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São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Illinois, a luz no fim do corredor da morte

A decisão do governador George Ryan, de Illinois, suspendendo a pena de morte de condenados no seu Estado, é uma das grandes notícias do ano. Na aparência, foi um gesto emocional, destinado a comover os milhões de militantes de direitos humanos no mundo. Mas, na realidade mais profunda, foi uma decisão madura, precedida de longos debates e do trabalho de uma comissão de 14 membros, entre eles o escritor e advogado Scott Turow.
Autor de vários best-sellers, Turow, que trabalhou defendendo Alejandro Fernandez, um condenado à pena de morte, faz um longo relato de suas reflexões na revista "New Yorker". O interessante é que ele nunca foi um grande entusiasta da abolição da pena, mas o contato com o problema e o estudo da criminalidade acabaram definindo seu voto contrário à pena de morte na comissão criada por Ryan. O texto de Turow nos dá algumas pistas para entender a resistência americana à proposta européia, tendo a França à frente da abolição da pena. O americano comum acha que os índices de criminalidade nos EUA e no continente europeu são tão distintos que não pode haver um transplante mecânico.
Conhecedor das teses dos defensores da pena de morte, Turow começa liquidando uma das mais caras: a de que a decisão contribui para reduzir a criminalidade. Illinois com a pena de morte tem um índice de criminalidade mais alto que Michigan, um Estado com a mesma estrutura racial, nível de renda e distribuição humana entre campo e zonas rurais. As pesquisas sobre o tema vão mais longe, mostrando que, na última década, os índices de assassinato nos Estados com pena de morte foram mais altos do que nos Estados onde ela não vigora.
Turow compreende o argumento de que crimes repugnantes merecem um castigo diferenciado. Mas, baseado na sua experiência, ele mostra como é necessário uma enorme precisão no sistema de justiça para que se evitem os erros. Nos últimos 25 anos, em Illinois, 13 condenados tiveram suas penas suspensas, porque as sentenças estavam equivocadas.
Embora a ambivalência tenha dominado a opinião pública na questão da pena de morte, Turow lembra que Michigan foi, em 1846, o primeiro Estado a suspendê-la, exceto para casos de traição.
Depois da Segunda Guerra, com o fim de alguns governos totalitários, os países avançados começaram a abolir a pena de morte. A França está entre eles, e a história da abolição, conquistada oficialmente em 30 de setembro de 1981, hoje é uma realidade européia.
Robert Badinter, autor do livro "L'Abolition" (ed.Fayard, 326 págs), conta a longa história de luta contra a pena de morte entre os franceses. Luta da qual participou diretamente, influenciando seu país a projetá-la no cenário internacional. Badinter considera que a abolição marca um progresso irreversível da humanidade contra seus medos, suas angústias e sua violência.
A maneira como o governador Ryan conduziu o processo mostra como é mais promissora a luta contra a pena de morte num contexto democrático, ampliando as esperanças de que a própria vitalidade política e cultural dos EUA se encarregue de eliminá-la. A mesma esperança não se estende a países como o Irã e a China, refratários à pressão externa, mas sobretudo rígidos com as críticas no interior de seu sistema político.
O Brasil poderia ser um protagonista nesse front internacional pela abolição da pena de morte. A abolição é uma cláusula pétrea em nossa Constituição. Temos entretanto um calcanhar de Aquiles: as execuções sumárias realizadas pelas polícias das metrópoles. Há alguns dias, 11 pessoas foram mortas numa nebulosa ação policial no Rio. Os jornais registraram. Mas as mortes isoladas, cotidianas, só aparecem na sua plenitude quando se transformam em estatísticas anuais. Nesse momento, constatamos que existe uma espécie de pena de morte muito pior do que nos outros países. Ela é sumária, sem julgamento.
Mesmo com todos os seus erros, os norte-americanos, às vezes, levam dez anos com recursos e revisões, antes de executar um prisioneiro. Só quando levarmos realmente a Constituição a sério no cotidiano, poderemos repetir, sem o risco de sermos ironizados, a máxima de Cesare Beccaria: "se provar que essa pena não é útil nem necessária, terei feito triunfar a causa da humanidade".


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