UOL


São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Retratos esquecidos

FERNANDA PEIXOTO

Quem foram Leolinda Daltro e Emilia Snethlage? O que sabemos sobre Heloisa Alberto Torres, além do pai célebre e de pálida lembrança acerca de sua atuação no Museu Nacional? A esse rol de ilustres desconhecidas, poderíamos acrescentar os nomes de Dina Lévi-Strauss, de Helen Pierson e de Yolanda Murphy, só identificáveis pelos sobrenomes, no caso não dos pais, mas dos maridos renomados.
Seguindo rastros deixados por essas "personagens secundárias" da história da antropologia brasileira -mulheres de antropólogos ou parte do reduzido círculo de pesquisadores de fins do século 19 e início do 20-, Mariza Corrêa [em "Antropólogas & Antropologia"] dá a cada uma delas lugar destacado na cena da construção institucional das ciências sociais no país, o que significa, antes de qualquer outra coisa, conferir-lhes nome próprio. Com o auxílio de pistas diversas, a pesquisadora ilumina rostos esquecidos na galeria dos perfis que compõem a história das ciências no país. Esquecimento nada casual, adverte ela, mas revelador das assimetrias de gênero e das disputas de poder no interior de um campo eminentemente masculino.
A reivindicação de linhagens femininas na antropologia brasileira encontra inspiração numa literatura que combina antropologia e crítica feminista, percorrida no capítulo seis, que, a despeito de sua posição de epílogo, funciona como uma espécie de introdução teórica a iluminar o trajeto da análise. Ao roteiro teórico, a autora combina mapeamento histórico, pelo esboço de três contextos antropológicos -o norte-americano, o anglo-saxão e o francês-, revisitados do ponto de vista das relações de gênero. A reflexão circunstanciada sobre o lugar e a contribuição das mulheres em diferentes cenários ensina que, menos do que a reivindicação de feminismos avant la lettre, trata-se de "compreender a atuação contextualizada de algumas de nossas ilustres antepassadas".
Os cinco capítulos dedicados ao exame das antropólogas brasileiras, ainda que escritos e publicados separadamente, apresentam encadeamento perfeito, cada um deles lançando um feixe de luz específico às figuras da naturalista Emília Snethlage, da indigenista Leolinda Daltro e da pesquisadora Heloisa Alberto Torres. Já o quinto retoma, com o auxílio das conturbadas pesquisas de Ruth Landes sobre o candomblé, questões fartamente trabalhadas nos anteriores: as disputas intelectuais, institucionais e políticas que atravessam o campo das ciências sociais em formação no país, e no qual vemos confrontados homens e mulheres, negros e brancos, pesquisadores e professores, brasileiros e estrangeiros, os estudos indígenas e as pesquisas sobre relações raciais.
Talvez seja justamente esse o fio que arremata o quadro histórico apresentado por Mariza Corrêa, e que dá a ele movimento particular: os combates simbólicos travados no interior de um campo determinado, que o constituem e é por ele constituído.
Nos capítulos dois, três e quatro, a autora esboça o retrato de cada uma de suas personagens centrais. O da ornitóloga alemã Emilia Snethlage remete a uma tradição naturalista do final do 19 que tem nos museus o seu habitat preferencial. A figura da sertanista Leolinda Daltro na virada do século, por sua vez, refere-se diretamente à cena pública, por meio de sua atuação política, primeiramente como indigenista e depois como feminista. Finalmente, o perfil daquela que foi diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres, dirige a nossa atenção para um ambiente mais claramente profissionalizado e para a intensa atuação da personagem nesse contexto.
Na confecção dos retratos, Mariza Corrêa se vale dos materiais disponíveis sobre as personagens, o que dá a cada um deles coloração e dimensões específicas. No caso de Emília Snethlage, sua fonte privilegiada é o registro de uma viagem que ela realizou entre o Xingu e o Tapajós, descrevendo aves e índios. O perfil de Leolinda Daltro é construído a partir de um auto-retrato por ela deixado, "Da Catequese dos Índios no Brasil, 1896-1911" (1920), misto de álbum pessoal e relato de viagens. Já o retrato de Heloisa Alberto Torres é realizado sobretudo com o auxílio de vozes outras -sobretudo correspondências e depoimentos-, pois ela mesma pouco publicou.
Mas a força expressiva desses retratos é obtida pelo cotejo de diferentes versões construídas sobre as personagens. Os discursos ambivalentes, os silêncios (reveladores) e as anedotas impublicáveis sobre cada uma delas tingem os rostos femininos e os seus entornos. Tal procedimento analítico encontra rendimento máximo no capítulo um, "Três Heroínas do Romance Antropológico Brasileiro", que examina as formas como o discurso literário se apropriou da atuação dessas mulheres, transformando-as em peças de ficção, em "Numa e Ninfa", de Lima Barreto (1915), em "Os Igaraúnas", de Raimundo de Morais (1938) e em "No Pacoval de Carimbé", de Bastos Ávila (1933).
A galeria de pioneiras da história da antropologia brasileira que o livro faz desfilar diante de nossos olhos tem o seu início, já na capa, com o belo retrato de Berta Ribeiro realizado por Pancetti. Mas ao fim do percurso é o retrato de Mariza Corrêa, ela mesma precursora por trabalhos como "Morte em Família" (1983), "As Ilusões da Liberdade - A Escola Nina Rodrigues e Antropologia no Brasil" (1998) e também peça de "romances antropológicos" (vide o recente "Nove Noites", de Bernardo Carvalho), que ganha a cena principal.
A sua prosa tem sabor de conversa bem-humorada, divertida mesmo (basta atentarmos para os títulos, verdadeiros achados). Os encadeamos criativos e os insights iluminadores, por sua vez, povoam o texto e as notas, que funcionam quase como um livro à parte. Ao perfil da escritora associa-se o talento da pesquisadora alerta para todo tipo de pistas e detalhes e, ao mesmo tempo, capaz de mobilizar ampla massa bibliográfica.
Para os que ainda não tiveram o privilégio de conhecer a obra de Mariza Corrêa, "Antropólogas & Antropologia" é uma excelente oportunidade. Os ensaios reúnem temas e problemas há muito perseguidos. E o fazem com a liberdade só alcançada nos trabalhos de maturidade.


Fernanda Peixoto é professora do departamento de antropologia da USP e autora, entre outros livros, de "Diálogos Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide" (Edusp).

Antropólogas & Antropologia
Mariza Corrêa
UFMG
(Tel.0/xx/31/ 3499-4650)
278 págs., R$ 34,00


Texto Anterior: O espaço das Luzes
Próximo Texto: A objetiva e o pincel
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.