São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Ensaios examinam aquilo que a fotografia esconde, não o que ela mostra
O avesso da fotografia

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

A fotografia tem sido cada vez mais utilizada como documento e fonte de informação sobre realidades sociais presentes e passadas. Historiadores, sociólogos e antropólogos têm se valido, com crescente frequência, da imagem fotográfica como um documento supostamente objetivo e indiscutível de fatos, acontecimentos e situações. Ao contrário de outras fontes, a imagem fotográfica nos colocaria indiscutivelmente diante do fato. A fotografia tudo revelaria e nada esconderia. Sobretudo historiadores, valendo-se de imagens fotográficas de um passado recente, crêem que a fotografia lhes documenta a vida cotidiana, como se por meio dela pudessem flagrar o cotidiano no seu desenrolar natural e na imagem fotográfica se congelasse um momento da rotina diária e da vida social. A fotografia seria a evidência de realidades invisíveis ao olho nu da documentação convencional.
É pequena e inicial a bibliografia que trata criticamente do tema. Mas os que se preocupam com essa ingênua suposição dispõem agora, reunidos neste pequeno volume, dos ensaios que, a partir de diferentes perspectivas e interesses, Boris Kossoy escreveu ao longo de uma carreira dedicada ao estudo histórico e sociológico da fotografia no Brasil.
Kossoy, que já se interessou pela fotografia como documento, propõe uma linha de leitura crítica, orientada pelo esforço teórico de expor e propor a compreensão das ocultações contidas na imagem fotográfica. Para ele, a fotografia é marcada por uma ambiguidade que impõe a necessidade de referências interpretativas que nela revelem não só o visível, mas também o seu avesso. Como diz ele, "será no oculto da imagem fotográfica, nos atos e circunstâncias à sua volta, na própria forma como foi empregada que, talvez, poderemos encontrar a senha para decifrarmos seu significado. Resgatando o ausente da imagem compreendemos o sentido do aparente, sua face visível".
Na parte intitulada "Decifrando a Realidade Interior das Imagens do Passado", o autor situa fotografias de uma época de transição da história social brasileira, a compreendida entre o fim do século passado e o início deste século, para mostrar uma elite que nos cartões postais de uma cidade como São Paulo, se apresenta ao destinatário como "iconograficamente européia". Uma das grandes ênfases do livro é justamente a das funções ideológicas da fotografia, a trama ideológica, como prefere o autor, que se esconde sob a superfície das imagens, instrumento para mostrar ao estrangeiro uma visão estrangeira do país, um país moderno que não o era, uma civilização de superfície.


Realidade e Ficções na Trama Fotográfica
Boris Kossoy Ateliê Editorial (Tel. 0/xx/11/7922-9666) 152 págs., R$ 15,00




Desconstrução da fotografia
A partir desse núcleo na parte central do livro, o autor aborda dois grandes temas: "Construção e Desmontagem do Signo Fotográfico" e "Realidades e Ficções na Trama Fotográfica". Basicamente, ele propõe uma desconstrução da imagem fotográfica para compreendermos como se dá a sua construção. Construção que é, também, a construção imaginária da sociedade. A fotografia implica na transposição "da realidade visual do assunto selecionado, no contexto da vida (primeira realidade), para a realidade da representação (imagem fotográfica: segunda representação)...".
Se ficasse por aí, o autor estaria apenas retomando idéias correntes nas ciências sociais e aplicando-as à fotografia e, com isso, já estaria fazendo um lembrete importante aos pesquisadores que se valem da fotografia como documento. Ele, porém, vai adiante e, de certo modo, propõe uma concepção polêmica da fotografia e de seus usos documentais. A polissemia da imagem fotográfica, como ele destaca, implica num elenco de interpretações e de intérpretes: quem fotografa, mas também quem vê a fotografia, quem a produz e quem a usa. A fotografia se situa num universo de múltiplas realidades e ela é dele um instrumento.
A fragmentação, ato fundante da fotografia, própria da imagem fotográfica, "inaugurou uma nova visualidade, uma nova forma de entendimento do mundo". Basicamente, a fotografia tem uma espécie de vida própria e de eficácia própria na realidade social. Por isso, para Kossoy, "o assunto uma vez representado na imagem é um novo real: interpretado e idealizado, em outras palavras, ideologizado. É por meio de sua natureza ficcional que a fotografia possibilita a "criação de realidades'".
É notório, para o leitor especializado, o débito teórico de Kossoy para com a sociologia fenomenológica, em especial para com Alfred Schutz e seus seguidores, Peter Berger e Thomas Luckmann, autores curiosamente não citados. Mais do que diante de uma filiação teórica explícita, estamos diante de uma transposição conceitual que amplia o território da polêmica possível.
Destaco duas concepções schutzianas que atravessam o livro de ponta a ponta: criação de realidades e múltiplas realidades. Rebatidas para a formulação original, elas indicam a possibilidade de uma leitura severamente crítica das formulações de Kossoy, leitura que, aliás, não anula o esforço do autor e que, ao contrário, instiga o leitor a organizar, a partir daí, sua própria pauta de reflexões sobre o tema.

Documento da morte
Instigado, justamente, por esse desencontro, entendo que a compreensão da fotografia na construção de realidades, depende de uma etnografia do lugar da imagem fotográfica na vida social de todo dia. Se pensarmos na enorme carga de improvisação e criação presente na construção social da realidade, isto é, na contínua definição e redefinição dos significados que cimentam os processos interativos, então a memória fotográfica de fato não tem lugar na construção da realidade nem das ficções próprias da interação.
A foto congela, como se costuma dizer, o momento. A fotografia é um documento da morte e da ampliação do lugar da morte na sociedade contemporânea. Ela desconstrói a realidade em nome da memória, do que foi e não do que é. A fotografia não pode substituir a função própria do imaginário na construção social da realidade. Se a fotografia congela o momento, o imaginário descongela-o, destemporaliza-o para viabilizar o fluxo do processo interativo, o vivido.
Talvez influa na concepção que o autor tem da fotografia uma certa idéia de fotografia como obra de arte, como obra em si e não necessariamente como produto. Mas, ao mesmo tempo, o autor nos diz que a fotografia é uma forma nova de expressão ideológica, numa sociedade em que a ideologia se diversificou formalmente. As múltiplas realidades de que ele nos fala talvez possam ser consideradas múltiplos imaginários e múltiplas representações de uma mesma coisa, pessoa ou fato. Talvez esteja aí um dos aspectos fundamentais do caráter fragmentário do contemporâneo, fundamento da fotografia, como bem assinala Kossoy.


José de Souza Martins é professor titular de sociologia na USP.


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