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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Todo homem começou a vida como uma pequena mulher no útero materno

Nossos ancestrais

NELIO BIZZO

A presença de mamilos e de vestígios de glândulas mamárias em homens era um fato que intrigava profundamente Charles Darwin. Qual a justificativa evolutiva de terem sido conservados esses rudimentos que não têm rigorosamente função nenhuma? Aliás, são fontes potenciais de problemas de saúde muito sérios, inclusive câncer de mama, o que sugeriria que a seleção natural deveria, a essa altura, ter eliminado inteiramente os portadores de tais vestígios.
A resposta para o enigma demorou mais de um século: os homens têm mamilos e glândulas mamárias porque, nas primeiras semanas dentro do útero, todos os fetos desenvolvem caracteres femininos, inclusive genitais. Em certo estágio da gestação, um certo cromossomo (Y) comanda a produção de substâncias poderosas, como a testosterona, capazes de alterar radicalmente o desenvolvimento embrionário. As fendas genitais, ao invés de gerar os grandes lábios da genitália feminina, cicatrizam e formam o saco escrotal. A cicatriz permanece por toda a vida naquele órgão, atestando um processo de literal transexualidade.
Todo homem já foi, em certo sentido, uma pequena mulher que se masculinizou no útero materno. Assim se explica a razão desses vestígios nos homens: eles ainda não tinham identidade masculina quando o desenvolvimento embrionário os desenvolveu de forma irreversível!
Se essa realidade é difícil de assimilar para muitos caucasóides, o que dizer então de outra notícia confirmada recentemente? Além de mulheres, no passado próximo, todos temos ancestrais negros, genuinamente africanos. A fundamentação dessa tese aparece comentada de maneira muito paciente neste livro de Luigi Cavalli-Sforza ["Genes, Povos e Línguas"], uma autoridade mundial em genética de populações humanas. Ele nos conta, de forma simples e sem exigir sacrifício do leitor leigo, como se processa a pesquisa para responder às principais perguntas acerca da diferenciação da espécie humana. Para evitar os lugares-comuns habituais a respeito das raças humanas e de como é difícil fazer qualquer distinção entre os grupos humanos, Cavalli-Sforza nos fala dos possíveis marcadores genéticos que podem ser empregados. Sem dúvida alguma, as características mais visíveis e mais expostas ao tempo, como a pele e a própria face, têm sido por vezes aquelas mais utilizadas para separar as populações humanas em raças.

Diferenciação genética
É comum ouvir dizer que hoje não se pode falar que há raças humanas claramente divididas; no entanto é raro contemplar uma discussão alentada da limitação de uma constatação elementar como essa e não avançar no estudo da diferenciação genética das populações humanas. Cavalli-Sforza consegue caminhar pelo fio da navalha de uma discussão particularmente difícil e cheia de preconceitos para concluir que existem grupos humanos que se diferenciaram geneticamente e que depois se miscigenaram, "embaralhando" novamente as diferentes populações originais.
No entanto, sem se deixar cair em tentações -racistas ou do determinismo genético-, Cavalli-Sforza nos fala de como ele tem perseguido a mesma questão da diferenciação genética das populações humanas e das conclusões a que se pode chegar com alguma segurança.
Ele considera os trabalhos com o chamado "relógio molecular", que nos permite estimar o tempo necessário para que um certo trecho do material genético se diferenciasse. É assim que ele nos fala da "Eva africana", que teve o seu DNA mitocondrial examinado, e do "Adão africano", que teve seu cromossomo "Y" analisado. Os resultados foram coerentes e apontaram para a África, cerca de 140 mil anos atrás, como berço da humanidade. Talvez essa idade seja um pouco exagerada, mas seguramente se situa acima de 70 mil anos, e o local é inequivocamente a África.
De lá para cá, os grupos humanos, que na África perfaziam um total de cerca de 50 mil homens e mulheres, se espalharam por todo o globo, passando primeiramente para a Ásia, depois Europa e Oceania. A chegada ao continente americano permanece controversa, conquanto algumas especulações sejam mais plausíveis que outras.
Os dados estritamente biológicos são limitados, mas mostram que a Europa recebeu uma população com propensão ao raquitismo e paulatinamente foi evoluindo no sentido de clarear a pele. Isso ajudaria a captar os raios solares raros em altas latitudes e fornecer vitamina D ao organismo; narinas finas aqueceriam mais o ar antes de chegar aos pulmões, o que poderia ter aumentado a sobrevida e a descendência em ambiente frio.
Se já é chocante saber que o mais másculo homem começou a vida como uma pequena mulher no útero materno e que todos nós tivemos um mesmo ancestral comum na África, o que os europeus dirão ainda da constatação de que seu continente abriga, desde a primeira colonização, uma população essencialmente mestiça? O que diriam os autoproclamados arianos alemães, que fantasiaram sobre sua origem, supostamente ligada à nobreza brâmane da Índia, onde a suástica era sinal de boa sorte? Enquanto muitos faziam a guerra, a Áustria, coração da Europa, arranjava casamentos; essa estratégia deve ter sido muito mais antiga do que os Habsburgos, nosso dom Pedro e sua desafortunada Maria Leopoldina, revelando que a nobreza do "antigo" continente se distinguia antes pela diversidade do que pela "pureza".
Pode parecer ironia, mas a Europa tem em seu seio, desde a primeira colonização do Homo sapiens, justamente aquilo que causava repugnância em muitos de seus intelectuais, a miscigenação racial. Era ela que inquietava Euclides da Cunha, que via no destempero do revoltoso nordestino a simples manifestação do desequilíbrio biológico da mistura de raças; em um mesmo indivíduo a parte trabalhadora se incompatibilizaria com a parte intelectual, ambas irreconciliadas com os resquícios da parte "selvagem". Mosaicos humanos não poderiam deixar de ter alma impenetrabilidade aos bons sentimentos. Quem diria, a miscigenação era a característica mais antiga da nobreza européia e justamente seu mais valioso tesouro.
Mas a parte mais emocionante do livro é a final, quando se celebra o casamento de informações genéticas e arqueológicas com o estudo das línguas. Esse novo aporte segue uma antiga predição de Charles Darwin: desvelado o parentesco das populações humanas, seria possível responder às perguntas dos filólogos sobre a origem das diferentes línguas faladas no mundo. Cavalli-Sforza confessa que não conhecia a remota predição de Darwin sobre a importância da linguística e de como ela poderia trazer aportes genuinamente inovadores ao estudo da diferenciação genética humana.
Talvez ele se surpreendesse em saber que, na verdade, essa perspectiva era ainda mais antiga, pois tinha sido divisada por outro jovem inglês, que se aventurava pelo Amazonas nos idos de 1840. Alfred Russel Wallace tinha percebido a riqueza da metáfora linguística para testar a possibilidade evolutiva orgânica. Em um engenhoso experimento, ele acompanhou a viagem de um enfermo para receber uma benção, alguns dias rio abaixo. A procissão seguia uma ladainha, repetida monotonamente pelo grupo que a acompanhava. A ladainha era repetida "com a sua linguagem cada vez mais melhorada, reduzindo-se depois à escrita e, por fim, justapondo-se à rima".
Wallace investigava como a repetição monótona da mesma ladainha poderia revelar inovações e esconder vínculos causais, ou seja, se a língua e sua flexão poderiam, de alguma forma, servir de modelo para a questão da evolução dos organismos. Hoje, essa metáfora tem grande força, dado o paralelo imediato com os processos de replicação monótona do DNA.
Assim, por mais inovações tecnológicas que tenhamos à nossa volta, parece que certas perguntas fundamentais não nos abandonam. De onde viemos? Quem são nossos ancestrais? Mesmo sem resposta definitiva, a pergunta é difícil e nos remete para um plano de dúvida mais informado. "Pergunte de onde veio a língua de seu povo", eis uma nova questão, que talvez não seja tão nova, mas que certamente nos faz pensar em nossos preconceitos mais arraigados e em como é difícil nos despojarmos deles para admitir que o estranho sujeito ao lado é apenas um parente mais distante, a quem ainda não fomos formalmente apresentados. Se todo homem já foi mulher, se todo branco já foi negro, se os nobres eram plebeus, se os "arianos" eram mestiços, qual será o limite para o engenho do pensamento? Luigi Cavalli-Sforza se esmera em mostrar que ele pode ir longe.


Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de Educação da USP.

Genes, Povos e Línguas
Luigi Luca Cavalli-Sforza
Tradução: Carlos Afonso Malferrari
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
296 págs., R$ 36,00


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