|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
As relações entre o Rio e a coroa portuguesa no século 18
A cidade sitiada
MILTON OHATA
O livro de Maria Fernanda Bicalho ["A
Cidade e o Império"] veio para ficar. Não
somente pela extensa documentação que
lhe serve de apoio, consultada em arquivos brasileiros, portugueses e franceses,
mas sobretudo pela análise das relações
político-estratégicas entre a cidade do
Rio e a coroa portuguesa no século 18. O
antigo sistema colonial, uma das alavancas do capitalismo, aparece aqui menos
como uma estrutura rígida e mais como
um delicado equilíbrio de forças em
constante mutação. Por isso, a autora tem
preferência pelos pontos em que o sistema faz água e mostra suas vulnerabilidades internas e externas. Perpassando tudo, sentido por grandes e pequenos personagens, o medo de que a sua já precária
rotina venha a desmoronar.
"A Cidade e o Império" é dividido em
três partes, nas quais se desdobra uma
grande amplitude de temas, fato que na
arquitetura geral às vezes provoca uma
certa indecisão expositiva. Na primeira
parte predomina a noção de conjuntura
histórica, e a análise "trata da dinâmica
colonial portuguesa no contexto das relações internacionais que marcaram a política européia e o acirramento da disputa
ultramarina".
Assim, acontecimentos como a ocupação do Rio pelos franceses, em 1711, são
vistos num quadro mais amplo de tensões, em que Portugal se ampara cada vez
mais no crescente poderio da Inglaterra,
ao mesmo tempo em que é acossada pela
Espanha, estrela cadente no cenário
mundial, e pela França, principal rival da
Inglaterra no continente. A escalada dos
conflitos internacionais culmina com a
Guerra dos Sete Anos (1756-1763), polarizada pelas duas grandes potências européias, arrastando para a contenda os países ibéricos, bem como suas antigas colônias e feitorias espalhadas pelo mundo.
Nesse ponto, a autora fez um verdadeiro achado num fundo de arquivo francês:
em 1762, pouco antes do fim da guerra,
Paris alimentava planos de ocupar novamente a cidade do Rio para barganhar
com a Inglaterra em melhores condições.
De fato, ao historiador cabe não apenas
narrar o que aconteceu, mas também levar em conta o que poderia ter acontecido. Especialmente no campo da história
política e diplomática, como notou recentemente Evaldo Cabral de Mello, os
temas "prestam-se idealmente às análises
contrafatuais visando às possibilidades
alternativas dos processos históricos"
("O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669").
À luz desse permanente clima de ameaça internacional, ganha mais sentido um
acontecimento que veio conferir peso político a uma cidade cuja importância econômica, graças a sua função de porto escoador do ouro das Minas Gerais, estava
à vista de todos: a transferência da capital
do Estado do Brasil para São Sebastião do
Rio de Janeiro em 1763. O fato porém não
garantia nada, porquanto ainda no plano
das ameaças externas o lobo também poderia estar na pele do cordeiro: a autora
ressalta que nos estertores do antigo sistema colonial a hegemonia econômica
inglesa, consolidada após o fim da guerra, tentava furar por meio do contrabando o monopólio real do comércio na
América portuguesa, inclusive com a colaboração dos próprios colonos.
Assim, os conflitos internacionais em
que Portugal se encontrava metido fazia
com que a defesa do seu ultramar se tornasse a maior prioridade para Lisboa. A
descrição desses processos prepara o caminho para a segunda parte do livro, centrada no papel estratégico-militar das cidades coloniais do império português.
Aqui, vale notar a discussão com Sérgio
Buarque de Holanda acerca da natureza
urbanística das vilas da América portuguesa, que teriam se desenvolvido com
um certo desleixo, por oposição ao planejamento geométrico das cidades coloniais espanholas.
Geopolítica do império
A autora argumenta que o modelo de
Sérgio Buarque e Holanda tende a se modificar durante o século 18, aproximando-se do que foi adotado nas Índias de
Castela e do gosto urbanístico internacional da época, devido principalmente às
necessidades de defesa militar. Estas são
analisadas à luz da posição que o Rio vai
aos poucos tomando na geopolítica do
império português, desde a retomada de
Angola por Salvador de Sá em 1648 (vitória crucial para a economia atlântica lusitana e, por conseguinte, para a sobrevivência do próprio reino), passando pelo
papel de retaguarda indispensável na
longa série de conflitos platinos com os
espanhóis até firmar-se como pivô da
economia do ouro.
Afinando a escala de observação, narrando acontecimentos no chão do cotidiano administrativo, a autora mostra
que tamanhos encargos estratégicos nem
sempre eram satisfeitos pela precariedade de meios à disposição, provocando
tensões sociais entre funcionários, colonos e, inclusive, escravos.
Assim, num equilíbrio frágil, os primeiros poderiam até vir a trocar de vassalagem e servir a outro rei. Mas o sistema revelou suas entranhas notadamente durante as invasões francesas (1710-1711).
"A participação dos negros nos episódios
das duas invasões é bastante curiosa. Embora, como afirmam alguns relatos, lutassem bravamente na defesa da cidade
ao lado dos portugueses, aproveitavam
aquelas ocasiões para irem à desforra
contra seus senhores."
Creio que o ponto alto do livro é sua terceira e última parte, onde o assunto é, em
resumo, a margem de manobra dos colonos dentro do sistema colonial -margem que nunca é dada a priori, mas sempre marcada por condições históricas específicas. Ao tratar das relações entre poder local e poder central, Bicalho faz coro
com o Evaldo Cabral de Mello de "A
Fronda dos Mazombos", que por sua vez
valeu-se bastante do trabalho do historiador português Antonio Hespanha, para
quem (acertadamente) é anacrônico aplicar às relações políticas do Antigo Regime o padrão que vai amadurecer mais
tarde no Estado Nacional novecentista,
cujo grau de centralização é muito maior.
Do século 16 ao 18, prevaleceu uma relativa autonomia dos poderes locais em
relação aos centrais e, mais que hoje, o
dia-a-dia da política foi preenchido pelo
que a literatura especializada vem chamando de "economia moral do dom", a
rede e a contabilidade do clientelismo.
Contudo a autora sabe que essas formas
de relacionamento entre coroa e vassalos
tinham especificidades quando transpostas para o Novo Mundo. Nesse sentido,
identifica contradições entre a economia
de favores e as necessidades da colonização, no caso, a defesa da terra.
Noutro plano, a linguagem da economia de favores, própria de uma sociedade
em que as desigualdades eram vistas como um fenômeno estático e natural, serve à classe de colonos que se constituíra e
ascendera no Brasil, não tendo nenhum
vínculo com a nobreza do reino.
Para terminar, gostaria de apenas tocar
em um ponto que a meu ver torna atual
este livro que fala de coisas que se passaram há mais de dois séculos. Refiro-me às
influências teóricas da autora. De saída, é
visível a presença de Charles Boxer, o
principal conhecedor da história do império lusitano, cujo "Portuguese Society
in the Tropics" (1965), estudo pioneiro
sobre as câmaras municipais no ultramar
português, ganha agora um substancioso
reforço. O leitor de Michel Foucault notará sua sombra na segunda parte do livro,
mas principalmente um pouco por todo
ele. No caso, por intermédio do grupo de
historiadores que tem dado o tom nos estudos sobre o Antigo Regime em Portugal e que tem seu grão-mestre na pessoa
de Antonio Hespanha.
Ignoro os acasos que levaram Hespanha a usar tão fecundamente o esquema
da dispersão dos poderes, uma das marcas registradas de Foucault, na análise
das relações políticas do Portugal seiscentista.
Consciente ou não, no fato ecoam dinâmicas contemporâneas poderosas, supranacionais, que levaram a uma redefinição completa do Estado português no
quadro da unificação européia e das mudanças estruturais do capitalismo. No caso de Portugal, com a devolução de Macau à China em 1999, acabou-se para
sempre seu antigo império, e o país se
volta cada vez mais para o continente.
Mundo afora, desgarrando-se ao longo
dos séculos, restaram as ex-colônias, que
ainda se encontram às voltas com as tarefas, bastante espinhosas nos dias que correm, de construções nacionais que ficaram incompletas. Durante algum tempo,
o Rio foi o catalisador desse processo em
nosso país, verdadeiro laboratório de
uma possível civilização brasileira.
Carioca da gema, Bicalho sabe entretanto que não pode errar por anacronismo e, ao estudar o Rio do século 18, nota
que a máquina da colonização, peça-chave do capitalismo comercial, não existiu
para criar na baía de Guanabara uma cidade em que homem e natureza se harmonizassem ao sol dos trópicos. Cavando no passado, reencontrou talvez as raízes que fizeram o problema do presente.
Milton Ohata é doutorando em história social na
USP.
A Cidade e o Império O Rio de Janeiro no Século 18
Maria Fernanda Bicalho
Civilização Brasileira
(Tel.0/xx/21/2585-2047)
492 págs., R$ 42,00
Texto Anterior: Iluminismo envergonhado Próximo Texto: Espelho do Brasil Índice
|