São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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Essência do empirismo

Empirismo e Subjetividade
Gilles Deleuze
Tradução: L.B.L. Orlandi
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
160 págs., R$ 22,00

BENTO PRADO NETO

Pode-se torcer o nariz frente ao Deleuze filósofo, pode-se mesmo ter sérias reservas diante do historiador da filosofia, mas é impossível negar o interesse que apresentam suas leituras dos filósofos clássicos. O que vale em geral vale particularmente, aqui, no caso de "Empirismo e Subjetividade". Os desafetos da filosofia deleuziana logo denunciarão os maneirismos de sempre (no estilo "a essência da morte é a morte da essência", que não é de nosso autor); os que desconfiam de sua história da filosofia apontarão para a apresentação inacreditavelmente sistemática (com direito às indefectíveis "tabelinhas"), para a inesgotável proliferação de conceitos que não se encontram na superfície dos textos, para a manipulação um tanto livre de certos textos. Resta que, mesmo se aderirmos a toda essa má vontade, o pequeno livro de Deleuze continuará a figurar entre os mais belos livros que se escreveu acerca de Hume.
Deleuze descreve seu trabalho como sendo não de filosofia, mas de história da filosofia. Mas, ao caracterizar esta última tarefa, ela não se revela como a prática asséptica de sua caricatura costumeira. Trata-se de fornecer uma definição de "empirismo", a partir da determinação de um problema no qual reside a "essência absoluta do empirismo": como pode, no dado, constituir-se um sujeito que ultrapassa o dado? Essa "definição" vai ser movimentada, de um lado, contra a história da filosofia empobrecedora que torna o empirismo uma "capitis diminutio"; e, de outro, contra uma filosofia, solidária daquela má historiografia, que só mantém, como alternativa à via "transcendental", a via não filosófica do "psicologismo". Não por acaso, a "definição" proposta gira em torno da questão da constituição do sujeito. Assim, esse trabalho pretensamente historiográfico é, na verdade, uma máquina de guerra filosófica na qual podemos encontrar as raízes do posterior trajeto propriamente filosófico de Deleuze.
A roupagem sistemática com que Deleuze veste as obras de Hume permite-nos não apenas transitar pelas suas várias facetas, mas também determinar-lhes as relações: a questão fundamental é prática e moral, antes que de "teoria do conhecimento" -o que não significa retirar a importância da reflexão epistemológica, mas sim dar-lhe seu verdadeiro valor e contorno. A transcendência -tema epistemológico- só se põe como problema no plano moral e prático: a razão só é um problema porque algo lhe escapa, e isso que lhe escapa remete ao domínio da prática.
Deleuze explora, aqui, a bela frase de Hume: "Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo a uma arranhadela em meu dedo", que visa, como é claro, não a um egoísmo, mas a algo como uma estultice prática da razão. E é tão-somente essa subordinação do plano epistemológico ao prático-moral que permite entender corretamente o primeiro: a filosofia de Hume não é uma crítica da relação (que, para o "atomismo", transcende o dado), mas da representação, pois "as relações não são um objeto de uma representação, mas os meios de uma atividade".
Essa unidade sistemática é reconstituída, é verdade, recorrendo a uma série de conceitos que não figuram expressamente nas páginas do autor do "Tratado da Natureza Humana", a maior parte provindo da filosofia kantiana e, na questão central, da fenomenologia: esquematismo, procedimentos reflexionantes, determinado/determinante, síntese e, finalmente, constituição, constituição do sujeito. Se isso, à primeira vista, parece condenar essa história da filosofia como "anacrônica", ou "retrospectiva", talvez ocorra o inverso.
De fato, mesmo confessando que é, às vezes, difícil acompanhar Deleuze em seu uso do repertório kantiano, a verdade é que este é um dos pontos fortes dessa leitura: apontar justamente para a contemporaneidade de Kant e de Hume, para uma certa cumplicidade entre os dois filósofos que vai além da função de "despertador" atribuída por um deles ao outro. É essa cumplicidade que acabou encoberta por uma má filosofia e por uma má história da filosofia, esta sim, retrospectiva, anacrônica e empobrecedora. Aliás, uma das provas visíveis da fecundidade dessa estratégia no plano da história da filosofia pode ser encontrada na leitura de Hume por Michel Malherbe, que explora o filão de Deleuze (p. ex., em "Hume ou Kant").
Mas esse achado de história da filosofia é mobilizado para o debate, desta vez filosófico, com seus contemporâneos. Se Deleuze tem alvos precisos, que nos remetem ao cenário intelectual francês do início dos anos 50, podemos nos limitar, aqui, a mencionar um de seus interlocutores: a fenomenologia. É ela que é citada nominalmente, na definição do empirismo como filosofia do sujeito constituído. A recuperação de um terreno comum a Kant e a Hume permite a Deleuze repensar a fenomenologia ou seus temas a contrapelo da herança kantiana de que esta se apropriou: trata-se de retomar a temática da constituição sem apelo a um sujeito que a operaria, isto é, nos termos desse nosso livro, sem recorrer ao arsenal transcendental.
Se Hume não é um mau psicólogo -simplesmente porque ele não é psicólogo nem "psicologista"-, mas sim filósofo, é porque ele põe, diferentemente de Kant, mas sobre o mesmo terreno, um problema que é herdado pela filosofia contemporânea: o problema da subjetividade e das suas relações com a transcendência ou com a constituição. Mais do que isso, é só a estratégia humiana -isto é, o empirismo- que permite tematizar com toda força a questão do sujeito e da transcendência, contra o "racionalismo" (e a estratégia transcendental sofre em parte da "capitis diminutio" do racionalismo, ao postular um sujeito ao mesmo tempo cognoscente e não-constituído) que acaba "suprimindo, para a filosofia, o sentido e a compreensão da prática e do sujeito".
Finalmente a tradução é muito cuidadosa, assim como a edição, que nos brinda com a paginação original -cuidado merecido por um clássico. Pena, no entanto, que esse cuidado não tenha se estendido às referências às obras de Hume: foram mantidas as citações das traduções francesas, o que exige do leitor, que dispõe das edições inglesas, um pouco de ginástica para fazer o cotejo. Pena, aliás, que a recente tradução de Déborah Danowski do "Tratado da Natureza Humana" (ver resenha ao lado) não tenha precedido a deste belo livro de Deleuze, o que permitiria introduzir as referências à edição brasileira.


Bento Prado Neto é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.



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