo de seres vivos. Seus fósseis poderiam talvez dar pistas importantes para descobrir a origem de grandes grupos de seres vivos inteiramente originais. De certa forma, estava reaberta a temporada de caça aos monstros pré-históricos que povoaram a mente de um sem número de pessoas, desde a Grécia antiga. Os seres viventes petrificados, pela natureza ou pelas três górgones da mitologia grega, como a Medusa, foram fermento no imaginário das mais diversas civilizações.
O livro "À Beira d'Água" é, por assim dizer, uma hemeroteca das mais recentes e espetaculares manchetes do processo evolutivo, desde a época em que os primeiros vertebrados ensaiaram alguns passos fora d'água até a volta dos grandes mamíferos aquáticos arrependidos. Carl Zimmer, um jovem e talentoso jornalista especializado em divulgação científica, produziu um texto estimulante, repleto de figuras de linguagem que são, a um tempo, criativas e via de regra rigorosas.
Assemelha-se a um etnógrafo estudando a cultura de uma tribo distante. Seu método consiste em travar intenso contato com o cientista, entender seu trabalho -e isso em alguns casos significa acompanhá-lo em pesquisas no campo-, fazer-lhe as perguntas que um cidadão comum gostaria de fazer, até compreender a complexidade do assunto, para então produzir um texto denso do ponto de vista da informação e elegante na forma.
A tradução não é o ponto alto do livro, diga-se de passagem, o que obrigará o leitor a fazer algumas concessões para prosseguir no texto. Seu início é particularmente espinhoso, mas isso não deve dissuadir ninguém a ir em frente, mesmo que seja preciso realizar pequenas correções por iniciativa própria. Por exemplo, na pág. 166 o leitor encontrará uma descrição de como as abelhas usam a luz do Sol polarizada para se orientar, como se fosse um "compasso" (bússola).

A OBRA
À Beira d'Água Carl Zimmer Tradução: Marcus Penchel Jorge Zahar Editor (Tel. 0/xx/21/240-0226) 335 págs., R$ 30,00



Logo em seguida, à pág. 169, afirma-se que os únicos mamíferos marsupiais que têm dentes de uma certa forma são os "opossum" sul-americanos. Na mesma página essa estranha palavra aparece nada menos do que quatro vezes. Nas páginas seguintes o estranho nome aparece de forma recorrente até que, por fim, à pág. 227, o leitor encontrará a tradução (gambá). O sistema de notas adotado, que aparece a partir da pág. 294, não utiliza números ou qualquer sinal, sendo quase enigmático.

Transformação da vida
Apesar de pequenos deslizes como esses, a leitura é agradável pela única razão de o texto estar cravejado de estrepitosas manchetes biológicas, algumas acompanhadas até por figuras de baleias que mais parecem cachorros, golfinhos com pequenos cotos e outras figuras absolutamente impensáveis para quem não acreditava que os fósseis pudessem trazer algo além do que banalidades anatômicas.
Com conhecimento de causa, Zimmer relata como uma coleção de fósseis mudou de forma profunda a idéia que se tinha sobre o que se convencionou chamar de "a conquista do meio terrestre" pelos vertebrados. Até bem pouco tempo, valorizava-se muito a idéia de que esse passo tivesse ocorrido em ambiente de água doce. Alguns fatos simples inspiravam essa crença, entre eles o de que os atuais peixes pulmonados (como a pirambóia) são de água doce, assim como a imensa maioria dos anfíbios. Parecia lógico supor que esses animais apenas tivessem conservado algumas de suas características originais.
O cenário imaginado era algo dramático. Tendo que suportar períodos críticos de secas prolongadas, apenas teriam sobrevivido peixes que tivessem a capacidade de obter seu oxigênio diretamente a partir do ar atmosférico, sem depender de brânquias. Essa idéia foi defendida por um professor de zoologia, Alfred Sherwood Romer, que é ainda hoje bibliografia obrigatória em qualquer curso de biologia. No entanto, há pouco mais de 30 anos, um de seus alunos, Keith Thomson, que depois seria professor em Yale, começou a abrir caminho para uma explicação inteiramente diferente.
Zimmer conta em detalhes como um grupo de paleontólogos decidiu escavar em busca de fósseis desses primeiros tetrápodes primitivos, algo parecidos com salamandras, até concluírem que eles viviam em grandes populações em ambiente costeiro. Imaginaram que essas criaturas exploravam extensas lagoas rasas que aprisionavam cardumes de pequenos peixes na maré baixa. Com farto suprimento de comida, usavam suas quatro pernas para desvencilhar-se de algas e deslocar-se no íngreme terreno entre marés, como um iguana marinho. Os pulmões poderiam ser úteis nas poças quentes onde o oxigênio, pouco solúvel em água quente, já tivesse sido consumido por bactérias ou processos oxidativos. De certa forma, os pulmões passaram a ser vistos como muito menos cruciais para o início da vida na terra firme do que se pensava antes.
Mas outro passo decisivo ainda estava para ser dado. Todos nós temos uma idéia da dificuldade que aquelas criaturas bizarras encontravam para se alimentar, especialmente nos dias em que uma congestão nasal nos impede de mastigar o alimento e de respirar ao mesmo tempo. Para quem estava acostumado a apanhar na água que entrava pela boca, a um só tempo, o alimento e o oxigênio de que necessitava, a vida na terra trazia um inconveniente nada desprezível e que, entre outras consequências trágicas, poderia levar ao sufocamento a mais incauta das criaturas. Assim, Zimmer nos mostra algumas idéias verdadeiramente criativas de como a mandíbula pode ter se originado a partir da desativação das brânquias, ao mesmo tempo em que apareciam respiradouros que livraram a boca da obrigação da ventilação dos pulmões.
Sem dúvida alguma, será nos capítulos finais que a melhor parte do livro será encontrada. Novamente os fósseis serão evocados para reconstruir a história de um grupo de animais terrestres arrependidos, os cetáceos que voltaram ao mar. Com grande riqueza de detalhes, Zimmer nos mostra que o hipopótamo, afinal, pode ser o parente mais próximo das baleias e que a ausência de pernas talvez seja algo muito recente no grupo. Ao fim, restará a certeza de que a reconciliação dos seguidores da sistemática filogenética com os fósseis trouxe muitas idéias novas sobre a macroevolução e pelo menos um livro surpreendente como este.


Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de Educação da USP.


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