São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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O paradoxo da invenção

LYGIA A. WATANABE

São raros os helenistas brasileiros que deixam o universo escolar das traduções para se lançar ao comentário, sem abandonar os textos gregos. O ensaio de Newton Bignotto sobre a tirania grega clássica é dos mais necessários e louváveis.
Bignotto começa pela tragédia, com uma análise da tirania sofocleana de Édipo, figura escorregadia que passa de "tirano-usurpador" a "vítima do destino legitimada no poder". Ressalta a seguir elementos da crítica platônica ao tirano, sobretudo nas "Leis" e nos textos médios de Platão. Aqui, no interessante entrelaçamento teórico das noções de demiurgo e tirano, estranha-se o fato de que a demiurgia "operária", o demiurgo-artesão, não receba tratamento conceptual, o que perpetua aliás a exegese cristã do platonismo quanto à primazia da figura do demiurgo-divino, tradição apriorística e incontornável.
O livro alcança ainda a concepção aristotélica do tirano, em sua comparação com o poder régio em geral. E o último capítulo retoma a questão platônica da educação do tirano, nas "Cartas 7 e 8", de Platão, e no "Da Tirania", de Xenofonte, segundo estudo de Leo Strauss.
E esse de fato é o caminho certo: ler e reler textos já lidos e relidos. Nosso autor seguramente não despreza a questão histórica do ato de ler e revela certa prudência ao adotar a perspectiva das "invenções": a invenção da cidade, da democracia, da mitologia etc. Mas, diante do uso que faz das expressões "invenção da tirania", "invenção do demiurgo", adere à mania dos mestres do Centro de Pesquisas sobre as Sociedades Antigas de Paris. Talvez o título "O Tirano e a Cidade" tenha sobrepujado um possível "A Invenção da Tirania", que aliás não teria sido contraditório...
Além disso, ao recusar hoje o absolutismo hegeliano da história única, com o conceito moderno de "invenção" pressupõe o mesmo tipo de unicidade que nega -para que se note a discrepância da invenção num processo que se supõe uniforme.
Pois "inventar", do latim "invenio", designa "chegar até", ou "encontrar", numa acepção muito mais próxima da do grego "heurisko", "descobrir", "encontrar". Arquimedes, ao exclamar "hêureka!" ("achei!", "descobri!"), certamente estava consciente do fato de que aquilo que encontrara (a constatação do princípio da pressão hidrostática) era verdadeiro, diríamos real, justamente porque já estava lá.
Contudo, falar hoje em "invenção" implica mesmo em se anunciar que um evento ou aparato é "criado" ou passa a existir justamente quando ainda não se fazia presente. Pode ser útil lembrar ainda que tal idolatria do novo somente é possível e pensável dentro de uma civilização que tem na criatividade humana o traço dos laços internos de filiação entre o homem e seu Deus criador. E que, além disso, um tal contexto está longe de se assemelhar ao contexto grego -especificamente pagão!- dos primeiros tempos do Ocidente.
Todos os adeptos do "invencionismo" concedem uma "certa historicidade" para qualquer invenção. Mesmo assim, a conotação "criativa" da "invenção" é o que, não obstante, prevalece. A tirania é um regime já conhecido desde o Oriente, a começar dos próprios primeiros historiadores e filósofos. Inútil reforçar eventos da história antiga como "invenções", chamando a atenção para o que sempre teve destaque, e para tratá-lo como se fosse novo, para efeitos do marketing ocidentalizante.


O Tirano e a Cidade
Newton Bignotto Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/815-5383) 188 págs., R$ 15,00




Efeito surpresa
Mas o que parece purismo professoral atinge aqui uma dimensão mais ampla e profunda. No cerne da tirania, como sua definição primeira, está o fato de que se trata de um governo absolutamente novo, isto é, sem transições, herança, escolha, designação ou eleição prévias... Tirano é aquele que surge de repente à frente do povo, ou à porta -o que ligaria as raízes gregas de "tyrannos" a "thyra", porta do palácio.
Para uma discussão sobre o tirano e a cidade, seria de se prever uma discussão sobre o "novo poder", a "nova ordem", sobre o governante inventado, tão temido pelos autores lidos. Desapercebido desta clareira, Bignotto apenas constata historicamente o quanto e o como sempre se prepara o terreno para o surgimento de um tirano, aliás, uma das dádivas do seu livro. E, no entanto, poderia ter explorado o paradoxo de a tirania provir do efeito surpresa na história vivida, quebrando a própria expectativa histórica das continuidades...
Assim, até o paradoxo da tirania já estava lá. Mesmo do ponto de vista teórico, aprendemos sobre ela nos manuais da história ainda mais antiga, do Oriente. Mundo "bárbaro", mas que os gregos da época clássica, pensadores viajados, esclarecidos, já viam com interesses cognitivos. Quanto a nós, uma cisão sequer existia na Atenas clássica entre o "desprezível Leste" e o "promissor Oeste", mas esses são os termos em que, desde a expansão do império macedônico, passando pela Inquisição, por Hegel e até a Guerra Fria, foram formadas nossas concepções e nossa consciência de sermos ocidentais e de ser nossa aquela história que realmente conta. Donde o lugar ainda hoje reservado ao marketing ocidentalizante.
Lamentamos o silêncio diante dos discursos políticos de Lísias e do libelo antimacedônico contra o tirano insidioso e invasor; dos discursos de Demóstenes; mas, principalmente, a ausência de uma interpretação, em contraponto com os textos, do período histórico da Tirania dos Trinta, no final do século 5 a.C.. Entre "o tirano e a cidade" do título, a cidade e sua história saem perdendo quantitativamente. Episódio central dentro da época recortada pela análise do autor, e crucial para seu tema: a tirania oligárquica imposta por Esparta à cidade de Atenas (que já havia sido democrática e nunca mais voltaria a sê-lo plenamente) e da qual participam familiares próximos de Platão, o quase obscuro Cármides, e sobretudo Crítias, o mais violento dos Trinta...
Mas todas estas ressalvas significam apenas o fato de que gostaríamos de ter lido mais, de termos sido levados ainda mais longe, nessa busca de leitor, metódica e teórica, por um fato histórico que teima em se apresentar como novo e que tem se revelado em nossa história como perigosamente recorrente.


Lygia Araujo Watanabe é professora de filosofia antiga na USP.

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