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O paradoxo da invenção
LYGIA A. WATANABE
São raros os helenistas brasileiros que deixam o universo escolar
das traduções para se lançar ao
comentário, sem abandonar os
textos gregos. O ensaio de Newton Bignotto sobre a tirania grega
clássica é dos mais necessários e
louváveis.
Bignotto começa pela tragédia,
com uma análise da tirania sofocleana de Édipo, figura escorregadia que passa de "tirano-usurpador" a "vítima do destino legitimada no poder". Ressalta a seguir
elementos da crítica platônica ao
tirano, sobretudo nas "Leis" e nos
textos médios de Platão. Aqui, no
interessante entrelaçamento teórico das noções de demiurgo e tirano, estranha-se o fato de que a
demiurgia "operária", o demiurgo-artesão, não receba tratamento conceptual, o que perpetua
aliás a exegese cristã do platonismo quanto à primazia da figura
do demiurgo-divino, tradição
apriorística e incontornável.
O livro alcança ainda a concepção aristotélica do tirano, em sua
comparação com o poder régio
em geral. E o último capítulo retoma a questão platônica da educação do tirano, nas "Cartas 7 e 8",
de Platão, e no "Da Tirania", de
Xenofonte, segundo estudo de
Leo Strauss.
E esse de fato é o caminho certo:
ler e reler textos já lidos e relidos.
Nosso autor seguramente não
despreza a questão histórica do
ato de ler e revela certa prudência
ao adotar a perspectiva das "invenções": a invenção da cidade,
da democracia, da mitologia etc.
Mas, diante do uso que faz das expressões "invenção da tirania",
"invenção do demiurgo", adere à
mania dos mestres do Centro de
Pesquisas sobre as Sociedades
Antigas de Paris. Talvez o título
"O Tirano e a Cidade" tenha sobrepujado um possível "A Invenção da Tirania", que aliás não teria sido contraditório...
Além disso, ao recusar hoje o
absolutismo hegeliano da história
única, com o conceito moderno
de "invenção" pressupõe o mesmo tipo de unicidade que nega
-para que se note a discrepância
da invenção num processo que se
supõe uniforme.
Pois "inventar", do latim "invenio", designa "chegar até", ou
"encontrar", numa acepção muito mais próxima da do grego
"heurisko", "descobrir", "encontrar". Arquimedes, ao exclamar
"hêureka!" ("achei!", "descobri!"), certamente estava consciente do fato de que aquilo que
encontrara (a constatação do
princípio da pressão hidrostática)
era verdadeiro, diríamos real, justamente porque já estava lá.
Contudo, falar hoje em "invenção" implica mesmo em se anunciar que um evento ou aparato é
"criado" ou passa a existir justamente quando ainda não se fazia
presente. Pode ser útil lembrar
ainda que tal idolatria do novo somente é possível e pensável dentro de uma civilização que tem na
criatividade humana o traço dos
laços internos de filiação entre o
homem e seu Deus criador. E que,
além disso, um tal contexto está
longe de se assemelhar ao contexto grego -especificamente pagão!- dos primeiros tempos do
Ocidente.
Todos os adeptos do "invencionismo" concedem uma "certa
historicidade" para qualquer invenção. Mesmo assim, a conotação "criativa" da "invenção" é o
que, não obstante, prevalece. A tirania é um regime já conhecido
desde o Oriente, a começar dos
próprios primeiros historiadores
e filósofos. Inútil reforçar eventos
da história antiga como "invenções", chamando a atenção para o
que sempre teve destaque, e para
tratá-lo como se fosse novo, para
efeitos do marketing ocidentalizante.
O Tirano e a Cidade
Newton Bignotto
Discurso Editorial
(Tel. 0/xx/11/815-5383)
188 págs., R$ 15,00
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Efeito surpresa
Mas o que parece purismo professoral atinge aqui uma dimensão mais ampla e profunda. No
cerne da tirania, como sua definição primeira, está o fato de que se
trata de um governo absolutamente novo, isto é, sem transições, herança, escolha, designação ou eleição prévias... Tirano é
aquele que surge de repente à
frente do povo, ou à porta -o
que ligaria as raízes gregas de
"tyrannos" a "thyra", porta do palácio.
Para uma discussão sobre o tirano e a cidade, seria de se prever
uma discussão sobre o "novo poder", a "nova ordem", sobre o governante inventado, tão temido
pelos autores lidos. Desapercebido desta clareira, Bignotto apenas
constata historicamente o quanto
e o como sempre se prepara o terreno para o surgimento de um tirano, aliás, uma das dádivas do
seu livro. E, no entanto, poderia
ter explorado o paradoxo de a tirania provir do efeito surpresa na
história vivida, quebrando a própria expectativa histórica das continuidades...
Assim, até o paradoxo da tirania
já estava lá. Mesmo do ponto de
vista teórico, aprendemos sobre
ela nos manuais da história ainda
mais antiga, do Oriente. Mundo
"bárbaro", mas que os gregos da
época clássica, pensadores viajados, esclarecidos, já viam com interesses cognitivos. Quanto a nós,
uma cisão sequer existia na Atenas clássica entre o "desprezível
Leste" e o "promissor Oeste", mas
esses são os termos em que, desde
a expansão do império macedônico, passando pela Inquisição,
por Hegel e até a Guerra Fria, foram formadas nossas concepções
e nossa consciência de sermos
ocidentais e de ser nossa aquela
história que realmente conta.
Donde o lugar ainda hoje reservado ao marketing ocidentalizante.
Lamentamos o silêncio diante
dos discursos políticos de Lísias e
do libelo antimacedônico contra
o tirano insidioso e invasor; dos
discursos de Demóstenes; mas,
principalmente, a ausência de
uma interpretação, em contraponto com os textos, do período
histórico da Tirania dos Trinta,
no final do século 5 a.C.. Entre "o
tirano e a cidade" do título, a cidade e sua história saem perdendo
quantitativamente. Episódio central dentro da época recortada pela análise do autor, e crucial para
seu tema: a tirania oligárquica imposta por Esparta à cidade de Atenas (que já havia sido democrática e nunca mais voltaria a sê-lo
plenamente) e da qual participam
familiares próximos de Platão, o
quase obscuro Cármides, e sobretudo Crítias, o mais violento dos
Trinta...
Mas todas estas ressalvas significam apenas o fato de que gostaríamos de ter lido mais, de termos
sido levados ainda mais longe,
nessa busca de leitor, metódica e
teórica, por um fato histórico que
teima em se apresentar como novo e que tem se revelado em nossa
história como perigosamente recorrente.
Lygia Araujo Watanabe é professora de filosofia antiga na USP.
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