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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Espelho do Brasil

LUIZ CARLOS VILLALTA

É senso comum, na atualidade, que os livros são uma fonte de saber para seus leitores, saber requerido para o exercício profissional e/ou útil para a vivência da religiosidade, motivo de recreio, de deleites os mais diversos. Na mídia, além disso, o livro vem associado ao prestígio: nas revistas populares, vemos apresentadoras de TV, socialites etc. sentadas em suas "bibliotecas", com um livro nas mãos, em situações inteiramente "fakes"... Figuras que dominaram a cena política frequentemente associaram suas imagens aos livros, cultivando um imaginário que vincula o acesso ao poder à "competência", aos saberes livrescos, algumas vezes referindo-se explicitamente aos livros.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, renomado cientista social, foi reverenciado por expoentes dos partidos e grupos conservadores, pela própria mídia, como uma personalidade cujos dotes intelectuais, livros e escritos davam uma aura especial à Presidência e ao país, causando "excelente impressão" no exterior.
"A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis" mostra-nos uma imagem similar à do presidente "adereço da nação" que acabamos de evocar. Ao narrar a "pré-história" da Biblioteca Nacional -explicando sua constituição a partir da Biblioteca dos Reis Portugueses, tornando-se, em 1822, Biblioteca Imperial e, em 1876, Nacional-, revela-nos que, nos idos da Independência, a biblioteca se converteu rapidamente "numa espécie de espelho e demonstração". A biblioteca mostrava que "o Brasil, recém-independente, possuía a melhor biblioteca do Novo Mundo e quiçá um exemplo para o Velho Continente. Quase como adereço, prova de erudição, nossa Livraria ganhava lugar na representação dessa nação, que lutava para se afirmar como tal".
"A Longa Viagem", por pensar as bibliotecas, os livros, a leitura, os saberes livrescos, inscrevendo-os em estratégias de poder protagonizadas pelos que controlaram o aparelho de Estado, nos leva também a outra viagem, mais propriamente historiográfica. Ao evidenciar o uso da Biblioteca dos Reis Portugueses como ornamento-emblema do poder monárquico, afina-se com as preocupações encontradas na historiografia mais recente sobre o livro e a leitura e, simultaneamente, trata os dilemas centrais de nossa história política, da emergência do Brasil como Estado imperial e politicamente independente.
Com iconografia rica, que impressiona pela qualidade, quantidade e novidades que apresenta; baseado em ampla pesquisa bibliográfica e de fontes primárias, com uma linguagem fácil e acessível, "A Longa Viagem" percorre o caminho da Biblioteca dos Reis Portugueses, antes e depois do terremoto de Lisboa de 1755, situando sua reconstituição, após a destruição provocada pelo sismo, como parte do esforço da Coroa no sentido de imprimir novos rumos a Portugal.
Focaliza as vicissitudes dessa história, numa conjuntura revolucionária aberta pela Independência dos EUA, radicalizada pela Revolução Francesa e pela expansão napoleônica, perseguindo-as a partir de um recorte dado pela história dos reinados de dom José 1º, dona Maria 1ª e de dom João 6º, chegando à Independência e aos anos iniciais do reinado de Pedro 1º. Esforços de recomposição do acervo, instituição da Real Biblioteca do Palácio da Ajuda (distinta da Biblioteca do Infantado, que servia aos infantes), criação da Biblioteca Pública, transferência, em levas sucessivas em 1810-1811, do acervo da Real Biblioteca do Palácio da Ajuda para o Rio de Janeiro, com a vinda da corte e, após a Independência, indenização à coroa portuguesa pela manutenção da biblioteca no Brasil (no valor de 800 contos de réis) -todas essas transformações aparecem no livro, mais as particularidades e os desafios cotidianos do trabalho de bibliotecários, em meio às mudanças das prioridades e das pessoas no postos de governo.
"A Longa Viagem", é verdade, contém alguns problemas, que não chegam a comprometê-la: repetições de informações no texto principal, conflitos entre esse e as legendas das imagens (em alguns casos, trocadas e incompletas), imagens cuja riqueza poderia ser mais explorada e alguns equívocos factuais (data, informação, classificação de obras etc.), em parte reproduzidos de terceiros.
Pode frustrar, ademais, aqueles que esperam a abordagem das práticas de leitura e das apropriações dos livros pelos leitores. Em sua defesa, deve-se dizer que não faz mais do que cumprir o que promete e, ainda, que não foi além porque encontrou limites intransponíveis: se dá preeminência à política, isso se explica por seu propósito de examinar uma política monárquica que tem por alvo bibliotecas pertencentes à coroa; se traz apenas menções esporádicas aos usos da biblioteca pelos leitores, se não mergulha no campo práticas de leitura e das apropriações dos conteúdos dos livros, isso se dá porque esses são campos dos mais inacessíveis aos historiadores.
Uma curiosidade, entretanto, sobrevive a essas alegações: os livros da Real Biblioteca foram fonte de algum conhecimento porventura perturbador? Por exemplo, teria d. Pedro 1º retirado da Real Biblioteca o "Cândido", de Voltaire, onde leu que, entre "seis diferentes personagens que foram passar o Carnaval em Veneza", há uma que diz: "Eu sou o rei fulano, que, por ter perdido isto e aquilo, vim passar o Carnaval em Veneza", episódio em razão do qual, em 1830, afirmava o imperador: "Eu não quero dizer, se me perguntarem: fui o imperador fulano do B. que por tolo vim passar o Carnaval nos Estados Unidos"?
"A Longa Viagem" contribui para minar os preconceitos políticos assentados no prestígio ornamental do livro, ainda fortes neste nosso mundo "prêt-a-porter", do universo fashion à arena política, e, por isso, nos leva a questionamentos sobre a política cultural do presente. A Presidência da República passou das mãos do sociólogo renomado, autor de vários livros, para um líder operário, cujo acesso ao poder foi barrado anteriormente, em parte por causa dos preconceitos que associavam exercício do poder, "competência", "saber" e "livros": essa mudança implicará uma nova política do Estado para as bibliotecas públicas, rompendo-se com o uso ornamental do livro, de que é herdeira a constituição da Biblioteca Nacional? Aqueles que, à semelhança do presidente Lula, ficaram à margem da escolaridade formal e do universo livresco, serão alvos de uma ousada política de inclusão cultural?


Luiz Carlos Villalta é professor de história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis Do Terremoto de Lisboa à Independência do Brasil
Lilia Moritz Schwarcz, Paulo César Azevedo e Ângela Marques da Costa
Companhia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3707-3500)
560 págs., R$ 49,50


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