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Essência do empirismo
Empirismo e Subjetividade
Gilles Deleuze
Tradução: L.B.L. Orlandi
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
160 págs., R$ 22,00
BENTO PRADO NETO
Pode-se torcer o nariz frente ao
Deleuze filósofo, pode-se mesmo
ter sérias reservas diante do historiador da filosofia, mas é impossível negar o interesse que apresentam suas leituras dos filósofos
clássicos. O que vale em geral vale
particularmente, aqui, no caso de
"Empirismo e Subjetividade". Os
desafetos da filosofia deleuziana
logo denunciarão os maneirismos
de sempre (no estilo "a essência
da morte é a morte da essência",
que não é de nosso autor); os que
desconfiam de sua história da filosofia apontarão para a apresentação inacreditavelmente sistemática (com direito às indefectíveis "tabelinhas"), para a inesgotável proliferação de conceitos
que não se encontram na superfície dos textos, para a manipulação
um tanto livre de certos textos.
Resta que, mesmo se aderirmos a
toda essa má vontade, o pequeno
livro de Deleuze continuará a figurar entre os mais belos livros
que se escreveu acerca de Hume.
Deleuze descreve seu trabalho
como sendo não de filosofia, mas
de história da filosofia. Mas, ao caracterizar esta última tarefa, ela
não se revela como a prática asséptica de sua caricatura costumeira. Trata-se de fornecer uma
definição de "empirismo", a partir da determinação de um problema no qual reside a "essência
absoluta do empirismo": como
pode, no dado, constituir-se um
sujeito que ultrapassa o dado? Essa "definição" vai ser movimentada, de um lado, contra a história
da filosofia empobrecedora que
torna o empirismo uma "capitis
diminutio"; e, de outro, contra
uma filosofia, solidária daquela
má historiografia, que só mantém, como alternativa à via
"transcendental", a via não filosófica do "psicologismo". Não por
acaso, a "definição" proposta gira
em torno da questão da constituição do sujeito. Assim, esse trabalho pretensamente historiográfico é, na verdade, uma máquina de
guerra filosófica na qual podemos
encontrar as raízes do posterior
trajeto propriamente filosófico de
Deleuze.
A roupagem sistemática com
que Deleuze veste as obras de Hume permite-nos não apenas transitar pelas suas várias facetas, mas
também determinar-lhes as relações: a questão fundamental é
prática e moral, antes que de "teoria do conhecimento" -o que
não significa retirar a importância
da reflexão epistemológica, mas
sim dar-lhe seu verdadeiro valor e
contorno. A transcendência -tema epistemológico- só se põe
como problema no plano moral e
prático: a razão só é um problema
porque algo lhe escapa, e isso que
lhe escapa remete ao domínio da
prática.
Deleuze explora, aqui, a bela
frase de Hume: "Não é contrário à
razão preferir a destruição do
mundo a uma arranhadela em
meu dedo", que visa, como é claro, não a um egoísmo, mas a algo
como uma estultice prática da razão. E é tão-somente essa subordinação do plano epistemológico
ao prático-moral que permite entender corretamente o primeiro: a
filosofia de Hume não é uma crítica da relação (que, para o "atomismo", transcende o dado), mas
da representação, pois "as relações não são um objeto de uma
representação, mas os meios de
uma atividade".
Essa unidade sistemática é reconstituída, é verdade, recorrendo a uma série de conceitos que
não figuram expressamente nas
páginas do autor do "Tratado da
Natureza Humana", a maior parte provindo da filosofia kantiana
e, na questão central, da fenomenologia: esquematismo, procedimentos reflexionantes, determinado/determinante, síntese e, finalmente, constituição, constituição do sujeito. Se isso, à primeira
vista, parece condenar essa história da filosofia como "anacrônica", ou "retrospectiva", talvez
ocorra o inverso.
De fato, mesmo confessando
que é, às vezes, difícil acompanhar Deleuze em seu uso do repertório kantiano, a verdade é
que este é um dos pontos fortes
dessa leitura: apontar justamente
para a contemporaneidade de
Kant e de Hume, para uma certa
cumplicidade entre os dois filósofos que vai além da função de
"despertador" atribuída por um
deles ao outro. É essa cumplicidade que acabou encoberta por uma
má filosofia e por uma má história
da filosofia, esta sim, retrospectiva, anacrônica e empobrecedora.
Aliás, uma das provas visíveis da
fecundidade dessa estratégia no
plano da história da filosofia pode
ser encontrada na leitura de Hume por Michel Malherbe, que explora o filão de Deleuze (p. ex., em
"Hume ou Kant").
Mas esse achado de história da
filosofia é mobilizado para o debate, desta vez filosófico, com
seus contemporâneos. Se Deleuze
tem alvos precisos, que nos remetem ao cenário intelectual francês
do início dos anos 50, podemos
nos limitar, aqui, a mencionar um
de seus interlocutores: a fenomenologia. É ela que é citada nominalmente, na definição do empirismo como filosofia do sujeito
constituído. A recuperação de um
terreno comum a Kant e a Hume
permite a Deleuze repensar a fenomenologia ou seus temas a
contrapelo da herança kantiana
de que esta se apropriou: trata-se
de retomar a temática da constituição sem apelo a um sujeito que
a operaria, isto é, nos termos desse nosso livro, sem recorrer ao arsenal transcendental.
Se Hume não é um mau psicólogo -simplesmente porque ele
não é psicólogo nem "psicologista"-, mas sim filósofo, é porque
ele põe, diferentemente de Kant,
mas sobre o mesmo terreno, um
problema que é herdado pela filosofia contemporânea: o problema
da subjetividade e das suas relações com a transcendência ou
com a constituição. Mais do que
isso, é só a estratégia humiana
-isto é, o empirismo- que permite tematizar com toda força a
questão do sujeito e da transcendência, contra o "racionalismo"
(e a estratégia transcendental sofre em parte da "capitis diminutio" do racionalismo, ao postular
um sujeito ao mesmo tempo cognoscente e não-constituído) que
acaba "suprimindo, para a filosofia, o sentido e a compreensão da
prática e do sujeito".
Finalmente a tradução é muito
cuidadosa, assim como a edição,
que nos brinda com a paginação
original -cuidado merecido por
um clássico. Pena, no entanto,
que esse cuidado não tenha se estendido às referências às obras de
Hume: foram mantidas as citações das traduções francesas, o
que exige do leitor, que dispõe das
edições inglesas, um pouco de ginástica para fazer o cotejo. Pena,
aliás, que a recente tradução de
Déborah Danowski do "Tratado
da Natureza Humana" (ver resenha ao lado) não tenha precedido
a deste belo livro de Deleuze, o
que permitiria introduzir as referências à edição brasileira.
Bento Prado Neto é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.
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