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Sorvete quente
Em Busca do Socialismo Democrático -
O Liberal- Socialismo
Italiano: o Debate
dos Anos 20 e 30
Walquíria Leão Rego
Ed. da Unicamp
(Tel. 0/xx/19/3788-1094)
231 págs., R$ 30,00
CARLOS NELSON COUTINHO
No século 20, a Itália foi palco de
uma esplêndida floração do pensamento político, talvez só semelhante àquela que experimentou
no século de Maquiavel. Uma floração que abrangeu diferentes
correntes ideológicas e interpretativas: do elitismo de Mosca e Pareto ao corporativismo fascista de
Gentile e Ugo Spirito, do liberalismo de Croce ao marxismo de
Gramsci e Togliatti. Em quase todas as vertentes entre as que se
travou a dura batalha de idéias no
"século dos extremos", pode-se
encontrar um expressivo pensador italiano de estatura universal.
E muitos deles -basta pensar em
Mosca e Gramsci- continuam a
influenciar os rumos da teoria política neste início de século.
Entre as várias vertentes que
disputaram hegemonia na teoria
política italiana do século passado, há uma que nem sempre mereceu, pelo menos no Brasil, a devida atenção: o chamado "liberal-socialismo", que -no dizer de
um dos seus expoentes, Guido
Calogero- se apresentava como
proposta de superação das "insuficiências unilaterais do liberalismo e do socialismo". Decerto um
dos expoentes mais tardios desta
vertente, Norberto Bobbio, tornou-se universalmente conhecido. Mas pouco se sabe no Brasil
sobre as origens políticas e intelectuais de Bobbio, que remontam a esse caldo de cultura liberal-socialista forjado na Itália dos
anos 1920 e 30.
É grande mérito de Walquíria
Rego ter apresentado ampla e
bem informada análise textual e
contextual do liberal-socialismo
italiano -que, de resto, pretende
ser uma contribuição para o debate extremamente atual acerca
dos vínculos entre socialismo e
democracia. Walquíria não busca
apenas expor o que disseram os liberais-socialistas, mas sugerir que
a proposta por eles formulada
continua atual diante da tarefa de
buscar aquilo que ela chama de
"socialismo democrático". Portanto, como toda boa produção
de teoria política, o livro de Walquíria é simultaneamente analítico e propositivo.
Contradição
Penso ser possível sugerir que
há uma contradição, neste livro,
entre os planos propositivo e analítico. Walquíria assim resume
sua proposição: "A manutenção
da força analítica do marxismo,
como crítica radical do capitalismo (...) [pode" ser revigorada (...)
se assimilar (...) o princípio de que
liberalismo político e socialismo
podem se interpenetrar teoricamente". Portanto Walquíria assume, em última instância, a proposta do próprio liberal-socialismo, tal como foi expressa por Calogero na frase acima citada,
quando fala em "insuficiências
unilaterais" do liberalismo e do
socialismo.
Tal proposta poderia ser objeto
de uma crítica externa: o déficit
democrático de um certo tipo de
socialismo não pode ser sanado
com o recurso ao liberalismo, mas
sim com a explicitação da não-eliminável dimensão democrática
presente na reflexão dos próprios
Marx e Engels e de seus mais lúcidos continuadores. (Uma crítica
que, de resto, Walquíria não desconhece, já que nos fala que existe, nos liberais-socialistas, uma
"confusão entre liberalismo e democracia".) Contudo, me parece
mais útil propor uma crítica imanente: no plano analítico, a própria Walquíria mostra a inconsistência da proposta "liberal-socialista" por ela objetivamente adotada.
Tomemos o caso de Piero Gobetti, jovem intelectual liberal que
se tornou amigo de Gramsci e colaborou no "cotidiano comunista" "L'Ordine Nuovo". Walquíria
põe Gobetti na gênese do movimento que levaria ao liberal-socialismo; contudo, como ela mesma diz, Gobetti era contrário ao
socialismo enquanto modo de
produção. Defendia, juntamente
com o liberalismo político, também o liberalismo econômico.
Gobetti julgava que a burguesia
italiana, que tomara o poder com
o Risorgimento, fracassara em
sua missão de promover uma verdadeira "revolução liberal" na Itália, já que aderira ao protecionismo e à corrupção. Via assim no
proletariado de Turim, com cujas
lutas simpatizava, o sujeito de
uma nova revolução na Itália, não
de uma revolução socialista e,
sim, de uma autêntica revolução
liberal. Para ele, também os bolcheviques seriam "liberais". Essa
simpatia pelo proletariado o
aproximou de Gramsci, que sugere, num texto de 1926, que tal simpatia poderia levar Gobetti a ulteriores desenvolvimentos teóricos
e políticos.
Mas Gobetti morreu aos 25
anos, pouco antes da redação do
texto de Gramsci, e não teve assim
o tempo necessário para efetuar
tais desenvolvimentos e superar a
evidente contradição contida em
suas posições. De qualquer modo,
sua juvenil tentativa de juntar liberalismo e proletariado não indica nenhuma pista para conjugar democracia e socialismo.
No que se refere a Aldo Capitini
e, sobretudo, a Guido Calogero
-os primeiros a tentar teorizar o
"liberal-socialismo"-, concordamos inteiramente com Walquíria quando, referindo-se ao que
concebiam como socialismo, diz:
"O socialismo é entendido como
(...) justiça social com amplas liberdades. Aqui ele (o socialismo)
é, antes de tudo, um ideal ético
(...). O sentido do que seria uma
economia socialista nunca será tematizado rigorosamente por estes
homens". Quanto a Carlo Rosselli, é ainda Walquíria quem nos
informa que o seu "socialismo liberal" previa "uma economia
mista organizada em dois setores".
Tampouco Bobbio jamais se
deu ao trabalho de definir o que
entende por socialismo. Então, o
que resta? Socialismo como "ideal
ético", como "economia mista"
-ou seja, tal como é entendido
por uma tendência que, de Bernstein à atual direita do PT (desculpem-me a remissão a um fato de
conjuntura), falam em socialismo
precisamente com o objetivo de
negá-lo como uma formação social situada para além do capitalismo.
O liberal-socialismo, portanto,
malgrado a simpatia que podemos experimentar diante de seus
formuladores, não passa de sorvete quente. Essa íntima contradição certamente explica o fracasso
do Partido de Ação, criado pelos
liberais-socialistas italianos no final da Segunda Guerra, que obteve pouco mais de 1% dos votos
nas eleições de 1946. Não me parece ter sido casual que a verdadeira força política a defender
consequentemente o socialismo e
a democracia na Itália tenha sido,
enquanto existiu, o gramsciano
-e, portanto, marxista- Partido Comunista Italiano.
Estamos certamente diante de
questões que demandam muito
mais espaço do que o de uma simples resenha. Mas são decisivas
para o futuro da esquerda e, provavelmente, da humanidade. Só
nos resta agradecer a Walquíria
ter usado de escrúpulo filológico e
imaginação política para voltar a
propô-las em seu belo livro.
Carlos Nelson Coutinho é professor de
ciência política da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e autor, entre outros,
de "Gramsci - Um Estudo sobre seu Pensamento Político" (Civilização Brasileira).
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