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Retratos esquecidos
FERNANDA PEIXOTO
Quem foram Leolinda Daltro e
Emilia Snethlage? O que sabemos
sobre Heloisa Alberto Torres,
além do pai célebre e de pálida
lembrança acerca de sua atuação
no Museu Nacional? A esse rol de
ilustres desconhecidas, poderíamos acrescentar os nomes de Dina Lévi-Strauss, de Helen Pierson
e de Yolanda Murphy, só identificáveis pelos sobrenomes, no caso
não dos pais, mas dos maridos renomados.
Seguindo rastros deixados por
essas "personagens secundárias"
da história da antropologia brasileira -mulheres de antropólogos
ou parte do reduzido círculo de
pesquisadores de fins do século 19
e início do 20-, Mariza Corrêa
[em "Antropólogas & Antropologia"] dá a cada uma delas lugar
destacado na cena da construção
institucional das ciências sociais
no país, o que significa, antes de
qualquer outra coisa, conferir-lhes nome próprio. Com o auxílio
de pistas diversas, a pesquisadora
ilumina rostos esquecidos na galeria dos perfis que compõem a
história das ciências no país. Esquecimento nada casual, adverte
ela, mas revelador das assimetrias
de gênero e das disputas de poder
no interior de um campo eminentemente masculino.
A reivindicação de linhagens femininas na antropologia brasileira encontra inspiração numa literatura que combina antropologia
e crítica feminista, percorrida no
capítulo seis, que, a despeito de
sua posição de epílogo, funciona
como uma espécie de introdução
teórica a iluminar o trajeto da
análise. Ao roteiro teórico, a autora combina mapeamento histórico, pelo esboço de três contextos
antropológicos -o norte-americano, o anglo-saxão e o francês-,
revisitados do ponto de vista das
relações de gênero. A reflexão circunstanciada sobre o lugar e a
contribuição das mulheres em diferentes cenários ensina que, menos do que a reivindicação de feminismos avant la lettre, trata-se
de "compreender a atuação contextualizada de algumas de nossas
ilustres antepassadas".
Os cinco capítulos dedicados ao
exame das antropólogas brasileiras, ainda que escritos e publicados separadamente, apresentam
encadeamento perfeito, cada um
deles lançando um feixe de luz específico às figuras da naturalista
Emília Snethlage, da indigenista
Leolinda Daltro e da pesquisadora Heloisa Alberto Torres. Já o
quinto retoma, com o auxílio das
conturbadas pesquisas de Ruth
Landes sobre o candomblé, questões fartamente trabalhadas nos
anteriores: as disputas intelectuais, institucionais e políticas que
atravessam o campo das ciências
sociais em formação no país, e no
qual vemos confrontados homens e mulheres, negros e brancos, pesquisadores e professores,
brasileiros e estrangeiros, os estudos indígenas e as pesquisas sobre
relações raciais.
Talvez seja justamente esse o fio
que arremata o quadro histórico
apresentado por Mariza Corrêa, e
que dá a ele movimento particular: os combates simbólicos travados no interior de um campo determinado, que o constituem e é
por ele constituído.
Nos capítulos dois, três e quatro, a autora esboça o retrato de
cada uma de suas personagens
centrais. O da ornitóloga alemã
Emilia Snethlage remete a uma
tradição naturalista do final do 19
que tem nos museus o seu habitat
preferencial. A figura da sertanista Leolinda Daltro na virada do
século, por sua vez, refere-se diretamente à cena pública, por meio
de sua atuação política, primeiramente como indigenista e depois
como feminista. Finalmente, o
perfil daquela que foi diretora do
Museu Nacional, Heloisa Alberto
Torres, dirige a nossa atenção para um ambiente mais claramente
profissionalizado e para a intensa
atuação da personagem nesse
contexto.
Na confecção dos retratos, Mariza Corrêa se vale dos materiais
disponíveis sobre as personagens,
o que dá a cada um deles coloração e dimensões específicas. No
caso de Emília Snethlage, sua fonte privilegiada é o registro de uma
viagem que ela realizou entre o
Xingu e o Tapajós, descrevendo
aves e índios. O perfil de Leolinda
Daltro é construído a partir de um
auto-retrato por ela deixado, "Da
Catequese dos Índios no Brasil,
1896-1911" (1920), misto de álbum
pessoal e relato de viagens. Já o retrato de Heloisa Alberto Torres é
realizado sobretudo com o auxílio
de vozes outras -sobretudo correspondências e depoimentos-,
pois ela mesma pouco publicou.
Mas a força expressiva desses
retratos é obtida pelo cotejo de diferentes versões construídas sobre as personagens. Os discursos
ambivalentes, os silêncios (reveladores) e as anedotas impublicáveis sobre cada uma delas tingem
os rostos femininos e os seus entornos. Tal procedimento analítico encontra rendimento máximo
no capítulo um, "Três Heroínas
do Romance Antropológico Brasileiro", que examina as formas
como o discurso literário se apropriou da atuação dessas mulheres, transformando-as em peças
de ficção, em "Numa e Ninfa", de
Lima Barreto (1915), em "Os Igaraúnas", de Raimundo de Morais
(1938) e em "No Pacoval de Carimbé", de Bastos Ávila (1933).
A galeria de pioneiras da história da antropologia brasileira que
o livro faz desfilar diante de nossos olhos tem o seu início, já na
capa, com o belo retrato de Berta
Ribeiro realizado por Pancetti.
Mas ao fim do percurso é o retrato
de Mariza Corrêa, ela mesma precursora por trabalhos como
"Morte em Família" (1983), "As
Ilusões da Liberdade - A Escola
Nina Rodrigues e Antropologia
no Brasil" (1998) e também peça
de "romances antropológicos"
(vide o recente "Nove Noites", de
Bernardo Carvalho), que ganha a
cena principal.
A sua prosa tem sabor de conversa bem-humorada, divertida
mesmo (basta atentarmos para os
títulos, verdadeiros achados). Os
encadeamos criativos e os insights iluminadores, por sua vez,
povoam o texto e as notas, que
funcionam quase como um livro
à parte. Ao perfil da escritora associa-se o talento da pesquisadora
alerta para todo tipo de pistas e
detalhes e, ao mesmo tempo, capaz de mobilizar ampla massa bibliográfica.
Para os que ainda não tiveram o
privilégio de conhecer a obra de
Mariza Corrêa, "Antropólogas &
Antropologia" é uma excelente
oportunidade. Os ensaios reúnem
temas e problemas há muito perseguidos. E o fazem com a liberdade só alcançada nos trabalhos
de maturidade.
Fernanda Peixoto é professora do departamento de antropologia da USP e
autora, entre outros livros, de "Diálogos
Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide" (Edusp).
Antropólogas & Antropologia
Mariza Corrêa
UFMG
(Tel.0/xx/31/ 3499-4650)
278 págs., R$ 34,00
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