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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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As relações entre o Rio e a coroa portuguesa no século 18

A cidade sitiada

MILTON OHATA

O livro de Maria Fernanda Bicalho ["A Cidade e o Império"] veio para ficar. Não somente pela extensa documentação que lhe serve de apoio, consultada em arquivos brasileiros, portugueses e franceses, mas sobretudo pela análise das relações político-estratégicas entre a cidade do Rio e a coroa portuguesa no século 18. O antigo sistema colonial, uma das alavancas do capitalismo, aparece aqui menos como uma estrutura rígida e mais como um delicado equilíbrio de forças em constante mutação. Por isso, a autora tem preferência pelos pontos em que o sistema faz água e mostra suas vulnerabilidades internas e externas. Perpassando tudo, sentido por grandes e pequenos personagens, o medo de que a sua já precária rotina venha a desmoronar.
"A Cidade e o Império" é dividido em três partes, nas quais se desdobra uma grande amplitude de temas, fato que na arquitetura geral às vezes provoca uma certa indecisão expositiva. Na primeira parte predomina a noção de conjuntura histórica, e a análise "trata da dinâmica colonial portuguesa no contexto das relações internacionais que marcaram a política européia e o acirramento da disputa ultramarina".
Assim, acontecimentos como a ocupação do Rio pelos franceses, em 1711, são vistos num quadro mais amplo de tensões, em que Portugal se ampara cada vez mais no crescente poderio da Inglaterra, ao mesmo tempo em que é acossada pela Espanha, estrela cadente no cenário mundial, e pela França, principal rival da Inglaterra no continente. A escalada dos conflitos internacionais culmina com a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), polarizada pelas duas grandes potências européias, arrastando para a contenda os países ibéricos, bem como suas antigas colônias e feitorias espalhadas pelo mundo.
Nesse ponto, a autora fez um verdadeiro achado num fundo de arquivo francês: em 1762, pouco antes do fim da guerra, Paris alimentava planos de ocupar novamente a cidade do Rio para barganhar com a Inglaterra em melhores condições. De fato, ao historiador cabe não apenas narrar o que aconteceu, mas também levar em conta o que poderia ter acontecido. Especialmente no campo da história política e diplomática, como notou recentemente Evaldo Cabral de Mello, os temas "prestam-se idealmente às análises contrafatuais visando às possibilidades alternativas dos processos históricos" ("O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669").
À luz desse permanente clima de ameaça internacional, ganha mais sentido um acontecimento que veio conferir peso político a uma cidade cuja importância econômica, graças a sua função de porto escoador do ouro das Minas Gerais, estava à vista de todos: a transferência da capital do Estado do Brasil para São Sebastião do Rio de Janeiro em 1763. O fato porém não garantia nada, porquanto ainda no plano das ameaças externas o lobo também poderia estar na pele do cordeiro: a autora ressalta que nos estertores do antigo sistema colonial a hegemonia econômica inglesa, consolidada após o fim da guerra, tentava furar por meio do contrabando o monopólio real do comércio na América portuguesa, inclusive com a colaboração dos próprios colonos.
Assim, os conflitos internacionais em que Portugal se encontrava metido fazia com que a defesa do seu ultramar se tornasse a maior prioridade para Lisboa. A descrição desses processos prepara o caminho para a segunda parte do livro, centrada no papel estratégico-militar das cidades coloniais do império português. Aqui, vale notar a discussão com Sérgio Buarque de Holanda acerca da natureza urbanística das vilas da América portuguesa, que teriam se desenvolvido com um certo desleixo, por oposição ao planejamento geométrico das cidades coloniais espanholas.

Geopolítica do império
A autora argumenta que o modelo de Sérgio Buarque e Holanda tende a se modificar durante o século 18, aproximando-se do que foi adotado nas Índias de Castela e do gosto urbanístico internacional da época, devido principalmente às necessidades de defesa militar. Estas são analisadas à luz da posição que o Rio vai aos poucos tomando na geopolítica do império português, desde a retomada de Angola por Salvador de Sá em 1648 (vitória crucial para a economia atlântica lusitana e, por conseguinte, para a sobrevivência do próprio reino), passando pelo papel de retaguarda indispensável na longa série de conflitos platinos com os espanhóis até firmar-se como pivô da economia do ouro.
Afinando a escala de observação, narrando acontecimentos no chão do cotidiano administrativo, a autora mostra que tamanhos encargos estratégicos nem sempre eram satisfeitos pela precariedade de meios à disposição, provocando tensões sociais entre funcionários, colonos e, inclusive, escravos.
Assim, num equilíbrio frágil, os primeiros poderiam até vir a trocar de vassalagem e servir a outro rei. Mas o sistema revelou suas entranhas notadamente durante as invasões francesas (1710-1711). "A participação dos negros nos episódios das duas invasões é bastante curiosa. Embora, como afirmam alguns relatos, lutassem bravamente na defesa da cidade ao lado dos portugueses, aproveitavam aquelas ocasiões para irem à desforra contra seus senhores."
Creio que o ponto alto do livro é sua terceira e última parte, onde o assunto é, em resumo, a margem de manobra dos colonos dentro do sistema colonial -margem que nunca é dada a priori, mas sempre marcada por condições históricas específicas. Ao tratar das relações entre poder local e poder central, Bicalho faz coro com o Evaldo Cabral de Mello de "A Fronda dos Mazombos", que por sua vez valeu-se bastante do trabalho do historiador português Antonio Hespanha, para quem (acertadamente) é anacrônico aplicar às relações políticas do Antigo Regime o padrão que vai amadurecer mais tarde no Estado Nacional novecentista, cujo grau de centralização é muito maior.
Do século 16 ao 18, prevaleceu uma relativa autonomia dos poderes locais em relação aos centrais e, mais que hoje, o dia-a-dia da política foi preenchido pelo que a literatura especializada vem chamando de "economia moral do dom", a rede e a contabilidade do clientelismo. Contudo a autora sabe que essas formas de relacionamento entre coroa e vassalos tinham especificidades quando transpostas para o Novo Mundo. Nesse sentido, identifica contradições entre a economia de favores e as necessidades da colonização, no caso, a defesa da terra.
Noutro plano, a linguagem da economia de favores, própria de uma sociedade em que as desigualdades eram vistas como um fenômeno estático e natural, serve à classe de colonos que se constituíra e ascendera no Brasil, não tendo nenhum vínculo com a nobreza do reino.
Para terminar, gostaria de apenas tocar em um ponto que a meu ver torna atual este livro que fala de coisas que se passaram há mais de dois séculos. Refiro-me às influências teóricas da autora. De saída, é visível a presença de Charles Boxer, o principal conhecedor da história do império lusitano, cujo "Portuguese Society in the Tropics" (1965), estudo pioneiro sobre as câmaras municipais no ultramar português, ganha agora um substancioso reforço. O leitor de Michel Foucault notará sua sombra na segunda parte do livro, mas principalmente um pouco por todo ele. No caso, por intermédio do grupo de historiadores que tem dado o tom nos estudos sobre o Antigo Regime em Portugal e que tem seu grão-mestre na pessoa de Antonio Hespanha.
Ignoro os acasos que levaram Hespanha a usar tão fecundamente o esquema da dispersão dos poderes, uma das marcas registradas de Foucault, na análise das relações políticas do Portugal seiscentista.
Consciente ou não, no fato ecoam dinâmicas contemporâneas poderosas, supranacionais, que levaram a uma redefinição completa do Estado português no quadro da unificação européia e das mudanças estruturais do capitalismo. No caso de Portugal, com a devolução de Macau à China em 1999, acabou-se para sempre seu antigo império, e o país se volta cada vez mais para o continente.
Mundo afora, desgarrando-se ao longo dos séculos, restaram as ex-colônias, que ainda se encontram às voltas com as tarefas, bastante espinhosas nos dias que correm, de construções nacionais que ficaram incompletas. Durante algum tempo, o Rio foi o catalisador desse processo em nosso país, verdadeiro laboratório de uma possível civilização brasileira.
Carioca da gema, Bicalho sabe entretanto que não pode errar por anacronismo e, ao estudar o Rio do século 18, nota que a máquina da colonização, peça-chave do capitalismo comercial, não existiu para criar na baía de Guanabara uma cidade em que homem e natureza se harmonizassem ao sol dos trópicos. Cavando no passado, reencontrou talvez as raízes que fizeram o problema do presente.


Milton Ohata é doutorando em história social na USP.

A Cidade e o Império O Rio de Janeiro no Século 18
Maria Fernanda Bicalho
Civilização Brasileira
(Tel.0/xx/21/2585-2047)
492 págs., R$ 42,00


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