São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2010

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FINO

Arte de risco

por LUIZ FERNANDO VIANNA, do rio

O artista José Bechara CONTA como preenche seus espaços vazios com obras de materiais hostis


O título escolhido por José Bechara para a maior exposição de seus 20 anos de carreira, "Fendas", é minimalista diante da imagem que o assombra quase toda noite: um abismo. Pintor, escultor, investigador peculiar da arquitetura, ele tem nos pesadelos até a medida que o separa da morte: dez metros.
Nem nos seus momentos de maior satisfação com o que produz ganha do inconsciente permissão para se afastar do risco. Nos de menor satisfação, o abismo pode ficar mais próximo.
Risco é um fator cada vez mais presente no trabalho desse carioca de 53 anos, um dos expoentes da geração 90, participante de diversas mostras no Brasil e no exterior, que ocupará, a partir de 23 de novembro, os 3.000 metros do Espaço Monumental do Museu de Arte Moderna do Rio. Não é uma retrospectiva, pois 75% das obras são inéditas, mas o percurso de duas décadas é revisto em desenhos, fotografias, pinturas e esculturas sob a curadoria de Luiz Camillo Osorio.
Estarão lá, por exemplo, grandes placas de vidro da série "Gelosia", iniciada há dois anos. Os vendedores oferecem ao artista placas com as bordas arredondadas para evitar cortes, mas ele as recusa. "Tenho várias cicatrizes. Na hora em que me corto, estou envolvido no trabalho e não sinto. Quando entro no banho, arde tudo", conta.
Ele pinta o vidro por meio de um processo de oxidação de emulsão ferrosa, com sais de cobre e cobalto. Algo insalubre, ainda mais porque nem sempre o artista se lembra de usar máscara e luvas. O mesmo acontece nas suas grandes telas realizadas com oxidação de cobre. "Nada é feito sobre superfície de veludo, nada é um mar de rosas. Sinto que é preciso haver resistência para existir [a obra]", diz.
Na maior parte de sua trajetória, Bechara lidou com materiais hostis. Quando saiu dos cursos do Parque Lage, no Rio, depois de largar a faculdade de economia, ele fazia pintura figurativa sobre tela, mas, ainda na década de 90, descobriu as lonas usadas de caminhão, sobre as quais fez muitos trabalhos com tintas. As peles de bois e bezerros foram outros suportes.
Em 2002, aconteceu sua principal virada. Convidado para passar duas semanas em Faxinal do Céu (PR) e produzir o que desejasse, não conseguiu mexer em pincéis e tintas por nove dias. "Pensei comigo: 'Até aqui, você enganou bem, mas não é um artista'", lembra.
No décimo dia, escreveu numa tela: "Preencher os vazios". Pouco depois, olhou para uma janela aberta e a preencheu com uma mesa. As outras janelas e portas foram fechadas com mais móveis e colchões. "Estava tudo muito certo ali: aquela natureza deslumbrante, minha família comigo. Senti falta das derrotas do ateliê", explica ele, pai de três filhos, sendo duas meninas com a atriz Dedina Bernardelli.
Nascia, além da instalação "A Casa", o escultor José Bechara. E ainda seria aprofundada sua busca pelo que é "perturbado", "não apaziguado", segundo suas próprias palavras. São casas em que a mobília é expulsa e das quais não se vê o interior, "esculturas gráficas" com módulos cheios e vazios se equilibrando precariamente e grandes construções, como "Run", que estreará em "Fendas" com suas 48 mesas de jantar.
A maior parte das obras da exposição está espalhada pelos 200 metros quadrados do ateliê de Bechara, em Santa Teresa (região central do Rio). De segunda a segunda, ele está no local. "É comum passar em frente ao ateliê dele num sábado à noite ou num domingo de sol e encontrar seu carro na porta. Zé é um artista furioso em busca da vertigem e nada mais importa para ele", diz Raul Mourão, que já dividiu um ateliê com Bechara e Angelo Venosa.
Apenas uma vez, em 2005, ele cedeu o espaço para algo que não fosse seu próprio trabalho: um editorial de moda cuja estrela só lhe foi anunciada no dia. Até hoje não foi lavado o chão que os pés descalços de Gisele Bündchen pisaram.

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