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Estudos tratam do significado social do retrato
A objetiva e o pincel
MIRIAM MOREIRA LEITE
Superficialmente, esses dois livros referem-se a retratos de pessoas -de fotógrafos, um, e de
pintores, o outro. Contudo enquanto um usa as imagens fotográficas como referência para desenvolver panoramas históricos,
sociais e psicológicos do Rio de
Janeiro, o outro pretende mostrar
que a figura feminina sempre esteve presente na documentação
visual brasileira.
Na tese de mestrado de Patrícia
Lavelle ["O Espelho Distorcido"],
a fotografia deixa de ser fonte única. A autora aglutina documentos
e tece sua argumentação sem distinguir entre a forma e o conteúdo
comunicativo. O retrato seria então o cruzamento de diferentes representações de um indivíduo; ou
seja, o contexto da produção da
fotografia (formado pelos modismos fotográficos), o tipo de técnica e as relações sociais entre o fotógrafo e o modelo. Nesse caso, o
papel social do modelo impõe
uma representação da individualidade e, ao mesmo tempo, apresenta uma fisionomia onde é possível ler a emoção.
A autora transcreve o anúncio
do fotógrafo Christiano Jr., no
"Almanaque Laemmert", no qual
oferece aos fregueses lembranças
do Rio de Janeiro, sobretudo cenas de paisagens, "coisa muito
própria para quem se retira para a
Europa". Usos, costumes e tipos
humanos também são oferecidos
como "lembranças".
Nesse contexto, os negros são
apresentados como mercadorias.
Não são donos de seu próprio
corpo nem de sua imagem. Com
um fundo despojado, os cestos de
palha, os turbantes e os pés deformados e descalços, esses modelos
contrastavam com o ambiente de
sala burguesa com móveis, cortinas e enfeites, com que os fotógrafos de então retratavam os fregueses brancos.
As crônicas de João do Rio sobre o universo das ruas dão indicações sobre como um comércio
ambulante de orações impressas
de uma religiosidade supersticiosa está regido pela troca de favores, bajulação e malandragem.
Depois do português Christiano
Jr., Augusto Malta fotografou essa
população que João do Rio descreve entre fascinado e amedrontado, em sua sociabilidade das
ruas, de cujos locais de cordialidade sem peias morais, acaba por
ser expulsa pelas reformas urbanísticas de Pereira Passos.
O artificialismo da pose nas
imagens dos brancos é uma metáfora, uma representação social
que a fotografia reproduz. Como
a indumentária, o ambiente criado e os enfeites, elas procuram reproduzir a reeuropeização das
personagens burguesas. No álbum de família, o lugar de destaque é do pai, depois do filho bacharel, responsável pelo prestígio
ou a ascensão social. A mulher casada quebra o equilíbrio da família patriarcal por força do crescimento urbano. Ao livrar-se da
clausura e ao brilhar ao lado do
marido no teatro e nos saraus,
com as mudanças para a cidade,
deixa de ser uma sombra doméstica e se individualiza, ganhando
prestígio e servindo-se dele em favor dos interesses familiares. Mas
o seu olhar continua a representar
recato e submissão necessários
para valorizar a natureza dócil da
mulher caseira.
Lógica personalista
A individualização dos membros da família abala a coesão do
grupo. Na cidade, a cordialidade
representa um desdobramento
do círculo familiar, pois permite a
ligação de seus membros com indivíduos de fora. Contudo a lógica personalista da família não se
rompe por isso. Entretanto as
oposições da vida social são espelhadas não só nas fotografias, mas
também nos textos de autores
consagrados.
Desde a década de 80, no século
19, a interpretação das imagens
em documentos iconográficos
passou a ser elemento fundamental nas pesquisas histórica, antropológica e sociológica. Por outro
lado, ao escolher a condição da
mulher na sociedade brasileira
como objeto de estudo, Cristina
Costa [em "A Imagem da Mulher"] optou pelas artes plásticas
como fonte de informação, considerando que a interpretação de
seus significados poderia desvendar o mundo sensível captado pelo olhar humano. Procura, então,
examinar as imagens femininas
do barroco brasileiro, na pintura
neoclássica e no modernismo.
Tanto os ex-votos quanto as
pinturas das igrejas forneceram
cenas de costumes e retratos, em
que se misturam cenas bíblicas e
rurais. Aí, a mulher representa o
mal, para depois ser substituída
pelas cenas do Novo Testamento,
em que aparecem Nossa Senhora
e Maria Madalena. A intensa devoção a Nossa Senhora desdobrou sua imagem em inúmeras
formas que passaram a povoar altares e capelas domésticas. Em
um Brasil colonial em que existiam poucas mulheres brancas e
grande número de homens sós, a
figura feminina era reproduzida
de forma idealizada, tanto com
olhos baixos como em pose majestosa e coroada.
O cenário artístico acumulado
por três séculos de hegemonia
cultural da Igreja Católica persistiu por intermédio de artistas da
Bahia e de Minas Gerais, que
afluíram ao Rio de Janeiro, para a
Academia Imperial de Belas Artes, candidatando-se a prêmios
que concediam viagens à Europa.
A academia introduz o estilo neoclássico. Agora, as mulheres integravam cenas da corte imperial e
cenas de costumes e nus artísticos
em trabalhos com modelos vivos.
Com a facilidade trazida pela reprodução fotográfica, a pintura
encontrou dificuldade em acompanhá-la -se bem que o culto
doméstico das famílias ricas ao
retrato pintado continuasse a ter
mais prestígio social. Os retratos
encontrados pela autora em museus apresentaram grande semelhança estilística, em seu revestimento de símbolos de distinção
social, tanto nos retratos masculinos quanto nos femininos.
Todos os modelos estão vestidos de gala, em tons escuros, numa postura majestosa e imponente, o rosto iluminado, de lábios
cerrados e cenhos franzidos, o
que foi interpretado pela autora
como uma expressão de uma vida
de trabalho e de esforço. Pintados
ao gosto dos retratados e de seu
grupo de referência, representam
os valores da oligarquia agrária e
da geração madura, mais do que a
técnica do artista.
Já o modernismo brasileiro
adaptou modelos estrangeiros ao
gosto e à identidade nacional numa arte de cunho social cercada
por paisagens e frutas brasileiras e
exprimindo a mestiçagem da população. A mulher vai aparecer
em nus de tendência cubista ou
em corpos de curvas suaves e generosas, numa pluralidade de estilos: trabalhadoras cheias de fadiga e solidão, prostitutas, lavadeiras, vendedoras de acarajés e dançarinas de cabarés, além de retratos e auto-retratos.
Por fim, as figuras femininas começam a imitar poses e gestos de
artistas de cinema.
Já as primeiras pintoras apresentam novo estilo de feminilidade. Agora a cidade ou a praia
transformam hábitos e rituais em
novo intercâmbio entre os mundos público e privado. Por outro
lado, as experiências do modernismo se afastam da simples reprodução da aparência visível,
abandonando a aparência em favor da experiência interior. As
suas manifestações são híbridas e
fragmentadas.
A forma e a cor diferenciam esses dois livros. Um é pequeno e
examina retratos em preto-e-branco. O outro tem formato
grande e traz um caderno de reproduções em cores. Mas não são
apenas essas as diferenças. Aparentemente, os dois se referem a
retratos e suas distorções -um,
nas fotografias, o outro, na pintura. Contudo enquanto um toma
as imagens fotográficas como
pré-textos, a partir das quais desenvolve panoramas históricos,
sociais e psicológicos do Rio de
Janeiro no século 19, o outro pretende mostrar que a figura feminina esteve sempre presente na
documentação visual brasileira.
Os dois livros contribuem para
a compreensão do significado social do retrato, mas se desviam para questões afins em razão da
compreensão das imagens selecionadas. Não usaram as imagens
como ilustração. Elas são elementos de apoio do que procuravam
compreender e expor. A diagramação e os recursos editoriais do
livro de Cristina Costa valorizam
o texto, que é muito fluido em
comparação com o de Patrícia Lavalle. Este conta com uma aguda
sensibilidade, que o outro não
tem, para as oposições da vida social brasileira do século 19.
Miriam Lifchitz Moreira Leite é professora aposentada da USP, assessora do Laboratório de Antropologia Visual
(USP) e autora, entre outros livros, de
"Retratos de Família" (Edusp).
O Espelho Distorcido
Patrícia Lavelle
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
130 págs., R$ 21,00
A Imagem da Mulher
Cristina Costa
Senac
(Tel. 0/ xx/11/3030-1830)
200 págs., R$ 32,00
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