São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Historiador estuda o degredo para o Brasil entre 1580 e 1720
O purgatório da metrópole

JACQUELINE HERMANN

É de uso corrente a afirmação de que o Brasil foi povoado, em seus primeiros tempos, por degredados e desclassificados sociais de todo tipo. Essa "raiz" daninha explicaria, para muitos, nossos males irremediáveis e atávicos, os defeitos de nossa formação social original. Elemento de nossa formação histórica, o degredo ainda aguardava um tratamento mais amplo e sistemático, como o que nos oferece "Os Excluídos do Reino". Mais precisamente, o trabalho analisa a prática do degredo para o Brasil, exercida pela justiça inquisitorial portuguesa, trabalhando com a hipótese de que o desterro integrou a luta da Santa Inquisição pelo controle, correção e consolidação da unidade religiosa.
Mas, além da especificidade do objeto de investigação, o livro foi produzido a partir de uma extensa, minuciosa e detalhada pesquisa documental em diferentes arquivos portugueses, de modo a recuperar, tanto quanto possível, o rol dos condenados, entre 1580 e 1720, a "idade de ouro do degredo para o Brasil". O período compreende, portanto, o longo e difícil século 17 português, iniciado sob a dominação espanhola e atravessado pela dolorosa luta de recuperação da soberania política, indo até o início do século 18, novo tempo de glória para a monarquia portuguesa, enriquecida pelo ouro que escoava do Brasil.
Exatamente por isso, a partir desse momento outros territórios, como Angola e Cabo Verde, além de regiões do interior de Portugal, passaram a abrigar maior número de degredados. No período considerado, o Brasil recebeu nada menos que 49,7% dos degredados, percentual que não só justifica o estudo e mesmo confirma a importância do degredo como instrumento de povoação da América portuguesa, mas sobretudo revela a complexidade e a lógica específica de um império que utilizou os desclassificados sociais para ocupar e defender aquele que se tornou o seu território colonial mais importante.

Degredo e degradação
O livro traça um amplo panorama da utilização da prática de degredo pela Justiça portuguesa, inventariando os caminhos legislativos que levaram à adoção desse tipo de punição. Penalidade que retrata bem a estrutura hierarquizada da sociedade do Antigo Regime, degredar deriva de degradar, diminuir de grau ou rebaixar, punição gravíssima que, em Portugal, era muitas vezes usada como sinônimo da condenação às galés -castigo que obrigava a "remar sem soldo" nas embarcações "del" rei-, pois na prática ambos significavam rebaixamento social. Havia, no entanto, uma distinção fundamental. Enquanto as galés eram consideradas "pena vil", destinadas àqueles que ocupavam os lugares mais baixos da escala social, a pena de desterro era usada para punir mulheres e homens de linhagem, condenados por crimes considerados menos graves ou protegidos pelo sangue nobre.
Essa distinção nos permite relativizar afirmações como a de um historiador português do século 19, que acreditava ser o Brasil "ergástulo de delinquentes", ou seja, um imenso cárcere de criminosos. Na verdade, os excluídos do reino que para cá vieram foram castigados por crimes que hoje sequer seriam punidos, prevalecendo os bígamos, sodomitas, blasfemadores, feiticeiros, visionários, padres sedutores e cristãos novos.
O degredo carregava ainda um pesado estigma moral e religioso. Cumprir pena de desterro significava também expiar os pecados, e o Brasil foi visto como "purgatório da metrópole", como disse certa vez Laura de Mello e Souza.
Embora menos trabalhado que o caráter institucional e penal do degredo, o livro dedica um capítulo precioso, porém modesto, às petições dos condenados aos tribunais inquisitoriais de Lisboa, Évora e Coimbra solicitando a comutação da pena de degredo. Perfeitamente enquadrados na burocracia do Santo Ofício, os recursos eram analisados e as justificativas cuidadosamente verificadas. Os argumentos poderiam ser a debilidade física do condenado para suportar a viagem, a falta de meios de manutenção da família abandonada, a ameaça à honra de filhas menores pela falta dos pais, sobretudo quando o condenado(a) era viúvo(a).
O pedido de mudança da pena poderia ser tanto para transferência do lugar de degredo quanto para pena pecuniária.
Tentando fechar o leque de questões que vão desde a origem do desterro como pena, passando pelos crimes preferenciais punidos com o desterro, pela estrutura do tribunal inquisitorial e pelas solicitações do condenados, o livro termina ressaltando a dificuldade para o acompanhamento do destino dos degredados que vieram para o Brasil. A vigilância nem sempre eficaz sobre aqueles que deveriam trabalhar para a coroa, as dificuldades de adaptação no exílio ou ainda os caminhos encontrados para a incorporação no novo lugar produziram um conjunto expressivo de combinações possíveis e ainda em grande parte desconhecidas. Sabe-se, por exemplo, que alguns degredados viram-se novamente enredados nas malhas inquisitoriais quando das visitações do Santo Ofício ao Brasil, nos séculos 16 e 17.
Abordando tema no qual ainda há muito por fazer, o trabalho de Pieroni não só avança em tudo o que já se havia estudado até aqui como oferece inúmeras possibilidades de novas investigações. A proposta de uma investigação tão ampla e rica do ponto de vista documental comprometeu, no entanto, uma abordagem mais contextualizada dos diferentes momentos de aplicação da pena. Quando no capítulo 5, por exemplo, o autor informa que as autoridades do Estado do Maranhão, em 1625, solicitavam cada vez mais o envio de degredados para "a defesa e conservação da terra", esta e outras datas valorizam tão-somente a importância do degredo como instrumento de manutenção do império, deixando de apontar as diferentes conjunturas políticas que tornaram nossa costa mais vulnerável ao ataque estrangeiro, como aconteceu durante a dominação espanhola sobre Portugal, entre 1580 e 1640.
O mesmo se poderia dizer sobre o pouco aproveitamento das petições já referidas, documentação que poderia completar a análise institucional e apontar até mesmo os limites e desdobramentos do degredo no Brasil. Mais que a burocracia dos pedidos, eles poderiam revelar a dimensão aterradora e solitária do desterro, o medo, as incertezas e sofrimentos impostos a homens e mulheres que procuraram evitar o desterramento. Afinal como bem resumiu Antônio Vieira, "para o degredo ser morte, nenhuma coisa lhe falta".



Os Excluídos do Reino - A Inquisição Portuguesa e o Degredo para o Brasil Colônia
Geraldo Pieroni
Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado (Tel. 0/xx/ 61/226-6874)
312 págs., R$ 35,00



Jacqueline Hermann é professora de história na Universidade Federal Fluminense e autora de "No Reino do Desejado" (Cia. das Letras).

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