São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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A voz que canta

JUAREZ GUIMARÃES

Numa carta a Horkheimer, Marcuse afirmou que não era "pessoa de deixar mensagens na garrafa", isto é, preparar textos apenas para as gerações futuras. Ele se autoconcebia como homem de seu tempo, ligado aos combates de seus contemporâneos. Entretanto, uma vez que este século não cansou de nos dar lições, cabe analisar esta coletânea como mensagens na garrafa de alguém cujas esperanças de emancipação naufragaram nas ondas tormentosas do século.
Ela reúne ensaios, projetos e cartas de Marcuse escritos na década de 40. As cartas a Horkheimer ajudam a esclarecer seu ponto de tensão com a personalidade mais polarizadora da Escola de Frankfurt. Sua correspondência com Heidegger acerca das relações deste com o nazismo traduz o misto de decepção e crítica do antigo assistente com o mestre que havia sido sua principal referência em filosofia no final dos anos 20.

Pistas do futuro
O empreendimento suscita as perguntas: em que medida os escritos de Marcuse contribuem para a compreensão da cena contemporânea e sua teoria da emancipação fornece pistas para o futuro?
A resposta não é simples. Após o auge de sua disseminação, nos anos 60 e início dos 70, a teoria de Marcuse parece hoje uma expressão de época. Gestada nos anos do terror nazista, amadurecida nos tempos da guerra fria, identificada um pouco artificiosamente como expressão de um "gauchismo" estudantil, sua obra seria um "niilismo humano disfarçado em radicalismo", como afirmou Erich Fromm. Marcuse teria apagado sectariamente a distinção entre liberalismo e fascismo, extrapolado unilateralmente tendências da sociedade industrial e erigido um tal absoluto de emancipação que, por si próprio, o condenaria.
Os ensaios desta coletânea desmentem estes juízos. Se há contaminação de época na obra de Marcuse, o complexo analítico que ele propõe está longe de ter se exaurido.
"Algumas Implicações Sociais da Tecnologia" (1941), por exemplo, desmente o Marcuse nostálgico de mundos passados, avesso às conquistas da ciência. Diferenciando técnica (o aparato da indústria, transporte e comunicação) e tecnologia enquanto forma de controle e dominação, procura explorar o potencial emancipatório da técnica. Afirma, assim, que "a filosofia da vida simples, a luta contra as grandes cidades e a sua cultura frequentemente servem para ensinar os homens a desacreditar nos instrumentos potenciais que poderiam libertá-los".
Além da democratização das funções, "a mecanização e a padronização podem um dia ajudar a mudar o centro de gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre realização humana". É interessante como Marcuse visualiza o caráter potencialmente positivo da burocracia pública se controlada democraticamente.
"Estado e Indivíduo sob o Nacional-Socialismo" (1942) vale por indicar uma análise alternativa ao padrão Estado totalitário/sociedade autoritária, que se firmou por meio da força da tradição liberal que identifica nazismo e stalinismo. Para Marcuse, "o Terceiro Reich não promove a assim chamada totalidade do Estado, mas a do movimento nacional-socialista".


Tecnologia, Guerra e Fascismo
Herbert Marcuse Organização: Douglas Kellner Tradução: Maria Cristina Vidal Barbosa Editora da Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171) 372 págs., R$ 35,00



Nem revolução nem restauração, a experiência nazista impôs-se como saída política para um capitalismo forte, mas tolhido interna e externamente em seu potencial de expansão. Meio e não um fim, o Estado nacional-socialista teria uma soberania tripartite (indústria, partidos, Forças Armadas) conciliada pelo poder pessoal do "Führer". A ultrapassagem do Estado liberal (impessoalidade da lei, divisão de poderes, privado oposto ao público) teria se dado não por sua negação, mas pela exacerbação das tendências a um individualismo competitivo.
Nos ensaios "Uma História da Doutrina da Mudança Social" e "Teorias da Mudança Social", a revisão que Marcuse e Neumann fazem dos gregos à moderna teoria sociológica permite aos autores um distanciamento crítico das visões objetivistas de mudança social pensada a partir da evolução de leis inerentes ao capitalismo. A emancipação é enfatizada em sua dimensão de liberdade, de autoconstrução humana. Mas persiste a dificuldade de pensar a passagem da condição objetiva da dominação vivida pelo proletariado ao momento catártico da emancipação.
As "33 Teses" (1947) já teorizam um processo amplo de integração do proletariado à ordem capitalista. No período seguinte, coerentemente, Marcuse depositaria as esperanças nos setores sociais menos integrados como as minorias, os desempregados, os estudantes, os povos do Terceiro Mundo.
Toda grande teoria da emancipação será sempre relembrada, embora possa ser transitoriamente esquecida. Nesse caso, seus ecos ressoam no caos de todas as horas. Isto vale para Marcuse, nestes tempos de máxima potência tecnológica e desvairada pulsão das forças mercantis. Mora no avesso de nosso tempo aquele que nos propõe, em "Eros e Civilização", Orfeu e Narciso como heróis culturais em tudo opostos a Prometeu, uma "imagem da felicidade e da plenitude; a voz que não comanda, mas que canta; o gesto que oferece e recebe; o ato de paz que põe fim ao trabalho de conquista".


Juarez Guimarães é professor do departamento de ciência política da UFMG e autor de "Democracia e Marxismo" (Xamã).


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