São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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A retenção do tempo

RICARDO FABBRINI

A mostra "Entre, a Obra Está Aberta" cobre quatro décadas de atividade de Amelia Toledo. São 55 obras, entre as quais algumas reedições em diferentes escalas e novos materiais. Essa trajetória, de 58 a 99, é comentada no ensaio de Ana Belluzo, que integra o catálogo da mostra, fartamente ilustrado.
Obras de diferentes períodos foram dispostas sem divisórias no espaço amplo da galeria. Não foi imposta ao público uma direção obrigatória. Evitou-se, por exemplo, a sequência cronológica que daria à mostra um caráter de retrospectiva. O observador livremente inventa seu percurso. Em sucessivas idas e vindas evidencia a unidade do conjunto, composto por colagens, pinturas, jóias, "objetos", esculturas e instalações.
Amelia sempre esteve aprumada com a pauta vanguardista, local e internacional, não cedendo contudo ao mimetismo. Na década de 50, sem ser concreta ou neoconcreta, paulista ou carioca, foi construtivista. Projetou jóias, em risco geométrico: anéis, cintos, colares e pulseiras. Formas limpas, regulares, puras: uma geometria que parece saltada do corte e da dobra do papel, ao modo do "design" da Bauhaus. Essas jóias, contudo, aliam a lucidez lúdica do "design" ao brilho e translucidez de pedras como calcopirita, turmalina ou topázio.
Na década seguinte, Amelia, atenta à "obra aberta", como Lygia Clark e Hélio Oiticica, estimulou a participação do público, visando a embaralhar, de modo singular, arte e vida. Pesquisando os efeitos do brilho, criou, em 67, "Interface", recriada em 93: uma chapa curva de aço inox tensionada por uma chapa de acrílico. Essas superfícies espelham o entorno, deformando-o e, quando pontualmente iluminadas, espalham nele luzes e sombras. Diante das deformações e ofuscamentos, o observador, entre divertido e acuado, é estimulado a deslocar-se, percebendo assim novas imagens.
Visando a ampliar essa participação, Amelia, no ano seguinte, substituiu a obra única pelos "múltiplos", utilizando, sobretudo, materiais sintéticos. Seu intento foi democratizar a arte, produzindo objetos em série para um público maior. Criou assim "múltiplos" como "Bolas-Bolhas", de 68, e "Glu-Glu", de 69. "Bolas-Bolhas" (reeditado em 93), o xodó da gurizada da exposição, são bolas em PVC inflado que contêm água espumante e corantes.
Os "Glu-Glus" (não reeditados) são vidros soprados, semelhantes a pipetas, também com água espumante, que, quando chacoalhados, geram estruturas poliédricas como as dos cristais. Com suas "Esferas Hápticas", ainda de 69, os múltiplos aproximam-se do minimalismo nascente, embora a metáfora predominante seja ainda a natureza. Essas esferas hápticas, porque perfuradas, buscam a perfeição natural das pérolas, mas recorrendo à cintilância artificial do poliéster com corantes.
Amelia, desde então, tem desenvolvido uma "earth art" de câmara. Diferentemente das megaintervenções na paisagem física de artistas como Smithson e Heizer, tem recolhido microformas naturais em frascos e gamelas. Amealha pedras e conchas para melhor observar em suas estruturas e colorações a passagem do tempo. Atém-se ao desbaste da pedra, ao oco na concha, à craca na garrafa largada ao mar. Sua preocupação central é com a retenção do tempo, ou seja, com "a memória dos ventos e das marés" na matéria, como diz belamente Belluzo. É um registro em miniatura do tempo da natureza e não de sua modificação pelo homem, como nas calcinações de Frans Krajcberg.


Entre, a Obra Está Aberta
Amelia Toledo Catálogo da Mostra (até 12/12/99) Galeria de Arte do Sesi (Tel. 0/xx/11/284-3639) Curadoria: Ana Maria de Moraes Belluzo 140 págs., R$ 27,00



Em "Periscópio" (83), especialmente, Amelia expõe sobre um tótem de concreto coroado por uma campânula de acrílico, seu tesouro: uma simples resina poliéster recoberta por cracas e briozoários após exposição contínua à ação do mar. Esses moluscos, genuínos testemunhos da história natural, são exibidos, sob teatral "spot", como se fossem raridades de um museu ou de uma joalheria.
Vários desses objetos naturais (que não são "objets-trouvés" no sentido surrealista, mas sim objetos-buscados) são ordenados pela artista, ora em função da forma, ora da cor. As "Conchas dos Mares do Mundo" (99) estão agrupadas em razão de sua forma e tamanho. "No País das Pedras Verdes", também deste ano, o crivo adotado foi o verde das pedras, observado na amazonita, serpentinita ou quartzo aventurino. Em tais arranjos, Amelia, co-autora da natureza, procura, no "habitat" da galeria, a ordem do mundo mineral. Busca, na disposição, "a ordem que vê na pedra", na "fala tão faca" de João Cabral. "Não há semovente ou vegetal nesse mundo mineral."
Amelia dedicou-se nos últimos anos à pintura e às instalações. Em vastas pinturas monocromáticas buscou nas veladuras da resina a luminescência da cor. Nas instalações "Fatias de Horizonte", de 96, e "Caderno de Luz", de 97, construiu labirintos, realizando o sonho de Dédalos de Oiticica. "Fatias", de 80 m 2, foi realizado em chapas de inox, polidas na parte superior e oxidadas na parte inferior, compondo labirinto de brilhos e opacidades. "Caderno", por sua vez, é um labirinto de transparências realizado em telas de juta. Por fim, Amelia democratizando sua arte, desceu da galeria ao túnel do metrô. Criou, em 98, para a Estação Arcoverde do Rio de Janeiro, "Paisagem Subterrânea", realizando no espaço público seu mundo mineral: uma plataforma ladrilhada com diferentes tipos de granito brasileiro.
Essa trajetória, aqui sintetizada, não sinaliza que Amelia tenha seguido modismos, mas, ao contrário, que sua unidade é tão notável porque soube aproximar as tendências vanguardistas, em especial as construtivas, de sua pesquisa sobre as cristalizações da natureza. E os curadores reforçam essa unidade, feita de formas puras, pedras e brilhos. A galeria, à meia-luz, encena uma gruta. E o espectador, como um espeleólogo, nela encontra de tudo: de briozoários a madrepérolas.
Há contudo um risco. A montagem é por demais cenográfica. O espaço climatizado é excessivamente "clean". É tudo tão imperturbável e asséptico que a natureza soa artificiosa. É verdade que Amelia busca soldar a pedra lascada pelo tempo ao inox resistente aos rastros. E que plotando pedras em computadores, como em "Ressonância de Paisagens", de 98, apresenta o natural em imagem digital. Amalgama o magma ao macintosh. O primitivo, filtrado pelo "high tech", acaba, aqui, privado de todo segredo. A obra de Amelia, contudo, não deve ser associada ao formalismo "soft" da sociedade do espetáculo. A montagem corre o risco, entretanto, de aproximá-la do decorativo, do "new age", em outros termos, da onda esteticista (pós-moderna?) da atualidade.


Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark" (Atlas).

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