São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999 |
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Ensaios examinam aquilo que a fotografia esconde, não o que ela mostra O avesso da fotografia
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Desconstrução da fotografia A partir desse núcleo na parte central do livro, o autor aborda dois grandes temas: "Construção e Desmontagem do Signo Fotográfico" e "Realidades e Ficções na Trama Fotográfica". Basicamente, ele propõe uma desconstrução da imagem fotográfica para compreendermos como se dá a sua construção. Construção que é, também, a construção imaginária da sociedade. A fotografia implica na transposição "da realidade visual do assunto selecionado, no contexto da vida (primeira realidade), para a realidade da representação (imagem fotográfica: segunda representação)...". Se ficasse por aí, o autor estaria apenas retomando idéias correntes nas ciências sociais e aplicando-as à fotografia e, com isso, já estaria fazendo um lembrete importante aos pesquisadores que se valem da fotografia como documento. Ele, porém, vai adiante e, de certo modo, propõe uma concepção polêmica da fotografia e de seus usos documentais. A polissemia da imagem fotográfica, como ele destaca, implica num elenco de interpretações e de intérpretes: quem fotografa, mas também quem vê a fotografia, quem a produz e quem a usa. A fotografia se situa num universo de múltiplas realidades e ela é dele um instrumento. A fragmentação, ato fundante da fotografia, própria da imagem fotográfica, "inaugurou uma nova visualidade, uma nova forma de entendimento do mundo". Basicamente, a fotografia tem uma espécie de vida própria e de eficácia própria na realidade social. Por isso, para Kossoy, "o assunto uma vez representado na imagem é um novo real: interpretado e idealizado, em outras palavras, ideologizado. É por meio de sua natureza ficcional que a fotografia possibilita a "criação de realidades'". É notório, para o leitor especializado, o débito teórico de Kossoy para com a sociologia fenomenológica, em especial para com Alfred Schutz e seus seguidores, Peter Berger e Thomas Luckmann, autores curiosamente não citados. Mais do que diante de uma filiação teórica explícita, estamos diante de uma transposição conceitual que amplia o território da polêmica possível. Destaco duas concepções schutzianas que atravessam o livro de ponta a ponta: criação de realidades e múltiplas realidades. Rebatidas para a formulação original, elas indicam a possibilidade de uma leitura severamente crítica das formulações de Kossoy, leitura que, aliás, não anula o esforço do autor e que, ao contrário, instiga o leitor a organizar, a partir daí, sua própria pauta de reflexões sobre o tema. Documento da morte Instigado, justamente, por esse desencontro, entendo que a compreensão da fotografia na construção de realidades, depende de uma etnografia do lugar da imagem fotográfica na vida social de todo dia. Se pensarmos na enorme carga de improvisação e criação presente na construção social da realidade, isto é, na contínua definição e redefinição dos significados que cimentam os processos interativos, então a memória fotográfica de fato não tem lugar na construção da realidade nem das ficções próprias da interação. A foto congela, como se costuma dizer, o momento. A fotografia é um documento da morte e da ampliação do lugar da morte na sociedade contemporânea. Ela desconstrói a realidade em nome da memória, do que foi e não do que é. A fotografia não pode substituir a função própria do imaginário na construção social da realidade. Se a fotografia congela o momento, o imaginário descongela-o, destemporaliza-o para viabilizar o fluxo do processo interativo, o vivido. Talvez influa na concepção que o autor tem da fotografia uma certa idéia de fotografia como obra de arte, como obra em si e não necessariamente como produto. Mas, ao mesmo tempo, o autor nos diz que a fotografia é uma forma nova de expressão ideológica, numa sociedade em que a ideologia se diversificou formalmente. As múltiplas realidades de que ele nos fala talvez possam ser consideradas múltiplos imaginários e múltiplas representações de uma mesma coisa, pessoa ou fato. Talvez esteja aí um dos aspectos fundamentais do caráter fragmentário do contemporâneo, fundamento da fotografia, como bem assinala Kossoy. José de Souza Martins é professor titular de sociologia na USP. Texto Anterior: Ricardo Fabbrini: A retenção do tempo Próximo Texto: Maria Hermínia T. de Almeida: O declínio dos sindicatos Índice |
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