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Espelho do Brasil
LUIZ CARLOS VILLALTA
É senso comum, na atualidade, que os livros são uma fonte de
saber para seus leitores, saber requerido para o exercício profissional e/ou útil para a vivência da religiosidade, motivo de recreio, de deleites os mais diversos. Na mídia, além disso, o livro
vem associado ao prestígio: nas revistas populares, vemos apresentadoras de TV, socialites etc. sentadas em suas "bibliotecas",
com um livro nas mãos, em situações inteiramente "fakes"... Figuras que dominaram a cena política frequentemente associaram suas imagens aos livros, cultivando um imaginário que
vincula o acesso ao poder à "competência", aos saberes livrescos, algumas vezes referindo-se explicitamente aos livros.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, renomado
cientista social, foi reverenciado por expoentes dos partidos e
grupos conservadores, pela própria mídia, como uma personalidade cujos dotes intelectuais, livros e escritos davam uma aura
especial à Presidência e ao país, causando "excelente impressão" no exterior.
"A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis" mostra-nos uma
imagem similar à do presidente "adereço da nação" que acabamos de evocar. Ao narrar a "pré-história" da Biblioteca Nacional -explicando sua constituição a partir da Biblioteca dos
Reis Portugueses, tornando-se, em 1822, Biblioteca Imperial e,
em 1876, Nacional-, revela-nos que, nos idos da Independência, a biblioteca se converteu rapidamente "numa espécie de espelho e demonstração". A biblioteca mostrava que "o Brasil, recém-independente, possuía a melhor biblioteca do Novo Mundo e quiçá um exemplo para o Velho Continente. Quase como
adereço, prova de erudição, nossa Livraria ganhava lugar na representação dessa nação, que lutava para se afirmar como tal".
"A Longa Viagem", por pensar as bibliotecas, os livros, a leitura, os saberes livrescos, inscrevendo-os em estratégias de poder
protagonizadas pelos que controlaram o aparelho de Estado,
nos leva também a outra viagem, mais propriamente historiográfica. Ao evidenciar o uso da Biblioteca dos Reis Portugueses
como ornamento-emblema do poder monárquico, afina-se
com as preocupações encontradas na historiografia mais recente sobre o livro e a leitura e, simultaneamente, trata os dilemas
centrais de nossa história política, da emergência do Brasil como Estado imperial e politicamente independente.
Com iconografia rica, que impressiona pela qualidade, quantidade e novidades que apresenta; baseado em ampla pesquisa
bibliográfica e de fontes primárias, com uma linguagem fácil e
acessível, "A Longa Viagem" percorre o caminho da Biblioteca
dos Reis Portugueses, antes e depois do terremoto de Lisboa de
1755, situando sua reconstituição, após a destruição provocada
pelo sismo, como parte do esforço da Coroa no sentido de imprimir novos rumos a Portugal.
Focaliza as vicissitudes dessa história, numa conjuntura revolucionária aberta pela Independência dos EUA, radicalizada pela Revolução Francesa e pela expansão napoleônica, perseguindo-as a partir de um recorte dado pela história dos reinados de
dom José 1º, dona Maria 1ª e de dom João 6º, chegando à Independência e aos anos iniciais do reinado de Pedro 1º. Esforços
de recomposição do acervo, instituição da Real Biblioteca do
Palácio da Ajuda (distinta da Biblioteca do Infantado, que servia aos infantes), criação da Biblioteca Pública, transferência,
em levas sucessivas em 1810-1811, do acervo da Real Biblioteca
do Palácio da Ajuda para o Rio de Janeiro, com a vinda da corte
e, após a Independência, indenização à coroa portuguesa pela
manutenção da biblioteca no Brasil (no valor de 800 contos de
réis) -todas essas transformações aparecem no livro, mais as
particularidades e os desafios cotidianos do trabalho de bibliotecários, em meio às mudanças das prioridades e das pessoas
no postos de governo.
"A Longa Viagem", é verdade, contém alguns problemas, que
não chegam a comprometê-la: repetições de informações no
texto principal, conflitos entre esse e as legendas das imagens
(em alguns casos, trocadas e incompletas), imagens cuja riqueza poderia ser mais explorada e alguns equívocos factuais (data,
informação, classificação de obras etc.), em parte reproduzidos
de terceiros.
Pode frustrar, ademais, aqueles que esperam a abordagem
das práticas de leitura e das apropriações dos livros pelos leitores. Em sua defesa, deve-se dizer que não faz mais do que cumprir o que promete e, ainda, que não foi além porque encontrou
limites intransponíveis: se dá preeminência à política, isso se
explica por seu propósito de examinar uma política monárquica que tem por alvo bibliotecas pertencentes à coroa; se traz
apenas menções esporádicas aos usos da biblioteca pelos leitores, se não mergulha no campo práticas de leitura e das apropriações dos conteúdos dos livros, isso se dá porque esses são
campos dos mais inacessíveis aos historiadores.
Uma curiosidade, entretanto, sobrevive a essas alegações: os
livros da Real Biblioteca foram fonte de algum conhecimento
porventura perturbador? Por exemplo, teria d. Pedro 1º retirado da Real Biblioteca o "Cândido", de Voltaire, onde leu que,
entre "seis diferentes personagens que foram passar o Carnaval
em Veneza", há uma que diz: "Eu sou o rei fulano, que, por ter
perdido isto e aquilo, vim passar o Carnaval em Veneza", episódio em razão do qual, em 1830, afirmava o imperador: "Eu não
quero dizer, se me perguntarem: fui o imperador fulano do B.
que por tolo vim passar o Carnaval nos Estados Unidos"?
"A Longa Viagem" contribui para minar os preconceitos políticos assentados no prestígio ornamental do livro, ainda fortes
neste nosso mundo "prêt-a-porter", do universo fashion à arena política, e, por isso, nos leva a questionamentos sobre a política cultural do presente. A Presidência da República passou
das mãos do sociólogo renomado, autor de vários livros, para
um líder operário, cujo acesso ao poder foi barrado anteriormente, em parte por causa dos preconceitos que associavam
exercício do poder, "competência", "saber" e "livros": essa mudança implicará uma nova política do Estado para as bibliotecas públicas, rompendo-se com o uso ornamental do livro, de
que é herdeira a constituição da Biblioteca Nacional? Aqueles
que, à semelhança do presidente Lula, ficaram à margem da escolaridade formal e do universo livresco, serão alvos de uma
ousada política de inclusão cultural?
Luiz Carlos Villalta é professor de história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis Do Terremoto de Lisboa à Independência do Brasil
Lilia Moritz Schwarcz, Paulo César Azevedo e Ângela Marques da Costa
Companhia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3707-3500)
560 págs., R$ 49,50
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