UOL


São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma história política da Ilustração

O espaço das Luzes

CARLOS ALBERTO ZERON

Ao tentar sintetizar o pensamento das Luzes em "L'Europa del Settecento", Luciano Guerci afirmou a existência de "grandes diferenças de país a país, grandes diferenças entre os homens e grupos de homens de um mesmo país, oscilações e ambiguidades no interior de uma mesma pessoa. Em suma, o fenômeno "Iluminismo" aparece ao mesmo tempo intrincado, fugidio e multiforme, desencorajando quem procurar tomá-lo inteiro e individualizar os traços unificadores".
Sua postura pode ser generalizada como a tendência dominante na historiografia sobre o Iluminismo nos últimos 20 anos, que procurou sobretudo identificar tendências dentro do pensamento iluminista ou enfocá-lo sob o ângulo do contexto nacional ou provincial (poderíamos referirmo-nos, a título de exemplo, aos trabalhos de M.C. Jacob, Robert Darnton e Daniel Roche). Tais enfoques opõem-se àquele que engendrou, durante a década de 1960, as grandes sínteses de Peter Gay, Fritz Valjavec e Franco Venturi.
Em "Settecento Riformatori" (1969-1990), Venturi faz um grande painel sobre um período no qual o movimento reformador se difundiu no interior dos Estados italianos, colocando em crise as instituições, a cultura e a base econômico-social da sociedade do Antigo Regime. A perspectiva italocêntrica prevalecente nos dois primeiros tomos (o "prisma" que refratava e reconstituía uma realidade política que transcendia os Alpes) cede definitivamente nos seguintes, em que a análise se alarga bastante, abarcando as duas margens do Atlântico e a Europa Centro-Oriental.
No prefácio ao tomo um do volume quatro, Venturi anuncia como pretendeu seguir os passos de Albert Sorel, Jean Jaurès e Robert Palmer e demonstra a existência de um padrão, que é "a curva do Setecentos e também a do Iluminismo": desde a guerra de independência norte-americana, culminando com a Revolução Francesa, esse padrão traduziria um processo que ele chamou -retomando a fórmula de Edward Gibbon- "declínio e queda do Antigo Regime".
"Utopia e Reforma no Iluminismo", resultado de uma série de conferências oferecidas em Cambridge no ano em que iniciava a publicação de "Settecento Riformatori", contém já as teses centrais que iria desenvolver em sua obra monumental. Este pequeno livro apresenta-se como "uma história política do Iluminismo". Nessa história, contudo, o que lhe interessava era a "circulação" dos ideais políticos e sociais, "captando-a em seu difícil e fecundo equilíbrio entre utopia e reforma".
Recusando as interpretações de Ernst Cassirer e Peter Gay, que vinculavam o Iluminismo fundamentalmente à filosofia do Renascimento, Venturi pretende "colocar o problema do impacto da tradição republicana", medieval e renascentista, recolhida pelo Iluminismo por intermédio do deísmo inglês. Aqui estaria a fonte da reflexão filosófico-política européia do Setecentos.
Assim se explica porque a discussão sobre a melhor forma de governo, recorrente na literatura política da época, encontrava variações na França: ao elogio da monarquia substitui-se aos poucos, durante as últimas décadas do século 18, uma tradição republicana que se mantinha viva na Europa a despeito do avanço do Estado absolutista. Segundo Venturi, "a formação e a consolidação do Estado moderno poderá ser iluminada se a olharmos não do ponto de vista das monarquias vencedoras, mas das repúblicas tenazmente sobreviventes".

Política e religião
Esta é a tese central que estrutura os três primeiros capítulos de "Utopia e Reforma no Iluminismo", quando descreve a circulação das idéias republicanas, de Gênova a Veneza, Genebra e os Países Baixos, assimiladas pelos republicanos ingleses e traduzidas no deísmo, pouco estudado afinal, de John Toland e Anthony Collins. Partindo do pressuposto diderotiano segundo o qual a política e a religião não podem ser separadas, Venturi acompanha a maneira como essa tradição foi recolhida, modificada e dispersada pelos "philosophes", a partir de Paris, antes da Revolução.
Ao demonstrar essa ampla circulação dos ideais políticos republicanos, Venturi avança a outra tese fundamental do livro: a existência de um grande espaço iluminista (tema do quinto e último capítulo), que se estende de Moscou à Costa Leste da América do Norte, do qual estava excluída apenas a Inglaterra, devido à estrutura política oriunda das duas revoluções por que passara no século anterior. Esse espaço iluminista encontrava-se unificado precisamente pela ampla circulação dessa tradição republicana. No centro, estaria Paris, pólo difusor dos ideais políticos iluministas desde 1750.
"A convergência em que se achavam os que estavam adiantados e os que estavam atrasados, os que haviam aberto o caminho e os que haviam tentado em vão segui-lo, teve lugar nos anos 60, quando os homens do Iluminismo pareceram trabalhar em uníssono." Apesar disso, a cronologia da circulação de tais ideais iluministas permitiu aos franceses testemunharem insurreições e revoltas antes nas margens mais extremas desse "espaço iluminista", e só aos poucos "o círculo da revolução foi se apertando em torno da França".
A essência dessa tradição republicana foi relida segundo a vontade de modificar as sociedades herdadas do passado. As formulações políticas oriundas desse processo foram às vezes utópicas, às vezes reformadoras. Esse é o tema do quarto capítulo do livro de Venturi, no qual aborda "um problema que toca um pólo e outro do pensamento iluminista, o do direito de punir, que não pode evidentemente não implicar a própria questão da relação entre indivíduo e sociedade, uma discussão de princípio e uma consideração de problemas concretos".
No debate lançado por Cesare Beccaria sobre a substituição da pena de morte pelo trabalho forçado, do ponto de vista da utilidade social definida pelo Estado, estava implícito o dilema da relação entre utopia ou reforma que circunscreveu a referida circulação dos ideais políticos iluministas. O debate concluiu-se, segundo Venturi, pela morte da utopia e pelo cansaço diante das reformas, nos anos 70 e 80: "Restava o duro realismo" ou o "triunfante realismo, antes que a revolução tivesse início. Momento de bonança antes da tempestade, equilíbrio aparente antes que se reabrisse na França e na Europa um novo ciclo nos contrastes entre utopia e reforma".
Esse é talvez o vínculo existente entre suas obras fundamentais sobre o século 18 e seu outro livro, publicado em 1952 com o título "O Populismo Russo": entender as transformações por que passou a idéia comunista moderna, desde Morelly e Dom Deschamps até as vésperas da Revolução Russa. Na resposta desiludida que dá a essa indagação parece se imbricar, finalmente, a história pessoal de Franco Venturi -a despeito do que sobre ele disse Isaiah Berlin ("ele não exalta nem condena, apenas procura compreender") e o próprio Venturi ("resta o trabalho de observar e procurar compreender").
Modesto Florenzano, que fornece essas referências biográficas em sua apresentação, aponta uma resposta possível: "Se Venturi foi pouco a pouco modificando suas convicções e posições políticas -sobretudo a partir da década de 1960, quando seu socialismo foi sendo sepultado pelo seu anticomunismo-, não modificou, contudo, seu liberalismo, que continuou o mesmo, nunca deixando de ser radicalmente republicano".


Carlos Alberto Zeron é professor de história na USP.

Utopia e Reforma no Iluminismo
Franco Venturi
Tradução e apresentação de Modesto Florenzano
Edusc (Tel.0/xx/14/235-7111)
276 págs., R$ 33,00


Texto Anterior: Tempestade e ímpeto
Próximo Texto: Retratos esquecidos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.