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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Estudos tratam do significado social do retrato

A objetiva e o pincel

MIRIAM MOREIRA LEITE

Superficialmente, esses dois livros referem-se a retratos de pessoas -de fotógrafos, um, e de pintores, o outro. Contudo enquanto um usa as imagens fotográficas como referência para desenvolver panoramas históricos, sociais e psicológicos do Rio de Janeiro, o outro pretende mostrar que a figura feminina sempre esteve presente na documentação visual brasileira.
Na tese de mestrado de Patrícia Lavelle ["O Espelho Distorcido"], a fotografia deixa de ser fonte única. A autora aglutina documentos e tece sua argumentação sem distinguir entre a forma e o conteúdo comunicativo. O retrato seria então o cruzamento de diferentes representações de um indivíduo; ou seja, o contexto da produção da fotografia (formado pelos modismos fotográficos), o tipo de técnica e as relações sociais entre o fotógrafo e o modelo. Nesse caso, o papel social do modelo impõe uma representação da individualidade e, ao mesmo tempo, apresenta uma fisionomia onde é possível ler a emoção.
A autora transcreve o anúncio do fotógrafo Christiano Jr., no "Almanaque Laemmert", no qual oferece aos fregueses lembranças do Rio de Janeiro, sobretudo cenas de paisagens, "coisa muito própria para quem se retira para a Europa". Usos, costumes e tipos humanos também são oferecidos como "lembranças".
Nesse contexto, os negros são apresentados como mercadorias. Não são donos de seu próprio corpo nem de sua imagem. Com um fundo despojado, os cestos de palha, os turbantes e os pés deformados e descalços, esses modelos contrastavam com o ambiente de sala burguesa com móveis, cortinas e enfeites, com que os fotógrafos de então retratavam os fregueses brancos.
As crônicas de João do Rio sobre o universo das ruas dão indicações sobre como um comércio ambulante de orações impressas de uma religiosidade supersticiosa está regido pela troca de favores, bajulação e malandragem. Depois do português Christiano Jr., Augusto Malta fotografou essa população que João do Rio descreve entre fascinado e amedrontado, em sua sociabilidade das ruas, de cujos locais de cordialidade sem peias morais, acaba por ser expulsa pelas reformas urbanísticas de Pereira Passos.
O artificialismo da pose nas imagens dos brancos é uma metáfora, uma representação social que a fotografia reproduz. Como a indumentária, o ambiente criado e os enfeites, elas procuram reproduzir a reeuropeização das personagens burguesas. No álbum de família, o lugar de destaque é do pai, depois do filho bacharel, responsável pelo prestígio ou a ascensão social. A mulher casada quebra o equilíbrio da família patriarcal por força do crescimento urbano. Ao livrar-se da clausura e ao brilhar ao lado do marido no teatro e nos saraus, com as mudanças para a cidade, deixa de ser uma sombra doméstica e se individualiza, ganhando prestígio e servindo-se dele em favor dos interesses familiares. Mas o seu olhar continua a representar recato e submissão necessários para valorizar a natureza dócil da mulher caseira.

Lógica personalista
A individualização dos membros da família abala a coesão do grupo. Na cidade, a cordialidade representa um desdobramento do círculo familiar, pois permite a ligação de seus membros com indivíduos de fora. Contudo a lógica personalista da família não se rompe por isso. Entretanto as oposições da vida social são espelhadas não só nas fotografias, mas também nos textos de autores consagrados.
Desde a década de 80, no século 19, a interpretação das imagens em documentos iconográficos passou a ser elemento fundamental nas pesquisas histórica, antropológica e sociológica. Por outro lado, ao escolher a condição da mulher na sociedade brasileira como objeto de estudo, Cristina Costa [em "A Imagem da Mulher"] optou pelas artes plásticas como fonte de informação, considerando que a interpretação de seus significados poderia desvendar o mundo sensível captado pelo olhar humano. Procura, então, examinar as imagens femininas do barroco brasileiro, na pintura neoclássica e no modernismo.
Tanto os ex-votos quanto as pinturas das igrejas forneceram cenas de costumes e retratos, em que se misturam cenas bíblicas e rurais. Aí, a mulher representa o mal, para depois ser substituída pelas cenas do Novo Testamento, em que aparecem Nossa Senhora e Maria Madalena. A intensa devoção a Nossa Senhora desdobrou sua imagem em inúmeras formas que passaram a povoar altares e capelas domésticas. Em um Brasil colonial em que existiam poucas mulheres brancas e grande número de homens sós, a figura feminina era reproduzida de forma idealizada, tanto com olhos baixos como em pose majestosa e coroada.
O cenário artístico acumulado por três séculos de hegemonia cultural da Igreja Católica persistiu por intermédio de artistas da Bahia e de Minas Gerais, que afluíram ao Rio de Janeiro, para a Academia Imperial de Belas Artes, candidatando-se a prêmios que concediam viagens à Europa. A academia introduz o estilo neoclássico. Agora, as mulheres integravam cenas da corte imperial e cenas de costumes e nus artísticos em trabalhos com modelos vivos.
Com a facilidade trazida pela reprodução fotográfica, a pintura encontrou dificuldade em acompanhá-la -se bem que o culto doméstico das famílias ricas ao retrato pintado continuasse a ter mais prestígio social. Os retratos encontrados pela autora em museus apresentaram grande semelhança estilística, em seu revestimento de símbolos de distinção social, tanto nos retratos masculinos quanto nos femininos.
Todos os modelos estão vestidos de gala, em tons escuros, numa postura majestosa e imponente, o rosto iluminado, de lábios cerrados e cenhos franzidos, o que foi interpretado pela autora como uma expressão de uma vida de trabalho e de esforço. Pintados ao gosto dos retratados e de seu grupo de referência, representam os valores da oligarquia agrária e da geração madura, mais do que a técnica do artista.
Já o modernismo brasileiro adaptou modelos estrangeiros ao gosto e à identidade nacional numa arte de cunho social cercada por paisagens e frutas brasileiras e exprimindo a mestiçagem da população. A mulher vai aparecer em nus de tendência cubista ou em corpos de curvas suaves e generosas, numa pluralidade de estilos: trabalhadoras cheias de fadiga e solidão, prostitutas, lavadeiras, vendedoras de acarajés e dançarinas de cabarés, além de retratos e auto-retratos.
Por fim, as figuras femininas começam a imitar poses e gestos de artistas de cinema.
Já as primeiras pintoras apresentam novo estilo de feminilidade. Agora a cidade ou a praia transformam hábitos e rituais em novo intercâmbio entre os mundos público e privado. Por outro lado, as experiências do modernismo se afastam da simples reprodução da aparência visível, abandonando a aparência em favor da experiência interior. As suas manifestações são híbridas e fragmentadas.
A forma e a cor diferenciam esses dois livros. Um é pequeno e examina retratos em preto-e-branco. O outro tem formato grande e traz um caderno de reproduções em cores. Mas não são apenas essas as diferenças. Aparentemente, os dois se referem a retratos e suas distorções -um, nas fotografias, o outro, na pintura. Contudo enquanto um toma as imagens fotográficas como pré-textos, a partir das quais desenvolve panoramas históricos, sociais e psicológicos do Rio de Janeiro no século 19, o outro pretende mostrar que a figura feminina esteve sempre presente na documentação visual brasileira.
Os dois livros contribuem para a compreensão do significado social do retrato, mas se desviam para questões afins em razão da compreensão das imagens selecionadas. Não usaram as imagens como ilustração. Elas são elementos de apoio do que procuravam compreender e expor. A diagramação e os recursos editoriais do livro de Cristina Costa valorizam o texto, que é muito fluido em comparação com o de Patrícia Lavalle. Este conta com uma aguda sensibilidade, que o outro não tem, para as oposições da vida social brasileira do século 19.


Miriam Lifchitz Moreira Leite é professora aposentada da USP, assessora do Laboratório de Antropologia Visual (USP) e autora, entre outros livros, de "Retratos de Família" (Edusp).

O Espelho Distorcido
Patrícia Lavelle
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
130 págs., R$ 21,00

A Imagem da Mulher
Cristina Costa
Senac
(Tel. 0/ xx/11/3030-1830)
200 págs., R$ 32,00


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