São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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O banquete de David Hume

Tratado da Natureza Humana
David Hume
Tradução: Déborah Danowski
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
712 págs., R$ 55,00

ROLF KUNTZ

David Hume ganhou dinheiro, há dois séculos e meio, escrevendo sobre economia, política, história, teoria do conhecimento, literatura, ética e psicologia social. Satisfez, portanto, o amor da fama literária, sua paixão dominante, segundo confessou na bela autobiografia escrita em 1776, pouco antes da morte.
A glória póstuma não foi menor. Tem sido considerado um dos mais importantes filósofos de língua inglesa. Mas seu primeiro livro, publicado aos 25 anos, "saiu natimorto da gráfica", mencionado apenas em três comentários desfavoráveis. "Jamais um empreendimento literário foi mais desafortunado que o meu "Tratado da Natureza Humana'".
Hume atribuiu o fracasso à forma de exposição não às teses do livro. Para atrair a atenção e facilitar a leitura do "Tratado", publicou um resumo anônimo, ainda hoje um texto precioso. Depois, desistiu de ressuscitar o natimorto. Retomou seus temas nas "Investigações", uma "Sobre o Entendimento Humano", outra "Sobre os Princípios da Moral".
A posteridade reabilitou o "Tratado". Nenhum estudioso dispensaria, hoje, a leitura do mais amplo trabalho filosófico de Hume. Este livro é agora disponível, pela primeira vez em língua portuguesa, numa bela e escrupulosa tradução.
A ambição de Hume era refazer o alicerce das ciências, propondo um "fundamento quase inteiramente novo". Não se tratava de reconstruir a matemática e as ciências da natureza, mas de fixar os limites e possibilidades do espírito humano. Contudo o projeto não se esgotava na crítica do conhecimento. Hume se dispôs a contribuir para a construção de uma ciência do homem. O exame das operações do entendimento, objeto do primeiro livro do "Tratado", seria um passo preliminar e indispensável a esse trabalho.
Três livros compõem esta obra, publicada com o subtítulo "Uma Tentativa de Introduzir o Método Experimental de Raciocínio nos Assuntos Morais". Os dois primeiros, "Do Entendimento" e "Das Paixões", foram lançados em 1739. O terceiro, "Da Moral", saiu no ano seguinte.
Hume começou o primeiro livro definindo alguns termos. Chamou de percepções todo conteúdo da mente e dividiu-as em impressões e idéias. As percepções dos sentidos, assim como as paixões e emoções, pertencem à primeira categoria. São sempre mais vivas que as idéias, que delas derivam direta ou indiretamente. Umas e outras podem ser simples ou complexas, mas nunca desligadas, completamente, da experiência.
A imaginação pode combinar idéias e produzir imagens que nunca foram vistas, como a de seres fabulosos, mas o material combinado é sempre, de alguma forma, derivado da experiência. Quando não se consegue vincular uma noção qualquer a uma impressão, o melhor que se pode fazer é abandoná-la. Muitos termos filosóficos simplesmente nada significam.
A parte mais notável dessa crítica é a análise da idéia de causalidade. Todo raciocínio sobre questões de fato é fundado, segundo o filósofo, na relação de causa e efeito. Mas em que consiste essa relação? Raciocínios causais, afirma Hume, pressupõem três circunstâncias: anterioridade da causa, contiguidade no tempo e no espaço e conjunção constante da causa e do efeito. A experiência não oferece mais que isso.
Como podemos, então, realizar inferências quando só está presente um dos termos da relação? Nenhum processo lógico, segundo Hume, permite dizer com certeza que de uma causa determinada sempre decorrerá um efeito ou vice-versa. Não dispomos, nesse caso, dos elementos para o raciocínio demonstrativo (seria como construir um silogismo sem termo médio). A demonstração, em sentido forte, é impossível quando se trata de questões de fato. Não há contradição quando se admite como possível um evento diverso do observado. Só há raciocínio demonstrativo quando se trata de relações de idéias, isto é, de relações formais, como na lógica e na matemática.
No entanto, realizamos inferências o tempo todo e sem isso não sobreviveríamos. Se a razão não pode legitimar esse procedimento, será preciso encontrar outro princípio que o fundamente ou que permita ao menos explicá-lo. Hume recorreu a uma explicação tradicionalmente descrita como psicologista: a experiência da conjunção constante nos leva a esperar que um fato B ocorra depois de um evento A ou a supor que A tenha precedido B. O princípio que determina esse comportamento é o hábito.
Essa resposta pode iluminar, talvez, alguns aspectos do problema, mas não dá conta da experiência intelectual que ultrapassa o senso comum. A construção da ciência, tal como Hume a concebia, pressupõe a noção de regularidade. Sem isso, não teria sentido a própria noção de método experimental, que Hume pretendeu introduzir no exame das paixões e da vida coletiva.
O cientista não é movido apenas pelo hábito. Sua prática é racional e planejada. Tão planejada que Hume, já na introdução ao "Tratado", apontou as dificuldades da experimentação na filosofia moral: "Ela não pode reunir experimentos de maneira deliberada e premeditada, a fim de esclarecer todas as dificuldades particulares que vão surgindo". A solução é coletar os experimentos "mediante a observação cuidadosa da vida humana, tomando-os tais como aparecem no curso habitual do mundo, no comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e em seus prazeres".
Esse era o desafio que Hume deveria enfrentar como pesquisador das ciências humanas. Os livros segundo e terceiro do "Tratado" abririam caminho para tudo que ele produziria como teórico da economia, da política e da economia. Como economista, o autor do "Tratado" foi um dos fundadores do classicismo. Seus escritos sobre moeda, preços, comércio internacional e desenvolvimento econômico anteciparam boa parte da produção dos 50 anos seguintes.
Quem desconhece o "Tratado" pode ler sem dificuldade os escritos econômicos e políticos de Hume. Mas a compreensão se enriquece, de forma notável, quando se têm como pano de fundo as noções desenvolvidas nos livros sobre as paixões e sobre a moralidade. No ensaio "Sobre a Origem do Governo", por exemplo, Hume afirma que "nosso dever para com o magistrado é guardado mais estritamente pelos princípios da natureza humana do que nosso dever para com os concidadãos". É mais fácil entender esse ponto, quando se conhecem as teses sobre como as idéias mais próximas da experiência (menos abstratas) afetam o comportamento.
O livro terceiro, sobre a moral, é particularmente precioso, porque nele se apresentam as bases da teoria social humiana. Nesse texto, como na "Teoria dos Sentimentos Morais", de Adam Smith, o grande tema é a formação da moralidade na vida coletiva. Em Hume, como em Smith, a noção de simpatia -a propensão a assumir a situação do outro- é um conceito fundamental. O conceito smithiano, que aparece numa obra publicada duas décadas mais tarde, é mais amplo e permite dar conta de maior número de fenômenos, mas isso não diminui a importância da contribuição de Hume. Ao contrário, ressalta seu peso.
A análise da moralidade tem ainda, no texto humiano, uma dimensão histórica. Excetuados alguns sentimentos descritos como "naturais", como a inclinação a proteger a prole, Hume vincula os valores às diferentes fases da organização social, isto é, às sucessivas formas de produção e às instituições convenientes a cada etapa. Também na vida coletiva há uma experiência e um aprendizado que se acumulam através dos séculos. Essa é uma noção comum a muitos autores do século 18, como Adam Smith, Adam Ferguson e Jean-Jacques Rousseau.
O "Tratado da Natureza Humana" interessa, portanto, não apenas ao estudioso da teoria do conhecimento, que vai encontrar nesta obra um dos grandes momentos da tradição analítica. Interessa também, e muito, a quem pesquisa a formação das modernas teorias sociológica, política e econômica. O "Tratado" não é um prato, mas um banquete.


Rolf Kuntz é professor do departamento de filosofia da USP.



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