São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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LÓGICA DA DOMINAÇÃO

Historiador define a atualidade de Machado de Assis

SERGIO MOTA

O crescente interesse de certos historiadores pela obra de Machado de Assis tem revelado um confronto entre uma intenção que se organiza a partir de um contexto histórico e uma estrutura que o ultrapassa, para redescobrir a contundência política e social das observações de Machado e sua notável atualidade. Ao apontar nessa tensão a visão acidamente crítica do autor sobre o processo de modernização capitalista do Brasil na passagem do Império para a República, a abordagem histórica das obras de Machado expõe os bastidores e meandros da pesquisa, que denunciam um certo darwinismo social que atua como estratégia conservadora de desenvolvimento do país. É função do historiador compreender o sentido das mudanças históricas e organizar os procedimentos de controle do conteúdo da informação, embora detenha sua atenção no corpo do próprio fato histórico. É justamente o esqueleto desse processo de rastreamento o principal objeto de discussão de "Machado de Assis, Historiador". A abordagem percorre duas perspectivas que se complementam e podem ser lidas separadamente, sem prejuízo do duplo olhar engendrado por Sidney Chalhoub (o de historiador e o de analista literário). A primeira vertente analisa a literatura de Machado sob a chancela da história, na exploração da ideologia senhorial, voltando o olhar para a relação entre fato e ficção, o que extrapola a idéia de que a literatura é apenas fonte porque fornece subsídios para uma compreensão mais explícita da história social. À primeira vista, pode-se compreender tal proposta metodológica como uma simplificação no modo de encarar o texto literário, que, necessariamente, não é prova histórica nem muito menos representação mimética da realidade, ainda mais no caso de Machado, que não se quer documental nem se sente compelido a fazer da sua obra um testemunho de época. A eficiência do argumento de Chalhoub, que atrela seu modo de ler os romances de Machado à interpretação da experiência histórica da década de 1870, passa ao largo dessa discussão. Na análise de "Helena", o historiador reconhece uma prosa de extraordinário teor de crítica social e de que forma Machado reescreveu a história do Brasil no século 19, principalmente na revelação de determinados mecanismos de poder. Percebe-se a evidente preocupação de Chalhoub em reconhecer o texto literário como mecanismo de interpretação histórica possível e como lugar de confronto, à mesma medida que não o entende, em uma clave reducionista, apenas como descrição fiel de uma realidade específica.

IMAGINÁRIO SENHORIAL
Ao longo da teorização de Chalhoub revelam-se as redes a partir das quais Machado abordou a lógica da dominação, centrando suas histórias nos antagonismos entre senhores e dependentes, dentro de uma lógica de caráter paternalista que fez de tal metodologia um princípio de arte literária, no desvendamento da razão do processo histórico. Ao reconstituir todo o imaginário senhorial presente no texto de Machado mediante descrições, deduções, versões e atualizações de personagens em outros personagens ou de outros autores, o livro de Chalhoub se apropria, em vários momentos, do estilo do escritor, principalmente no uso das digressões, no sarcasmo em relação ao número de leitores e na constatação da lentidão da narrativa que retarda o desenlace. Machado nunca se esquecia de que alguém estava lendo seu texto e, com uma certa intimidade e condescendência, sempre se dirigia a esse leitor anônimo. A segunda parte do livro parece, a princípio, estar desconectada do material da primeira, principalmente porque muda o enfoque e a perspectiva, sem abandonar o tema -em termos de coerência, seria mais interessante que ela viesse no início do livro, para, depois, abordar, na ficção, a experiência dos dependentes livres e escravos diante da dominação. Mesmo fora do lugar, essa segunda perspectiva é o grande trunfo de Chalhoub, porque empreende uma sofisticada pesquisa sobre as atividades do autor de "Dom Casmurro" no Ministério da Agricultura durante as décadas de 1870 e 80. Se a primeira parte revelava o crítico literário em busca de ângulos diferentes do pensamento, a vocação de historiador encontra ponto de vista original que rastreia na documentação estudada, à guisa de uma biografia intelectual, a vida de Machado como funcionário público de um departamento encarregado de acompanhar questões relativas à emancipação dos escravos e à política de terras. Apesar de um certo excesso descritivo inevitável na reconstrução de um painel burocrático da redação e aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871, na organização de pareceres sobre diferentes visões da liberdade ou nas intervenções pontuais de Machado em tais processos, sempre a favor do escravo que queria se libertar, o capítulo pode ser lido, em alguns momentos, como um delicioso romance de estrutura folhetinesca que amplifica os meandros da pesquisa histórica e aborda questões metodológicas negligenciadas por muitos. Mais que debates em torno de uma estrutura emperrada e resistente à liberdade, a pesquisa definitiva de Chalhoub ganha densidade histórica e eficácia crítica não só porque demonstra que Machado era funcionário público por convicção ideológica, mas porque reconhece os graus de motivação do combate a uma certa barbárie social dos senhores. A crença irrestrita de Machado no fato de que o poder público possuía uma função primordial para frear a ambição do lucro e a concentração de poder da classe senhorial era uma experiência não só de formação do cidadão, mas estruturalmente também do ficcionista, o que, de certa maneira, determinou sua literatura.


SERGIO MOTA é professor do departamento de comunicação social da PUC-RJ.

Machado de Assis, Historiador Sidney Chalhoub Cia. das Letras (Tel.0/xx/11/3707-3500) 345 págs. R$ 41,00



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