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Historiador discute relação entre 1789 e as Luzes
E a revolução vem à tona
MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA
A tão discutida questão da relação entre
o Iluminismo e a Revolução Francesa recebe, neste livro, um tratamento singular,
guiado por três teses. De acordo com a
primeira, o absolutismo condicionou o
surgimento do Iluminismo e este, por sua
vez, determinou a gênese da Revolução.
A segunda tese afirma a conexão entre
crítica e crise, no seguinte sentido: na medida em que o processo crítico do Iluminismo não chegou a reconhecer esta conexão, o sentido político da crise permaneceu encoberto, o que contribuiu para o
seu agravamento num sentido inesperado, que foi exatamente o da revolução.
Finalmente, segundo Koseleck, no processo de crítica, ao qual correspondia um
processo de efervescência social, formou-se a filosofia burguesa da história, que,
fundada na idéia de progresso, concebia
o sujeito da história como a humanidade
inteira, caminhando para um futuro melhor. Deste modo, a crítica transforma-se
em utopia.
Moral e política
Vejamos como essas três teses se entrelaçam e se justificam.
O Estado absolutista foi forjado e fortalecido na medida em que controlou e dominou as guerras religiosas. Assim, a nova ordem estatal européia estabelecia a
subordinação da moral à política, ou seja,
o Estado absolutista traçara com cuidado
o limite entre o domínio político e a consciência dos cidadãos, entre o espaço público e o foro íntimo, o que implicava, de
certa forma, numa oposição entre o Estado e a sociedade civil. Para o poder político, as forças próprias da sociedade eram
constituídas de súditos, todos igualmente
submetidos à legislação política.
Ora, no século anterior, como mostra o
autor, enquanto Hobbes havia estabelecido precisamente a necessidade da subordinação da moral à política, Locke, por
sua vez, já havia chamado a atenção para
a importância do juízo moral da sociedade a respeito do conteúdo das leis e para o
fato de que o espaço público e o privado
não eram de modo algum excludentes.
No primeiro caso, o de Hobbes, o Estado
é um juiz racional de homens irracionais;
no de Locke, o cidadão ou súdito pode
exercer uma censura moral em relação ao
Estado.
Na França absolutista, a partir do apogeu do reinado de Luís 14, uma nova elite,
composta de grupos heterogêneos (uma
nobreza antiabsolutista e uma burguesia
endinheirada), mas que tinha em comum
o fato de se ver excluída do poder político, ao considerar injusta a ordem que a
excluía, criou formas de organização como resposta específica a essa ordem e,
mediante a radicalização da oposição entre a moral e a política, transformou-se
em juiz moral do Estado absolutista.
Nesse processo, segundo Koseleck,
duas formações sociais tiveram uma influência decisiva: a franco-maçonaria e a
"república das letras" dos filósofos e literatos. Essa nova elite, sem influência nas
questões políticas, formou uma espécie
de sociedade independente dentro do Estado, ou mesmo um Estado dentro do Estado, o que acabou por minar as bases do
sistema absolutista.
Nas lojas, os maçons criaram uma forma social que lhes era própria: ao lado da
Igreja e da política do Estado, constituíram-se como um terceiro poder. Por sua
vez, os "philosophes", herdeiros de Bayle,
ao praticar a crítica literária, estética, histórica e filosófica, criticavam indiretamente a Igreja e o Estado. A aliança entre
o Estado e a razão havia sido desfeita. Assim, como se pode ver sobretudo na obra
de Voltaire, a crítica, aparentemente apolítica, é, indiretamente, crítica política.
Ao mesmo tempo, a filosofia da história
produzida por essa elite intelectual, e que
profetizava uma vitória progressiva e não
violenta da moral, da liberdade e da
igualdade, dissimula e oculta a possibilidade da revolução. Esse ocultamento e o
agravamento da crise são um único e
mesmo processo, que exacerba a tensão
entre o Estado e a sociedade. Como diz
Koseleck, é assim que "a revolução vem à
tona".
Cabe reconhecer o louvável esforço de
análise realizado pelo autor no que diz
respeito ao exame da estrutura e da ação
política indireta das lojas maçônicas e da
natureza da crítica efetuada pelos filósofos desde o "Dicionário Crítico", de Bayle
até Rousseau. Caberia contudo também
perguntar se a interpretação do processo
revolucionário como um resultado inesperado da tensão dialética entre a moral e
a política não opera uma redução indesejável que tanto incide sobre a própria maneira de ler os textos da nova elite intelectual da época quanto leva a negligenciar
fatores que certamente exerceram uma
influência decisiva na trajetória histórica
que vai encontrar o seu desenlace em
1789.
Poderíamos, por exemplo, lembrar o
exame de Koseleck sobre o papel exercido por Turgot. Ministro das Finanças entre 1774 e 1776, para Koseleck, Turgot tinha um pé fincado no Iluminismo (e,
portanto, no domínio da crítica moral) e
outro na política e, assim, estava irremediavelmente enredado neste dualismo escamoteado pela inteligência burguesa.
Assim, o projeto de Turgot, enquanto
pretendia satisfazer as exigências da sociedade de maneira indireta (pois essa era
a meta dos filósofos), permanecendo no
terreno do Estado absolutista (enquanto
ministro de Luís 16), só poderia fracassar.
Com efeito, o ministro demitiu-se, ou foi
levado a demitir-se.
Ora, é certo que Turgot era frequentador do círculo dos filósofos e colaborou
com a "Encyclopédie". Mas, quando assume o Ministério das Finanças, seu projeto, como exigia a natureza de seu cargo,
consistia principalmente em sanar as finanças do Estado. Em 1774, instituiu a liberdade de comércio e transporte de cereais, em 1776 suprimiu as corporações e
substituiu a corvéia por uma taxa em dinheiro. Além disso, teve de enfrentar diversas revoltas, como a guerra da farinha,
causadas por uma safra ruim que tinha
acarretado uma alta no preço do pão. A
queda do ministro, antes de ser atribuída
ao fato de que ele pretendia exercer uma
"tutela moral" sobre o Estado, explica-se
sobretudo pelo fato de que na crise estavam em jogo interesses econômicos inconciliáveis.
Crítica e Crise - Uma Contribuição à Patogênese do Mundo Burguês
Reinhart Koseleck
Trad.: Luciana Villas-Boas Castelo-Branco
Contraponto (Tel. 0/xx/21/533-2651)
254 págs., R$ 30,00
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Rousseau e a crise
Outra análise de Koseleck que merece
atenção, enquanto se apresenta como resultado de sua hipótese principal que é a
da tensão entre moral e política no Antigo Regime, tem como objeto o pensamento político de Rousseau. Para o autor, Rousseau, tanto quanto os seus adversários, também estava enredado no
dualismo da moral e da política, embora
fosse talvez o único dentre eles que efetivamente enfrentou o fenômeno da crise
que opunha a sociedade ao Estado.
Contudo, como uma solução, segundo
julga Koseleck, Rousseau concebeu, no
"Contrato Social", uma constituição na
qual a sociedade ocupa o poder do Estado, permanecendo contudo o que ela é.
Trata-se do "milagre em que ninguém
reina, mas todos obedecem e permanecem livres ao mesmo tempo". Assim, obtinha-se a unidade entre moral e política,
mas o que acaba sendo encontrado é o
"Estado total", que repousaria numa
identidade fictícia e imposta entre a moral civil e a vontade soberana. O resultado
desta análise é previsível: "a identidade
postulada entre liberdade moral e coerção política", diz o autor, "com a qual
Rousseau esperava eliminar os males do
sistema absolutista, revela-se a ditadura
ideológica da virtude, cuja autoridade desaparece sob a máscara da vontade geral".
Ora, essa me parece ser mais uma das
maneiras de associar o pensamento de
Rousseau ao período do Terror, procedimento que tem implicações decisivas para a interpretação da natureza do processo revolucionário. Não é portanto gratuito que Koseleck possa, ao final de seu livro, dizer que o postulado dos militantes
burgueses, que era a moralização da política, tenha terminado na decapitação do
rei, "violência pura".
É certo que, malgrado as esperanças
que o passado continha, para usar as palavras de Adorno e Horkheimer sobre o
Iluminismo, a Revolução Francesa inaugurou, ao fim do processo, uma ordem
social em crise permanente, e é por isso
que Koseleck considera, como mostra o
subtítulo do livro, que fazer a sua história
é construir a "patogênese" do mundo
burguês. Mas esse caráter doentio não se
explicaria tão-somente por meio da dialética entre moral e política no Antigo Regime. Os desenvolvimentos históricos
posteriores à Revolução Francesa mostraram que uma ordem social e política
fundada na diferença de privilégios foi
substituída por uma outra ordem, fundada na diferença de riquezas.
Poucas décadas depois do período crítico, Augusto Comte não terá nenhuma dificuldade em dizer que, para que se conseguisse acabar com a crise, era necessário um contrato entre desiguais, reconhecidos como tais, ou seja, como operários
e patrões. A oposição determinante, nesse caso, seguramente não era entre a moral e a política.
Maria das Graças de Souza é professora de ética e filosofia política na USP e autora de "Voltaire, a Razão
Militante" (Moderna).
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