|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Uma história política da Ilustração
O espaço das Luzes
CARLOS ALBERTO ZERON
Ao tentar sintetizar o pensamento das
Luzes em "L'Europa del Settecento", Luciano Guerci afirmou a existência de
"grandes diferenças de país a país, grandes diferenças entre os homens e grupos
de homens de um mesmo país, oscilações
e ambiguidades no interior de uma mesma pessoa. Em suma, o fenômeno "Iluminismo" aparece ao mesmo tempo intrincado, fugidio e multiforme, desencorajando quem procurar tomá-lo inteiro e
individualizar os traços unificadores".
Sua postura pode ser generalizada como a tendência dominante na historiografia sobre o Iluminismo nos últimos 20
anos, que procurou sobretudo identificar
tendências dentro do pensamento iluminista ou enfocá-lo sob o ângulo do contexto nacional ou provincial (poderíamos referirmo-nos, a título de exemplo,
aos trabalhos de M.C. Jacob, Robert
Darnton e Daniel Roche). Tais enfoques
opõem-se àquele que engendrou, durante a década de 1960, as grandes sínteses de
Peter Gay, Fritz Valjavec e Franco Venturi.
Em "Settecento Riformatori" (1969-1990), Venturi faz um grande painel sobre um período no qual o movimento reformador se difundiu no interior dos Estados italianos, colocando em crise as instituições, a cultura e a base econômico-social da sociedade do Antigo Regime. A
perspectiva italocêntrica prevalecente
nos dois primeiros tomos (o "prisma"
que refratava e reconstituía uma realidade política que transcendia os Alpes) cede
definitivamente nos seguintes, em que a
análise se alarga bastante, abarcando as
duas margens do Atlântico e a Europa
Centro-Oriental.
No prefácio ao tomo um do volume
quatro, Venturi anuncia como pretendeu
seguir os passos de Albert Sorel, Jean Jaurès e Robert Palmer e demonstra a existência de um padrão, que é "a curva do
Setecentos e também a do Iluminismo":
desde a guerra de independência norte-americana, culminando com a Revolução Francesa, esse padrão traduziria um
processo que ele chamou -retomando a
fórmula de Edward Gibbon- "declínio e
queda do Antigo Regime".
"Utopia e Reforma no Iluminismo", resultado de uma série de conferências oferecidas em Cambridge no ano em que
iniciava a publicação de "Settecento Riformatori", contém já as teses centrais
que iria desenvolver em sua obra monumental. Este pequeno livro apresenta-se
como "uma história política do Iluminismo". Nessa história, contudo, o que lhe
interessava era a "circulação" dos ideais
políticos e sociais, "captando-a em seu
difícil e fecundo equilíbrio entre utopia e
reforma".
Recusando as interpretações de Ernst
Cassirer e Peter Gay, que vinculavam o
Iluminismo fundamentalmente à filosofia do Renascimento, Venturi pretende
"colocar o problema do impacto da tradição republicana", medieval e renascentista, recolhida pelo Iluminismo por intermédio do deísmo inglês. Aqui estaria a
fonte da reflexão filosófico-política européia do Setecentos.
Assim se explica porque a discussão sobre a melhor forma de governo, recorrente na literatura política da época, encontrava variações na França: ao elogio
da monarquia substitui-se aos poucos,
durante as últimas décadas do século 18,
uma tradição republicana que se mantinha viva na Europa a despeito do avanço
do Estado absolutista. Segundo Venturi,
"a formação e a consolidação do Estado
moderno poderá ser iluminada se a
olharmos não do ponto de vista das monarquias vencedoras, mas das repúblicas
tenazmente sobreviventes".
Política e religião
Esta é a tese central que estrutura os três
primeiros capítulos de "Utopia e Reforma no Iluminismo", quando descreve a
circulação das idéias republicanas, de Gênova a Veneza, Genebra e os Países Baixos, assimiladas pelos republicanos ingleses e traduzidas no deísmo, pouco estudado afinal, de John Toland e Anthony
Collins. Partindo do pressuposto diderotiano segundo o qual a política e a religião
não podem ser separadas, Venturi acompanha a maneira como essa tradição foi
recolhida, modificada e dispersada pelos
"philosophes", a partir de Paris, antes da
Revolução.
Ao demonstrar essa ampla circulação
dos ideais políticos republicanos, Venturi
avança a outra tese fundamental do livro:
a existência de um grande espaço iluminista (tema do quinto e último capítulo),
que se estende de Moscou à Costa Leste
da América do Norte, do qual estava excluída apenas a Inglaterra, devido à estrutura política oriunda das duas revoluções
por que passara no século anterior. Esse
espaço iluminista encontrava-se unificado precisamente pela ampla circulação
dessa tradição republicana. No centro,
estaria Paris, pólo difusor dos ideais políticos iluministas desde 1750.
"A convergência em que se achavam os
que estavam adiantados e os que estavam
atrasados, os que haviam aberto o caminho e os que haviam tentado em vão segui-lo, teve lugar nos anos 60, quando os
homens do Iluminismo pareceram trabalhar em uníssono." Apesar disso, a cronologia da circulação de tais ideais iluministas permitiu aos franceses testemunharem insurreições e revoltas antes nas
margens mais extremas desse "espaço
iluminista", e só aos poucos "o círculo da
revolução foi se apertando em torno da
França".
A essência dessa tradição republicana
foi relida segundo a vontade de modificar
as sociedades herdadas do passado. As
formulações políticas oriundas desse
processo foram às vezes utópicas, às vezes reformadoras. Esse é o tema do quarto capítulo do livro de Venturi, no qual
aborda "um problema que toca um pólo
e outro do pensamento iluminista, o do
direito de punir, que não pode evidentemente não implicar a própria questão da
relação entre indivíduo e sociedade, uma
discussão de princípio e uma consideração de problemas concretos".
No debate lançado por Cesare Beccaria
sobre a substituição da pena de morte pelo trabalho forçado, do ponto de vista da
utilidade social definida pelo Estado, estava implícito o dilema da relação entre
utopia ou reforma que circunscreveu a
referida circulação dos ideais políticos
iluministas. O debate concluiu-se, segundo Venturi, pela morte da utopia e pelo
cansaço diante das reformas, nos anos 70
e 80: "Restava o duro realismo" ou o
"triunfante realismo, antes que a revolução tivesse início. Momento de bonança
antes da tempestade, equilíbrio aparente
antes que se reabrisse na França e na Europa um novo ciclo nos contrastes entre
utopia e reforma".
Esse é talvez o vínculo existente entre
suas obras fundamentais sobre o século
18 e seu outro livro, publicado em 1952
com o título "O Populismo Russo": entender as transformações por que passou
a idéia comunista moderna, desde Morelly e Dom Deschamps até as vésperas
da Revolução Russa. Na resposta desiludida que dá a essa indagação parece se
imbricar, finalmente, a história pessoal
de Franco Venturi -a despeito do que
sobre ele disse Isaiah Berlin ("ele não
exalta nem condena, apenas procura
compreender") e o próprio Venturi
("resta o trabalho de observar e procurar
compreender").
Modesto Florenzano, que fornece essas
referências biográficas em sua apresentação, aponta uma resposta possível: "Se
Venturi foi pouco a pouco modificando
suas convicções e posições políticas
-sobretudo a partir da década de 1960,
quando seu socialismo foi sendo sepultado pelo seu anticomunismo-, não modificou, contudo, seu liberalismo, que
continuou o mesmo, nunca deixando de
ser radicalmente republicano".
Carlos Alberto Zeron é professor de história na
USP.
Utopia e Reforma no Iluminismo
Franco Venturi
Tradução e apresentação
de Modesto Florenzano
Edusc (Tel.0/xx/14/235-7111)
276 págs., R$ 33,00
Texto Anterior: Tempestade e ímpeto Próximo Texto: Retratos esquecidos Índice
|