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FERNANDO GABEIRA
Algumas vantagens em fugir para o Brasil
Minha avó veio do Líbano
com uma cruz tatuada na
testa. Às vezes, falava de choques
religiosos em seu país.
Agora, percebo que o Brasil era
um bom lugar para quem tivesse
uma cruz na testa. E que talvez
entendesse melhor o mundo se
perguntasse, ao longo do tempo,
que choques eram aqueles, que visões de mundo estavam em jogo.
Como me aventurar agora pelo
islã, se o que me interessou por lá
foram os sufis, com sua leitura
poética dos textos e do mundo?
Por isso estou tateando, buscando
fazer perguntas, sem cair no risco
apontado por Edward Said: o de
inventar um islã para acalentar
uma visão superior de um não
menos idealizado Ocidente.
Esse mecanismo não é estranho
aos brasileiros. Os jesuítas inventaram um universo cultural dos
índios, partindo de alguns fatos,
omitindo outros, projetando na
realidade os seus obscuros desejos. Objetivamente, um roteiro
para o extermínio cultural, no
qual o outro deve renunciar à sua
selvagem superstição.
Com todo esse terreno minado,
arrisco fazer algumas perguntas.
Elas são mais viáveis porque existe um desejo de reforma entre intelectuais islâmicos. Um diálogo
entre Dariush Shayegan, filósofo
iraniano, e Tariq Ramadan, teólogo muçulmano, no "Nouvel Observateur", me deu mais coragem.
Faziam as mesmas perguntas
que eu. E, claro, com conhecimento de sua cultura, respondiam
com muito mais segurança. Perguntavam, por exemplo, algo que
sempre me intrigou: por que o
confucionismo e o budismo tiveram mais flexibilidade ao se
adaptar aos tempos modernos?
Através de seu iluminado debate, fico sabendo que o islã teve
poetas e filósofos e que foi sendo
progressivamente dominado ou
pelos encarregados de fazer cumprir seus preceitos ou pelos que o
sequestraram para fins políticos,
fazendo dele uma ideologia revolucionária, confundindo messianismo com a história.
Malek Chabel, autor de "O Imaginário Árabe-Muçulmano", vai
mais longe: "Os muçulmanos de
hoje não têm aptidão para a autocrítica. Como a teriam, depois
de tudo o que passou: o califado,
queda do império, colonização,
que os privaram de uma função
intelectual que nasce das entranhas da liberdade? O islã precisa
de um aggiornamento".
Os reformistas conquistarão
uma grande vitória se conseguirem quebrar a tese da construção
de um Estado islâmico submetido
a uma visão repressiva da sharia,
o conjunto de preceitos do islã. Fico sabendo por Tariq Ramadan
que um partido chamado Partido
da Liberdade, que tem base em
Londres, afirma: um dia a bandeira do islã vai tremular no 10
Downing Street, o endereço oficial do premiê britânico.
A sustentação dessa tese conservadora é que um muçulmano
não seria um fiel se o Estado onde
vive não respeita as regras do islã.
Isso só será resolvido entre os próprios muçulmanos, o que não me
impede de torcer pelos que querem um Estado secular, baseado
numa constituição negociada.
Pelo que li do debate -um
pouco diferente de Said, que apresenta os terroristas islâmicos como algo excepcional como Jim Jones, por exemplo-, os dois intelectuais consideram que pertencem ao islã e que fazem parte de
uma corrente real dentre as muitas que coexistem nesse mundo,
que nos convida a entendê-lo.
Com minha experiência em lugares onde um texto tem diferentes interpretações, como a esquerda marxista, tinha a princípio a
sensação de que alguns erros nada tinham a ver com o texto. Com
o tempo comecei a me perguntar
se um texto que inspirava alguns
erros, e não outros, não deveria
ser revisitado para uma crítica.
No caso do islã, o apego a um
texto ancestral e a tentativa de
aplicá-lo ao presente, sem considerar a sua base de violência, cria
um abismo trágico. Dariush Shayegan diz: "O que vemos hoje é a
ressurgência de fortes estruturas
do sagrado. Que são as estruturas
da violência, pois o sagrado é violento. E essa violência existe no
Alcorão. Essa grande cultura que
se formou ao longo de 1.400 anos
buscou sublimar essa violência
que estava na origem da religião
para se tornar uma cultura do
amor: é o que se encontra em nossos místicos, de certa forma muito
próximos aos místicos cristãos".
Esse período dourado foi curto.
Transformado em instrumento
de combate, ele tende à sacralização da sharia, que se ocupa da vida privada das pessoas -como se
vestir, como comer. Enfim, para
os próprios intelectuais islâmicos,
uma visão esclerosada do islã.
Apesar desse ligeiro desvio, volto à visão de Edward Said de que
navegamos no imenso mar da
história e nossos destinos são
mais entrelaçados do que parecem. O Ocidente desempenhou
um grande papel fortalecendo ditaduras e setores totalitários do
Irã, às vezes para resistir a líderes
seculares nacionalistas ou socialistas. Há pelo menos algum cimento ocidental nessa enorme superfície petrificada.
Nadia Yacine, do grupo Justiça
e Espiritualidade, que se diz moderada, embora o "Observateur"
a classifique de radical, desafia:
"A única saída para essa crise estrutural que abala o mundo é deixar que os muçulmanos possam
se exprimir e se mover com liberdade. Equilíbrios construtivos e
benéficos podem emergir rapidamente. A reeleição de [Mohammad" Khatami no Irã é uma prova de que o islã pode achar logo o
caminho da modernidade".
Esse é o desafio histórico da cultura islâmica. Para ajudá-los, não
podemos esquecer em nós mesmos o instrumento que nos ajudou: a autocrítica.
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