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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Jacobinismo inglês

CILAINE ALVES CUNHA

A grande maioria de textos que compõem este livro ["Os Românticos - A Inglaterra na Era Revolucionária"] procura reconstituir, passo a passo, o cotidiano de John Thelwall, William Wordsworth e Samuel T. Coleridge durante a Revolução Francesa, num esforço de compreender os rumos do pensamento e da prática jacobinos entre os poetas ingleses. Trata-se de uma coletânea de duas palestras, cinco resenhas e um ensaio acadêmico, produzidos por E.P. Thompson entre as décadas de 1970 e 1990. O fio metodológico que os unifica é a tentativa de procurar no passado a compreensão do presente.
Na palestra inicial, destoante do conjunto, o autor traça um balanço da prática educacional na Inglaterra, procurando formas de superar o dilema entre teoria e prática. Ele remonta à obra de Wordsworth o nascimento, na literatura inglesa, do conflito cultura popular/letrada e do "impulso" que, considerando a experiência no sofrimento e no trabalho, almeja uma ordem social fraterna, baseada na conquista de uma cultura igualitária comum. Na prática educacional inglesa do século 19, a busca de realização desse impulso teria sido freada pelo movimento contra-revolucionário desencadeado a partir do impacto de 1789, desembocando no retorno do paternalismo ou num modelo de educação dos trabalhadores baseado no controle de sua sociabilidade.
Debruçando-se sobre seu tempo, Thompson considera que, ainda que o modelo de educação como dominação e controle diretos tenha sido sobrepujado, o ensino como instrumento de ascensão social, aliado à superespecialização, mantém a alienação.
Nesse artigo, o clássico conceito de "experiência" do autor ressoa na postulação da necessidade de superar as diferenças culturais. Thompson considera o sentimento de solidariedade próprio da experiência do trabalhador, contrapondo-o à frivolidade e ao convencionalismo do conhecimento abstrato. Com isso, presume uma ausência de formalização na tradição popular e a impossibilidade de o conhecimento formal tornar-se experiência viva. Ainda que não se esclareça como e em que medida uma tradição possa equiparar-se à outra, uma futura democracia de igualitarismo cultural traria um dialético relacionamento mútuo entre trabalho e razão, sensibilidade e rigor intelectual, com a experiência fornecendo o lastro das idéias.
A recuperação da prática jacobina do trio romântico acima desemboca numa desalentada digressão sobre a diferença entre "apostasia" e "desencantamento".
O autor procura descrever empaticamente o processo que culminou na conversão de Wordsworth à Igreja Anglicana, às práticas culturais do paternalismo e ao patriotismo conservador, por meio do acompanhamento de seu conflito com os princípios revolucionários. Propõe-se a rechaçar a opinião corrente segundo a qual desde a versão de 1805 de "Prelude", Wordsworth já reafirma os valores tradicionais.
Entende antes que a vivência do choque com a invasão francesa e a alienação do povo inglês teriam fortalecido seus impulsos humanistas. Posteriormente, o enfraquecimento de sua capacidade criativa coincide com a decepção com a filosofia de William Godwin até a rendição final, com a incorporação do didatismo moral em sua poesia.
O historiador crê que uma prática engajada seja possível apenas quando os referentes objetivos permitem. Supõe natural que o processo de violenta perseguição contra os jacobinos desembocasse na mudança de atitude de Wordsworth. Assim, na pesquisa final, recupera detidamente a coerência e o ativismo político de Thelwall, seus longos dias de isolamento social e político, os anos em que foi perseguido, a perda de uma filha, sua ridicularização pública, num momento decisivo em que procura se reerguer, e, no fim, sua autocomiseração.
Tudo isso desemboca numa leitura que, confundindo o preceito romântico de estilização da vida real com sua representação imediata, compreende que o exemplo de Thelwall, mas também o deslocado e rejeitado alter ego jacobino de Wordsworth, seria modelo do personagem Solitário, em "The Excursion" (1814). Diante disso, a perda de capacidade criativa não teria derivado daquela conversão, mas do modo nada convicto com que ela se enuncia na obra, o que não evidenciaria apostasia, mas descontentamento.
Implacável nas resenhas sobre Coleridge, Thompson minimiza os efeitos do ópio em sua conduta moral, política e poética. Para ele, a adesão do poeta ao conservadorismo aristocrático deve servir de parâmetro para a compreensão do enfraquecimento de sua força criadora.
À descrição minuciosa de seus anos de juventude radical contrapõe o relato dos fins mais traiçoeiros, muito em voga desde então, a que um intelectual se destina. O historiador ressalta, de um lado, as antigas aspirações do poeta pela abolição da propriedade, mas, de outro, suas restrições juvenis à igualdade e à liberdade do povo. Pontua ainda a retomada, pelo jovem Coleridge, do princípio godwiniano de "boa vontade universal", em que se reivindica uma posição social privilegiada ao intelectual "esclarecido", concebido como guardião da razão e do bom senso e de quem se exige uma conduta supostamente desinteressada, restrita à cultura.
Impresso na linguagem literária, esse procedimento, como se sabe, não se restringe a Godwin, mas se encontra disseminado em certas vertentes do romantismo, no Schlegel convertido ao catolicismo, em madame de Staël, Victor Hugo, Gonçalves Dias, entre tantos. Em Coleridge, o lado conservador de seu pensamento teria ganhado força na maturidade, quando ele, reconciliando-se com o status quo, transforma em moeda de troca seu crédito de socialista utópico, utilizando a linguagem revolucionária a serviço da contra-revolução.
Em algumas passagens do livro, Thompson responsabiliza exclusivamente os rumos políticos da Revolução Francesa pela derrota acachapante dos ideais humanistas na Europa. O fato de não salientar também as implicações geradas pela expansão da economia industrial talvez não derive apenas de sua opção metodológica. À parte os problemas de revisão, algumas passagens incoerentes e umas tantas repetições, a composição do livro com textos de circunstâncias, postumamente organizados, assim como os próprios dilemas do autor com os descaminhos da Revolução Russa e do marxismo talvez ajudem a compreender tal unilateralidade no argumento e o tom de desalento geral.


Cilaine Alves Cunha é autora de "O Belo e o Disforme - Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica" (Edusp/Fapesp).

Os Românticos - A Inglaterra na Era Revolucionária
E.P. Thompson
Tradução: Sérgio Moraes Rêgo Reis
Civilização Brasileira (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
300 págs., R$ 38,00


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