São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Sorvete quente

Em Busca do Socialismo Democrático - O Liberal- Socialismo Italiano: o Debate dos Anos 20 e 30
Walquíria Leão Rego
Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/19/3788-1094)
231 págs., R$ 30,00

CARLOS NELSON COUTINHO

No século 20, a Itália foi palco de uma esplêndida floração do pensamento político, talvez só semelhante àquela que experimentou no século de Maquiavel. Uma floração que abrangeu diferentes correntes ideológicas e interpretativas: do elitismo de Mosca e Pareto ao corporativismo fascista de Gentile e Ugo Spirito, do liberalismo de Croce ao marxismo de Gramsci e Togliatti. Em quase todas as vertentes entre as que se travou a dura batalha de idéias no "século dos extremos", pode-se encontrar um expressivo pensador italiano de estatura universal. E muitos deles -basta pensar em Mosca e Gramsci- continuam a influenciar os rumos da teoria política neste início de século.
Entre as várias vertentes que disputaram hegemonia na teoria política italiana do século passado, há uma que nem sempre mereceu, pelo menos no Brasil, a devida atenção: o chamado "liberal-socialismo", que -no dizer de um dos seus expoentes, Guido Calogero- se apresentava como proposta de superação das "insuficiências unilaterais do liberalismo e do socialismo". Decerto um dos expoentes mais tardios desta vertente, Norberto Bobbio, tornou-se universalmente conhecido. Mas pouco se sabe no Brasil sobre as origens políticas e intelectuais de Bobbio, que remontam a esse caldo de cultura liberal-socialista forjado na Itália dos anos 1920 e 30.
É grande mérito de Walquíria Rego ter apresentado ampla e bem informada análise textual e contextual do liberal-socialismo italiano -que, de resto, pretende ser uma contribuição para o debate extremamente atual acerca dos vínculos entre socialismo e democracia. Walquíria não busca apenas expor o que disseram os liberais-socialistas, mas sugerir que a proposta por eles formulada continua atual diante da tarefa de buscar aquilo que ela chama de "socialismo democrático". Portanto, como toda boa produção de teoria política, o livro de Walquíria é simultaneamente analítico e propositivo.

Contradição
Penso ser possível sugerir que há uma contradição, neste livro, entre os planos propositivo e analítico. Walquíria assim resume sua proposição: "A manutenção da força analítica do marxismo, como crítica radical do capitalismo (...) [pode" ser revigorada (...) se assimilar (...) o princípio de que liberalismo político e socialismo podem se interpenetrar teoricamente". Portanto Walquíria assume, em última instância, a proposta do próprio liberal-socialismo, tal como foi expressa por Calogero na frase acima citada, quando fala em "insuficiências unilaterais" do liberalismo e do socialismo.
Tal proposta poderia ser objeto de uma crítica externa: o déficit democrático de um certo tipo de socialismo não pode ser sanado com o recurso ao liberalismo, mas sim com a explicitação da não-eliminável dimensão democrática presente na reflexão dos próprios Marx e Engels e de seus mais lúcidos continuadores. (Uma crítica que, de resto, Walquíria não desconhece, já que nos fala que existe, nos liberais-socialistas, uma "confusão entre liberalismo e democracia".) Contudo, me parece mais útil propor uma crítica imanente: no plano analítico, a própria Walquíria mostra a inconsistência da proposta "liberal-socialista" por ela objetivamente adotada.
Tomemos o caso de Piero Gobetti, jovem intelectual liberal que se tornou amigo de Gramsci e colaborou no "cotidiano comunista" "L'Ordine Nuovo". Walquíria põe Gobetti na gênese do movimento que levaria ao liberal-socialismo; contudo, como ela mesma diz, Gobetti era contrário ao socialismo enquanto modo de produção. Defendia, juntamente com o liberalismo político, também o liberalismo econômico.
Gobetti julgava que a burguesia italiana, que tomara o poder com o Risorgimento, fracassara em sua missão de promover uma verdadeira "revolução liberal" na Itália, já que aderira ao protecionismo e à corrupção. Via assim no proletariado de Turim, com cujas lutas simpatizava, o sujeito de uma nova revolução na Itália, não de uma revolução socialista e, sim, de uma autêntica revolução liberal. Para ele, também os bolcheviques seriam "liberais". Essa simpatia pelo proletariado o aproximou de Gramsci, que sugere, num texto de 1926, que tal simpatia poderia levar Gobetti a ulteriores desenvolvimentos teóricos e políticos.
Mas Gobetti morreu aos 25 anos, pouco antes da redação do texto de Gramsci, e não teve assim o tempo necessário para efetuar tais desenvolvimentos e superar a evidente contradição contida em suas posições. De qualquer modo, sua juvenil tentativa de juntar liberalismo e proletariado não indica nenhuma pista para conjugar democracia e socialismo.
No que se refere a Aldo Capitini e, sobretudo, a Guido Calogero -os primeiros a tentar teorizar o "liberal-socialismo"-, concordamos inteiramente com Walquíria quando, referindo-se ao que concebiam como socialismo, diz: "O socialismo é entendido como (...) justiça social com amplas liberdades. Aqui ele (o socialismo) é, antes de tudo, um ideal ético (...). O sentido do que seria uma economia socialista nunca será tematizado rigorosamente por estes homens". Quanto a Carlo Rosselli, é ainda Walquíria quem nos informa que o seu "socialismo liberal" previa "uma economia mista organizada em dois setores".
Tampouco Bobbio jamais se deu ao trabalho de definir o que entende por socialismo. Então, o que resta? Socialismo como "ideal ético", como "economia mista" -ou seja, tal como é entendido por uma tendência que, de Bernstein à atual direita do PT (desculpem-me a remissão a um fato de conjuntura), falam em socialismo precisamente com o objetivo de negá-lo como uma formação social situada para além do capitalismo.
O liberal-socialismo, portanto, malgrado a simpatia que podemos experimentar diante de seus formuladores, não passa de sorvete quente. Essa íntima contradição certamente explica o fracasso do Partido de Ação, criado pelos liberais-socialistas italianos no final da Segunda Guerra, que obteve pouco mais de 1% dos votos nas eleições de 1946. Não me parece ter sido casual que a verdadeira força política a defender consequentemente o socialismo e a democracia na Itália tenha sido, enquanto existiu, o gramsciano -e, portanto, marxista- Partido Comunista Italiano.
Estamos certamente diante de questões que demandam muito mais espaço do que o de uma simples resenha. Mas são decisivas para o futuro da esquerda e, provavelmente, da humanidade. Só nos resta agradecer a Walquíria ter usado de escrúpulo filológico e imaginação política para voltar a propô-las em seu belo livro.


Carlos Nelson Coutinho é professor de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, entre outros, de "Gramsci - Um Estudo sobre seu Pensamento Político" (Civilização Brasileira).



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