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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Por que nossa Independência foi uma transação, e não uma revolução

Iluminismo envergonhado

EVALDO CABRAL DE MELLO

O brasileiro nunca se sentiu à vontade com a maneira pela qual o Brasil se emancipou, intuindo que a Independência fora pouco mais excitante que a tramitação de um processo burocrático. Não tivemos nem Ayacucho nem travessia dos Andes nem Bolívar nem San Martin, figuras romanticamente libertárias.
Octavio Tarquínio de Sousa esforçou-se, em sua biografia de d. Pedro 1º, por apresentá-lo como um libertador, o "dador", como então se dizia, de constituições liberais ao Brasil e a Portugal, mas sua tarefa era ingrata, pois o herói, como lembrou Gilberto Freyre, tinha antes os modos prepotentes de filho de fazendeiro. José Bonifácio tampouco é figura apta a motivar entusiasmo, com sua austeridade de alto funcionário público, sem dúvida competente e atilado, mas detentor de um mandonismo digno do chefe de polícia do Porto que fora e em nada inferior, embora mais bem dissimulado, ao do seu amo e senhor, que o aprendera na frequentação das estribarias do paço.
Aos olhos do romantismo revolucionário, a Independência tem de parecer decepcionante, por constituir não uma ruptura, mas uma transação, que ele tende a reputar traição a princípios sagrados, quando, na verdade, não há nada de intrinsecamente condenável numa emancipação consensual. Que o diga o Canadá, ao qual, mais do que ao Brasil, se aplica a observação sarcástica de Rômulo Bettancourt, de que recebeu a independência pelo correio.
A obra que Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves acaba de publicar, intitulada "Corcundas e Constitucionais", entrará no reduzido clube de livros verdadeiramente fundamentais ao nos fazer entender por que tivemos transação em vez de revolução. Num deslocamento da perspectiva historiográfica que a levou muito além dos clichês relativos aos interesses das classes dominantes, ela reconstituiu a cultura política da Independência por meio de uma análise abrangente da linguagem política difundida pelos principais veículos de expressão, os impressos e periódicos da época, um tipo de abordagem que se veio impondo, graças em particular aos trabalhos de J.G.A. Pocock e de Quentin Skinner.

Desquite amigável
Orientação que, entre outras, renovou os estudos de história política, marginalizada pelo êxito da história social e econômica. O grande mérito de "Corcundas e Constitucionais" é o de colocar a pá de cal nas veleidades de interpretação da Independência em termos de aspirações nacionalistas e populares, com que a auto-intitulada "história combatente" procurou há 30 anos atender à demanda ideológica, rejeitando o óbvio, isto é, o fato de que tudo não passara do "desquite amigável" da velha caracterização de Oliveira Lima. Como demonstra a autora, a Independência não constituiu uma ruptura, mas "resultou de um processo que evoluiu no dia-a-dia, feito ao jogo de ações e reações entre as cortes portuguesas e as elites do Novo Mundo, no interior de um universo mental comum".
Sob esse aspecto, a experiência brasileira se aproximou da norte-americana. Nos Estados Unidos, a emancipação tampouco correspondeu a um sentimento agudo de identificação nacional e ocorreu igualmente no interior do mesmo discurso político importado da Inglaterra setecentista. No nosso caso, porém, dado o arcaísmo ou, se quiserem, o feitio tradicional da cultura política luso-brasileira, a emancipação, como assinalou a autora, nem sequer se impregnou do liberalismo coevo, "mas nasceu e foi acalentado, mais propriamente, sob o signo do mesmo absolutismo ilustrado que forjara a idéia de império para conservar o que supunha haver sido".
O conservadorismo da Independência é algo que não escapa à atenção do estudioso atento, como, aliás, não escapou nem aos constitucionalistas portugueses da época, os vintistas, que perceberam desde o começo seu estro decididamente antiliberal, embora ela pudesse instrumentalizar impulsos libertários, nem aos autonomistas pernambucanos, do tipo de Gervásio Pires Ferreira ou de frei Caneca, ou a um lutador da têmpera de Cipriano Barata, que, todos, enxergaram sob o verniz retórico do processo emancipador a mera transferência para o Rio da antiga dominação exercida de Lisboa.
Mas "Corcundas e Constitucionais" vai às raízes do fenômeno, vale dizer, do envergonhado iluminismo português, que, misturando secularização, pragmatismo e catolicismo, constituiu o quadro de referências em que se criou a elite brasileira que empreitou a Independência. Nesse particular, a obra começa retificando um erro de ótica comum no Brasil, o de associar exclusivamente o iluminismo português ao período pombalino. Como assinala a autora, "Pombal adotou uma política muito mais regalista do que propriamente esclarecida", mas, ao fazê-lo, permitiu que "as Luzes se difundissem em Portugal, ainda que de um modo bastante atenuado".

Ilustrados luso-brasileiros
A ascensão de d. Maria 1ª ao trono, a chamada Viradeira, não foi apenas a revanche aristocrática e eclesiástica sobre o pombalismo, mas preservou elementos vitais da anterior política e até os desenvolveu, como na criação da Academia Real de Ciências (1779), que desempenhou papel fundamental na formação da elite brasileira da Independência; e como o surgimento de um arremedo de esfera pública, sob a forma de lojas maçônicas, sociedades literárias, clubes e cafés.
Essa atmosfera nutriu a concepção de um império luso-brasileiro, que estrangeirados da primeira metade do século 18, d. Luís da Cunha e o conde da Silva Tarouca, haviam entrevisto como a maneira de reequilibrar a posição de Portugal na Península Ibérica e na Europa.
Com d. Rodrigo de Sousa Coutinho, que fez a ligação entre aquele projeto e o dos reformadores de finais de Setecentos e começos de Oitocentos, o objetivo mudou, como resultado da emancipação dos Estados Unidos e da Revolução Francesa, passando a ser o de salvaguardar o sistema econômico luso-brasileiro, mantendo a especialização de funções pela qual à metrópole caberia o papel comercial e, à colônia, o produtivo, com a diferença que o Brasil ficaria livre das restrições do regime colonial.
Nesse propósito, d. Rodrigo patrocinou um grupo de ilustrados luso-brasileiros, o mais conspícuo dos quais foi obviamente José Bonifácio. O tema é, aliás, desses que vêm oportunamente atraindo a atenção dos estudiosos desde que Kenneth Maxwell publicou seu ensaio (e já lá se vão 30 anos) sobre a geração de 1790 e a idéia de império luso-brasileiro, cabendo ressaltar a contribuição de Maria de Lourdes Viana Lyra em seu "A Utopia do Poderoso Império" (1994).
"Corcundas e Constitucionais" está vertebrado em torno da distinção entre o que a autora designa por elite coimbrã e por elite brasiliense, os dois grupos que fizeram a Independência. O primeiro, composto de ex-estudantes da Universidade de Coimbra, que das margens do Mondego haviam transitado para funções públicas, era pragmaticamente reformista e timidamente liberal, pois o espetáculo da França dos primeiros anos 90 os tornara especialmente sensíveis ao potencial revolucionário de mudanças que, de começo inofensivamente políticas ou administrativas, logo adquiriam um conteúdo virulentamente hostil à ordem social, o caso, além do de José Bonifácio, de José da Silva Lisboa, o futuro Cairu, que, embebido na leitura de Burke, enxergava jacobinos por todos os lados.
Quanto aos membros da elite brasiliense, que não tinham alisado os bancos universitários, como se dizia antigamente, e se haviam, bem ou mal, instruído na colônia, donde a maioria de sacerdotes que encontramos nas suas fileiras, sensíveis muitas vezes ao radicalismo político e até ao republicanismo, serão a ponta-de-lança da separação do Brasil, desfecho que o grupo coimbrão se verá na contingência de aceitar. Nossa emancipação resultou assim da interação entre os ilustrados portugueses, que em 1820 promoveram a revolução constitucionalista do Porto, a elite coimbrã e a elite brasiliense, as quais se aproveitaram das brechas abertas pelo Vintismo na fortaleza do Antigo Regime.
A distinção entre coimbrães e brasilienses é basicamente uma diferença no interior da mesma cultura política, embora, como indica a autora, não faltassem nem matizes sociológicos nem transferências individuais entre os dois grupos. Foi a Independência que, acirrando as divergências potenciais, fê-las desaguar no conflito entre o autoritarismo dos Andradas e dos seus aliados e o liberalismo da maçonaria fluminense, os primeiros céticos acerca da estabilidade de uma monarquia em que o imperador não exercesse supremacia sobre o poder legislativo; os outros, conscientes de que tal sistema, na melhor das hipóteses, degeneraria no tão depreciado "despotismo ministerial".

Postura moderada
Em 1822, os rumos resolutamente liberais, acoplados à insensibilidade pela "questão brasileira", que marcaram as deliberações das cortes de Lisboa, alienaram-lhe as simpatias do grupo coimbrão, em benefício do grupo brasiliense, que pôde assim impor-se ao regente e a José Bonifácio, induzindo-os a uma série de concessões políticas. O Fico teve a cooperação das duas elites, mas a convocação da Constituinte e o juramento prévio por d. Pedro da Constituição a ser elaborada foram inegáveis triunfos, se bem que efêmeros, dos liberais fluminenses.
Só a reação desencadeada pelo bonifacismo, uma vez oficializada a separação do Brasil mediante a aclamação do regente como imperador, permitirá reverter o processo, levando-o em 1823 à dissolução da Constituinte, reversão de que os Andradas serão, aliás, as primeiras vítimas. Como assinala a autora, "vencera a postura mais moderada da elite coimbrã, com a instalação de um Estado cuja concepção não se afastava tanto das práticas do absolutismo ilustrado".
A Independência representou assim a conversão da elite coimbrã, que trocou "o sonho distante de um império luso-brasileiro pela realidade palpável do império brasileiro". Contudo, e esse é o aporte igualmente valioso de "Corcundas e Constitucionais", não foi fácil nem a ela nem até mesmo à elite brasiliense digerir a ruptura, o que constitui o aspecto mais surpreendente da nossa emancipação.
A despeito da maioria de deputados às cortes de Lisboa que tentou até o último momento salvar o Reino Unido mediante uma fórmula de compromisso, a liderança integracionista dos Fernandes Tomás e dos Borges Carneiros aceitou a separação com menor relutância e até com certo desafogo ("Passe bem, senhor Brasil!") do que os independentistas do Rio. A historiografia da Independência acostumou-se a interpretar como puramente tática a tendência do governo de d. Pedro de negar, ao longo de quase todo o ano de 1822, seus objetivos separatistas, atribuindo-a ao temor de uma expedição portuguesa e ao desejo de não antagonizar a Santa Aliança.
O livro de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves leva à conclusão de que as hesitações foram muito mais autênticas do que se havia imaginado. Assim é que, "antes de 1822, não foi possível encontrar a divulgação de obra alguma a favor da separação da antiga colônia de sua metrópole". Mais: "Em fins de 1821 e princípios de 1822, ao contrário do que poderia sugerir uma interpretação tradicional da Independência -preocupada em auscultar os primeiros vagidos de um dissimulado sentimento nacionalista-, as idéias favoráveis à emancipação do Brasil, nos moldes em que se daria em seguida, encontravam-se completamente ausentes do debate político".
A permanência do regente no Brasil contra as ordens das cortes não foi vista, como poderia parecer superficialmente, como uma decisão secessionista; pelo contrário, foi encarada como a melhor maneira de preservar a união dos dois reinos. As convocações do Conselho de Procuradores em fevereiro e da Constituinte em junho foram justificadas como medidas destinadas a evitar o esfacelamento do império luso-brasileiro. Os impressos e gazetas fluminenses ainda defendiam em meados de 1822 a indivisibilidade do Reino Unido. O decreto de 1º de agosto e os manifestos daquele mês, um redigido por Gonçalves Ledo, outro por José Bonifácio, protestavam, diante do mundo e do Brasil, a intenção de manter os laços políticos e econômicos entre os dois lados do Atlântico.


Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor, entre outros livros, de "Um Imenso Portugal" (ed. 34).

Corcundas e Constitucionais
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Ed. Revan
(Tel. 0/xx/21/2502-7495)
478 págs., R$ 40,00


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