São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Meandros do Estado Novo

ELIANA DE FREITAS DUTRA

Um convite à reflexão sobre o Brasil de hoje, eis o maior mérito deste livro. Ao propor avaliar o que ficou do Estado Novo em nosso presente, instiga-nos a refletir sobre as vicissitudes da vida nacional e a colocar em questão a nossa relação com o passado, no sentido de nos interrogarmos sobre as razões políticas da força e duração do legado estadonovista na sociedade e cultura política brasileiras contemporâneas.
00Nesta obra coletiva, marcada por expressiva colaboração interdisciplinar, o Estado Novo rompe os limites da periodização atada a 1937-1945, deslizando em direção aos anos subsequentes, onde se mantém bem vivo nas afinidades eletivas e nas escolhas políticas de nossas elites de ontem e hoje.
00O livro reúne textos de vários especialistas que, por meio de perspectivas analíticas plurais e recortes variados, debruçaram-se sobre diversos aspectos do Estado, agrupados em seis seções temáticas: o legado institucional; trabalho, previdência e sindicalismo; indústria, bancos e seguros; intelectuais, cultura e educação; imigração e minorias étnicas; militares, política e repressão. Em que pese uma certa desigualdade entre as contribuições, por vezes um forte fascínio pela figura de Getúlio Vargas ou ainda a tentativa de algumas análises em associar num mesmo marco valorativo, inaugural, a modernidade getuliana com a do atual presidente em exercício, no conjunto a obra configura um painel historiográfico bastante inovador.
0Algumas das discussões empreendidas sinalizam diretamente para questões polêmicas e de grande atualidade no debate político, ora tomadas numa linha de continuidade, ora em contraste com o legado estadonovista, tais como o pacto federativo, o destino da Justiça do Trabalho, a crise do sistema previdenciário e da saúde pública, a reforma educacional.
00Na avaliação do legado institucional, por exemplo, o texto de Aspásia Camargo assinala a persistência na vida política brasileira de um federalismo regional, o qual tem no município, considerado uma instância federativa, um dos pilares de sustentação das acomodações entre os Estados e o governo federal. Contra essa realidade, a autora aponta a necessidade um novo pacto federativo, sugerindo que "os possíveis" para esse pacto, contrariamente ao que se passou no Estado Novo, estão presentes no ideário do atual governo. Nesse ponto, vale lembrar o recente episódio da moratória mineira para perceber o lado polêmico da sugestão...
00Noutra perspectiva, o texto de Arion Romita investe com ênfase nos aspectos jurídicos, contra a herança corporativista do varguismo, expressa na Justiça do Trabalho, e a defesa dessa Justiça por juízes e advogados trabalhistas. O argumento central do autor é a inadaptação da Justiça do Trabalho, de inspiração fascista e ainda marcada pela filosofia política estadonovista, com a ordem democrática e o Estado de Direito, o que não teria sido solucionado pelas constituições entre 1946 e 1988.
00O exame da política educacional do Estado Novo, feito por Helena Bomeny, alarga a compreensão daquele momento da vida brasileira, tomado em sua diferença com o tempo atual, em que a economia de mercado é nomeada como árbitro da eficácia do sistema educacional. A análise permite alcançar o âmago da filosofia do projeto educacional estadonovista, voltado para a construção de um homem político, mobilizado pelos deveres cívico-nacionais, em contraste com o ideal, hoje, de um "homo economicus", habilitado a se movimentar numa economia internacionalizada. Em nenhum desses cenários os projetos educacionais se orientam para o aprendizado dos valores da liberdade, da ética, do diálogo, com vistas ao exercício da cidadania plena.
00É justamente a ausência dos princípios democráticos e a presença marcante de uma pedagogia da submissão, da força e da intolerância que respondem pela face sinistra do Estado Novo. Esta é bem retratada nas três últimas seções do livro. Maria Helena Capelato mostra a adoção dos métodos de controle dos meios de comunicação e das formas de persuasão política e exaltação patriótica do nazi-fascismo; Geralda Seyferth analisa a implementação de uma enérgica campanha de nacionalização do ensino, cujo alvo foram as comunidades de imigrantes do Sul do país, com vistas à sua assimilação e à erradicação das diferenças étnicas; Elizabeth Canceli revela a institucionalização de uma polícia violenta, que se ocupou de internacionalizar a ação repressiva do seu corpo policial mediante pactos com a polícia alemã, a integração nas frentes de combate internacionais contra o comunismo e nas redes continentais de troca de informações e repressão; por fim, Maria Luísa Tucci Carneiro examina a ação do DOPS no saneamento ideológico e controle cultural do Estado Novo.
00É assim que o leitor percorre os meandros da ditadura estadonovista, onde se depara, sem disfarces, com o Vargas ditador. Que esse encontro lhe relembre que a verdadeira política não se exercita sob o domínio da violência e em condições de privação de liberdade. Nesse aspecto, que o otimismo de José Murilo de Carvalho, num texto sobre Vargas e os militares, se confirme: a era Vargas acabou, no tocante à eliminação das Forças Armadas como ator político nacional.
00Nestes tempos em que vivemos, no limite da fratura social, é bom lembrar que um diálogo entre passado e presente, ao qual este livro fornece um bom suporte, pode certamente nos auxiliar a abrir caminhos que nos distingam, e libertem, do passado.



Repensando o Estado Novo
Dulce Pandolfi (Org.)
Editora Fundação Getúlio Vargas (Tel. 0/xx/21/559-5550)
345 págs., R$ 29,00



Eliana de Freitas Dutra é professora de história na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "O Ardil Totalitário - Imaginário Político no Brasil dos Anos 30" (Editora da UFRJ/Editora UFMG).


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