São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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A energética do interesse comum

FÁBIO WANDERLEY REIS

As deficiências das ciências sociais em nosso país transparecem bem claramente no fato de que tenham sido necessários 34 anos para que pudéssemos contar com a publicação brasileira deste livro.
Infelizmente, elas se mostram também na maneira pela qual ele afinal aparece, em edição pouco cuidada, com tradução que deixa muito a desejar. Não apenas o resultado é a linguagem sem apuro a que nos acostumamos em traduções na área, mas envolve mesmo uma impropriedade que se revela importante por dizer respeito ao cerne do argumento sustentado no livro.
Refiro-me à tradução da expressão "public goods", que figura até no subtítulo do volume e, remetendo à idéia de "bem econômico" a ser encontrada em qualquer manual de economia, refere-se aqui a um tipo particular de bem que apresenta a característica de ser "público", em sentido técnico bem preciso, donde decorrem as consequências que o livro analisa para o problema geral da ação coletiva. Ora, a expressão é sistematicamente traduzida por "benefícios públicos". O inusitado da fórmula evidencia a pouca familiaridade do tradutor com a literatura de ciências sociais, bem como a falta de qualquer revisão técnica.
O livro de Olson, junto com "Uma Teoria Econômica da Democracia" (Edusp), de Anthony Downs, é um dos mais importantes exemplos pioneiros da abordagem econômica dos fenômenos políticos. O impacto singular por ele alcançado se deve justamente às consequências extraídas da idéia de bem público para certos postulados tradicionais das ciências sociais. Estas costumavam aderir ao suposto de que os membros de um grupo ou categoria tenderiam, natural e espontaneamente, a agir para a realização dos seus interesses comuns, suposto que se percebia como derivando de outro, o de que os indivíduos que integram os grupos são racionais e movidos por considerações de interesse próprio.
Olson sustenta, em contraposição, que, ao invés de o primeiro desses supostos derivar do segundo, os dois são na verdade incompatíveis: se aderimos à premissa do comportamento racional e egoisticamente motivado pelo interesse próprio, somos logicamente levados antes à consequência de que os grupos não agirão para a promoção dos interesses comuns.
Isso se deve a que qualquer interesse comum corresponde a um "bem público" ou "coletivo", o qual, se tem seu consumo assegurado para uma parcela qualquer dos membros de um grupo ou categoria, estará necessariamente assegurado para os demais, mesmo aqueles que não "pagam" ou não contribuem para que seja produzido ou obtido. Daí que o bem público não represente, para indivíduos egoístas e racionais, estímulo suficiente ao dispêndio da energia ou dos recursos necessários à sua consecução, incentivando antes, por parte de cada um, a disposição de tomar "carona" nos esforços dos outros.


Lógica da Ação Coletiva: Os Benefícios Públicos e Uma Teoria dos Grupos Sociais
Tradução: Fabio Fernandez Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149) 201 págs., R$ 25,00




Incentivos separados
Em consequência, a presunção deve ser que a ação coletiva não se realizará, a menos que haja coerção ou o que Olson denomina "incentivos separados", que atuem seletivamente em termos individuais e "remunerem" individualmente os membros do grupo por sua contribuição para o bem coletivo. Essa lógica operaria especialmente no caso de grupos de grandes dimensões, chamados "latentes", nos quais se tem como aspecto adicional o problema de coordenação que resulta, dadas as dimensões do grupo, da irrelevância da contribuição de cada um para o resultado agregado -donde retira Olson a consequência de que mesmo indivíduos altruisticamente motivados, se racionais, não investiriam os recursos ou esforços necessários à obtenção do interesse comum.
A intuição básica contida na análise tem antecedentes no pensamento de numerosos autores, de Hobbes, Rousseau, Kant, Mandeville, Adam Smith e Marx, a contemporâneos, como Robert Merton, Karl Popper etc. O mérito principal de Olson consiste em dar formulação abstrata e genérica ao problema, possibilitando buscar com clareza os efeitos do paradoxo nele envolvido.
Assim, o paradoxo é crucial do ponto de vista de uma teoria do Estado: a ordem pública é provavelmente o exemplo por excelência de "bem coletivo", e os dilemas daí resultantes constituíram o foco, antes de Olson, de extensos debates entre os intérpretes de Hobbes sobre a consistência da transição por ele visualizada entre o estado de natureza e a sociedade civil.
Mas a questão da constituição das classes sociais como grupos efetivos e da eventual ação revolucionária de classe é exemplo de outro campo importante onde se apresentam dilemas análogos: se, à maneira de Marx, concebemos a revolução como o resultado da ação de proletários que se tornam conscientes dos seus interesses e agem racionalmente para promovê-los, como nos situaremos diante da constatação de que a própria revolução aparece como bem público e, portanto, o racional para cada proletário consistiria em abster-se dos riscos e inconvenientes da ação revolucionária e tomar carona na luta dos demais? Isso seria, por certo, pouco solidário; mas que restará da posição reclamada por Marx, se a revolução passar a ser vista como exigindo a edificante exortação à solidariedade?
A questão central consiste, assim, na maneira pela qual se articulam o plano das ações individuais e o do coletivo. Nas mãos de Olson, o "individualismo metodológico" redunda em problematizar de maneira singularmente efetiva a tendência a simplesmente postular o coletivo ou tomá-lo como dado. Boa parte do ímpeto adquirido pelo que se veio a designar como a teoria ou abordagem da "escolha racional" (incluindo o "marxismo analítico") pode ser atribuída à influência de Olson.
Essa abordagem de inspiração econômica acaba incidindo em claros excessos, em particular o de pretender deduzir a sociedade em sua riqueza a partir da suposição de indivíduos calculadores postos como que num estado de natureza.
Cumpre tratar de raciocinar com maior sofisticação a respeito das relações complexas entre a "energética" ou motivação da ação -com os condicionamentos que lhe são trazidos por um contexto que já é de partida social- e a instrumentalidade ou "economia" própria do aspecto racional da ação, cuja postulação é indispensável a qualquer intento consequente de explicação nas ciências sociais. Mas, se viermos a ter êxito na tarefa, a ajuda do legado de Olson (recentemente falecido) terá sido de grande importância.


Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


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