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NAVA E A IMAGINAÇÃO DO BRASIL
A reinvenção do memorialismo na literatura brasileira
RUBEM BARBOZA FILHO
Existem livros cuja trama e maciez escondem uma enorme audácia. Pois é assim com "Memórias Videntes do Brasil",
de José Maria Cançado. É o próprio "pathos" naviano que, xamânico, se apodera
do autor para reabrir o enigma de uma
"ars moriendi" sem paralelo em nossa literatura. O vertiginoso mergulho de Nava no passado, nos diz Cançado, é mais
do que o enfrentamento da morte pela
individuação extremada. É, ao mesmo
tempo, o modo inesperado de "perscrutar o rosto do Brasil", de recriar a nossa
grande tradição coletiva, a nossa brasileiríssima e barroca "ars vivendi".
Operação cujo êxito implica uma ruptura inicial: o modo de rememoração de
Nava é o oposto daquele de Joaquim Nabuco, o ícone do tradicional memorialismo brasileiro, sempre enredado no pacto autobiográfico, na ambição da clonagem escrita de um eu, no anelo de fixação de uma identidade nascida num
mundo patriarcal e desaparecido. Nava é
Proust e Mário de Andrade, de quem
rouba o princípio da "despeçagem", de
desmanche do eu e do mundo, mostra
Cançado.
Sua matéria não é a cartorial e patrimonial, mas o fragmento, o caco, a ruína, a
"madeleine" que irrompe como memória involuntária e que, como em Proust,
enlaça a narrativa na direção contrária
da rememoração que seleciona industriosamente os fatos, em razão dos códigos subjetivistas ou patrimonialistas de
identidade, sustenta o autor.
É essa "condição deficitária", a desindividualização do sujeito e da memória,
que alforria Nava e lhe autoriza o exercício sobre o vivido e o extinto como "ação
póstuma" de reabertura e reinvenção de
sentidos, como misteriosa vidência da
polissemia do que já foi. Voluntária dissolução da integridade do narrador que
lhe permite negar a "moléstia de Nabuco" -para quem não existia imaginação
estética e histórica no Novo Mundo- e
aceitar o repto de Fuentes de que uma
cultura sem imaginação será historicamente indecifrável.
A escrita naviana destrói as marcações
do tempo e do espaço. Ela é uma gigantesca cartografia do mundo e das civilizações, tudo devorando e incluindo para
esse desígnio de imaginação e identidade. A figura de Édipo e a lama do Nilo estão pregadas em nosso carro-de-boi, e o
tiro que deflagra a Primeira Guerra faz o
Marne desaguar no Arrudas, misturando França e Minas. O mundo está em
nós, e, por isso, somos velhos e complexos como ele, reconhecimento que nos
descoloniza e universaliza. Mas o patoá
estilístico-literário de Pedro Nava, aberto
por natureza, ainda vai mais longe: esse
narrador proteiforme não hesita em se
apoderar de um passado que supera o da
sua própria vida e em saltar para dentro
dos outros "uns" que existiram, comutando-se com eles. Não apenas homens e
mulheres, mas natureza e objetos. São
esses outros que se expõem e se revelam
nas memórias navianas, transformadas
em recriação expressivista do magma de
nossa vertente civilizacional.
DESTRUIÇÃO DO TEMPO
Escrita, que, pela sua natureza, carrega uma
idéia: a de que a nossa felicidade, o nosso
éden, só pode emergir no ato de consubstanciação com a nossa própria civilização, com os seus memoriais de experiência e de cultura. Felicidade que não
nos aliena, mas "nos dá um rosto e uma
condição história difíceis", afirma nosso
autor.
Cançado percebe ainda, com extrema
acuidade, que essa destruição do tempo
ritmado e da contigüidade espacial, esse
saque permanente de tudo para a constituição do Brasil, é também o segredo da
nossa tradição barroca. Porque não fomos gerados por uma gramática coerente de valores, por uma utopia, a nossa
condição é essa de abertura, de tudo devorar em busca de sentido e emancipação. Nava reinventa essa tradição para
tornar-se o "antecessor" de Gilberto
Freyre e ocupar o estatuto de um dos
grandes explicadores do Brasil.
Nele não se encontra o enquadramento do Brasil como subjetividade una e autotransparente, mas a decisão de enfrentar esse jogo barroco entre o despedaçamento, a inclusão e a unidade, com o
qual nos formamos no passado e vivemos no presente.
Este livro, ao qual não fiz inteira justiça,
merece ser lido.
RUBEM BARBOZA FILHO é professor de ciências sociais
na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "Tradição e
Artifício - Iberismo e Barroco na Formação Americana" (UFMG).
Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava José Maria
Cançado
Ed. UFMG (Tel.0/xx/31/3499-4642)
234 págs. R$ 32,00
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