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Todo homem começou a vida como uma pequena mulher no útero materno
Nossos ancestrais
NELIO BIZZO
A presença de mamilos e de vestígios de
glândulas mamárias em homens era um
fato que intrigava profundamente Charles Darwin. Qual a justificativa evolutiva
de terem sido conservados esses rudimentos que não têm rigorosamente função nenhuma? Aliás, são fontes potenciais de problemas de saúde muito sérios,
inclusive câncer de mama, o que sugeriria que a seleção natural deveria, a essa altura, ter eliminado inteiramente os portadores de tais vestígios.
A resposta para o enigma demorou
mais de um século: os homens têm mamilos e glândulas mamárias porque, nas
primeiras semanas dentro do útero, todos os fetos desenvolvem caracteres femininos, inclusive genitais. Em certo estágio da gestação, um certo cromossomo
(Y) comanda a produção de substâncias
poderosas, como a testosterona, capazes
de alterar radicalmente o desenvolvimento embrionário. As fendas genitais,
ao invés de gerar os grandes lábios da genitália feminina, cicatrizam e formam o
saco escrotal. A cicatriz permanece por
toda a vida naquele órgão, atestando um
processo de literal transexualidade.
Todo homem já foi, em certo sentido,
uma pequena mulher que se masculinizou no útero materno. Assim se explica a
razão desses vestígios nos homens: eles
ainda não tinham identidade masculina
quando o desenvolvimento embrionário
os desenvolveu de forma irreversível!
Se essa realidade é difícil de assimilar
para muitos caucasóides, o que dizer então de outra notícia confirmada recentemente? Além de mulheres, no passado
próximo, todos temos ancestrais negros,
genuinamente africanos. A fundamentação dessa tese aparece comentada de maneira muito paciente neste livro de Luigi
Cavalli-Sforza ["Genes, Povos e Línguas"], uma autoridade mundial em genética de populações humanas. Ele nos
conta, de forma simples e sem exigir sacrifício do leitor leigo, como se processa a
pesquisa para responder às principais
perguntas acerca da diferenciação da espécie humana. Para evitar os lugares-comuns habituais a respeito das raças humanas e de como é difícil fazer qualquer
distinção entre os grupos humanos, Cavalli-Sforza nos fala dos possíveis marcadores genéticos que podem ser empregados. Sem dúvida alguma, as características mais visíveis e mais expostas ao tempo, como a pele e a própria face, têm sido
por vezes aquelas mais utilizadas para separar as populações humanas em raças.
Diferenciação genética
É comum ouvir dizer que hoje não se
pode falar que há raças humanas claramente divididas; no entanto é raro contemplar uma discussão alentada da limitação de uma constatação elementar como essa e não avançar no estudo da diferenciação genética das populações humanas. Cavalli-Sforza consegue caminhar pelo fio da navalha de uma discussão particularmente difícil e cheia de preconceitos para concluir que existem grupos humanos que se diferenciaram
geneticamente e que depois se miscigenaram, "embaralhando" novamente as
diferentes populações originais.
No entanto, sem se deixar cair em tentações -racistas ou do determinismo genético-, Cavalli-Sforza nos fala de como
ele tem perseguido a mesma questão da
diferenciação genética das populações
humanas e das conclusões a que se pode
chegar com alguma segurança.
Ele considera os trabalhos com o chamado "relógio molecular", que nos permite estimar o tempo necessário para
que um certo trecho do material genético
se diferenciasse. É assim que ele nos fala
da "Eva africana", que teve o seu DNA
mitocondrial examinado, e do "Adão
africano", que teve seu cromossomo "Y"
analisado. Os resultados foram coerentes
e apontaram para a África, cerca de 140
mil anos atrás, como berço da humanidade. Talvez essa idade seja um pouco exagerada, mas seguramente se situa acima
de 70 mil anos, e o local é inequivocamente a África.
De lá para cá, os grupos humanos, que
na África perfaziam um total de cerca de
50 mil homens e mulheres, se espalharam
por todo o globo, passando primeiramente para a Ásia, depois Europa e Oceania. A chegada ao continente americano
permanece controversa, conquanto algumas especulações sejam mais plausíveis
que outras.
Os dados estritamente biológicos são limitados, mas mostram que a Europa recebeu uma população com propensão ao
raquitismo e paulatinamente foi evoluindo no sentido de clarear a pele. Isso ajudaria a captar os raios solares raros em altas latitudes e fornecer vitamina D ao organismo; narinas finas aqueceriam mais
o ar antes de chegar aos pulmões, o que
poderia ter aumentado a sobrevida e a
descendência em ambiente frio.
Se já é chocante saber que o mais másculo homem começou a vida como uma
pequena mulher no útero materno e que
todos nós tivemos um mesmo ancestral
comum na África, o que os europeus dirão ainda da constatação de que seu continente abriga, desde a primeira colonização, uma população essencialmente mestiça? O que diriam os autoproclamados
arianos alemães, que fantasiaram sobre
sua origem, supostamente ligada à nobreza brâmane da Índia, onde a suástica
era sinal de boa sorte? Enquanto muitos
faziam a guerra, a Áustria, coração da Europa, arranjava casamentos; essa estratégia deve ter sido muito mais antiga do
que os Habsburgos, nosso dom Pedro e
sua desafortunada Maria Leopoldina, revelando que a nobreza do "antigo" continente se distinguia antes pela diversidade
do que pela "pureza".
Pode parecer ironia, mas a Europa tem
em seu seio, desde a primeira colonização
do Homo sapiens, justamente aquilo que
causava repugnância em muitos de seus
intelectuais, a miscigenação racial. Era ela
que inquietava Euclides da Cunha, que
via no destempero do revoltoso nordestino a simples manifestação do desequilíbrio biológico da mistura de raças; em
um mesmo indivíduo a parte trabalhadora se incompatibilizaria com a parte intelectual, ambas irreconciliadas com os resquícios da parte "selvagem". Mosaicos
humanos não poderiam deixar de ter alma impenetrabilidade aos bons sentimentos. Quem diria, a miscigenação era a
característica mais antiga da nobreza européia e justamente seu mais valioso tesouro.
Mas a parte mais emocionante do livro
é a final, quando se celebra o casamento
de informações genéticas e arqueológicas
com o estudo das línguas. Esse novo
aporte segue uma antiga predição de
Charles Darwin: desvelado o parentesco
das populações humanas, seria possível
responder às perguntas dos filólogos sobre a origem das diferentes línguas faladas no mundo. Cavalli-Sforza confessa
que não conhecia a remota predição de
Darwin sobre a importância da linguística e de como ela poderia trazer aportes
genuinamente inovadores ao estudo da
diferenciação genética humana.
Talvez ele se surpreendesse em saber
que, na verdade, essa perspectiva era ainda mais antiga, pois tinha sido divisada
por outro jovem inglês, que se aventurava pelo Amazonas nos idos de 1840. Alfred Russel Wallace tinha percebido a riqueza da metáfora linguística para testar
a possibilidade evolutiva orgânica. Em
um engenhoso experimento, ele acompanhou a viagem de um enfermo para receber uma benção, alguns dias rio abaixo.
A procissão seguia uma ladainha, repetida monotonamente pelo grupo que a
acompanhava. A ladainha era repetida
"com a sua linguagem cada vez mais melhorada, reduzindo-se depois à escrita e,
por fim, justapondo-se à rima".
Wallace investigava como a repetição
monótona da mesma ladainha poderia
revelar inovações e esconder vínculos
causais, ou seja, se a língua e sua flexão
poderiam, de alguma forma, servir de
modelo para a questão da evolução dos
organismos. Hoje, essa metáfora tem
grande força, dado o paralelo imediato
com os processos de replicação monótona do DNA.
Assim, por mais inovações tecnológicas
que tenhamos à nossa volta, parece que
certas perguntas fundamentais não nos
abandonam. De onde viemos? Quem são
nossos ancestrais? Mesmo sem resposta
definitiva, a pergunta é difícil e nos remete para um plano de dúvida mais informado. "Pergunte de onde veio a língua de
seu povo", eis uma nova questão, que talvez não seja tão nova, mas que certamente nos faz pensar em nossos preconceitos
mais arraigados e em como é difícil nos
despojarmos deles para admitir que o estranho sujeito ao lado é apenas um parente mais distante, a quem ainda não fomos formalmente apresentados. Se todo
homem já foi mulher, se todo branco já
foi negro, se os nobres eram plebeus, se
os "arianos" eram mestiços, qual será o limite para o engenho do pensamento?
Luigi Cavalli-Sforza se esmera em mostrar que ele pode ir longe.
Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de
Educação da USP.
Genes, Povos e Línguas
Luigi Luca Cavalli-Sforza
Tradução: Carlos Afonso Malferrari
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
296 págs., R$ 36,00
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