São Paulo, segunda-feira, 22 de outubro de 2001

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FERNANDO GABEIRA

Algumas vantagens em fugir para o Brasil

Minha avó veio do Líbano com uma cruz tatuada na testa. Às vezes, falava de choques religiosos em seu país.
Agora, percebo que o Brasil era um bom lugar para quem tivesse uma cruz na testa. E que talvez entendesse melhor o mundo se perguntasse, ao longo do tempo, que choques eram aqueles, que visões de mundo estavam em jogo.
Como me aventurar agora pelo islã, se o que me interessou por lá foram os sufis, com sua leitura poética dos textos e do mundo? Por isso estou tateando, buscando fazer perguntas, sem cair no risco apontado por Edward Said: o de inventar um islã para acalentar uma visão superior de um não menos idealizado Ocidente.
Esse mecanismo não é estranho aos brasileiros. Os jesuítas inventaram um universo cultural dos índios, partindo de alguns fatos, omitindo outros, projetando na realidade os seus obscuros desejos. Objetivamente, um roteiro para o extermínio cultural, no qual o outro deve renunciar à sua selvagem superstição.
Com todo esse terreno minado, arrisco fazer algumas perguntas. Elas são mais viáveis porque existe um desejo de reforma entre intelectuais islâmicos. Um diálogo entre Dariush Shayegan, filósofo iraniano, e Tariq Ramadan, teólogo muçulmano, no "Nouvel Observateur", me deu mais coragem.
Faziam as mesmas perguntas que eu. E, claro, com conhecimento de sua cultura, respondiam com muito mais segurança. Perguntavam, por exemplo, algo que sempre me intrigou: por que o confucionismo e o budismo tiveram mais flexibilidade ao se adaptar aos tempos modernos?
Através de seu iluminado debate, fico sabendo que o islã teve poetas e filósofos e que foi sendo progressivamente dominado ou pelos encarregados de fazer cumprir seus preceitos ou pelos que o sequestraram para fins políticos, fazendo dele uma ideologia revolucionária, confundindo messianismo com a história.
Malek Chabel, autor de "O Imaginário Árabe-Muçulmano", vai mais longe: "Os muçulmanos de hoje não têm aptidão para a autocrítica. Como a teriam, depois de tudo o que passou: o califado, queda do império, colonização, que os privaram de uma função intelectual que nasce das entranhas da liberdade? O islã precisa de um aggiornamento".
Os reformistas conquistarão uma grande vitória se conseguirem quebrar a tese da construção de um Estado islâmico submetido a uma visão repressiva da sharia, o conjunto de preceitos do islã. Fico sabendo por Tariq Ramadan que um partido chamado Partido da Liberdade, que tem base em Londres, afirma: um dia a bandeira do islã vai tremular no 10 Downing Street, o endereço oficial do premiê britânico.
A sustentação dessa tese conservadora é que um muçulmano não seria um fiel se o Estado onde vive não respeita as regras do islã. Isso só será resolvido entre os próprios muçulmanos, o que não me impede de torcer pelos que querem um Estado secular, baseado numa constituição negociada.
Pelo que li do debate -um pouco diferente de Said, que apresenta os terroristas islâmicos como algo excepcional como Jim Jones, por exemplo-, os dois intelectuais consideram que pertencem ao islã e que fazem parte de uma corrente real dentre as muitas que coexistem nesse mundo, que nos convida a entendê-lo.
Com minha experiência em lugares onde um texto tem diferentes interpretações, como a esquerda marxista, tinha a princípio a sensação de que alguns erros nada tinham a ver com o texto. Com o tempo comecei a me perguntar se um texto que inspirava alguns erros, e não outros, não deveria ser revisitado para uma crítica.
No caso do islã, o apego a um texto ancestral e a tentativa de aplicá-lo ao presente, sem considerar a sua base de violência, cria um abismo trágico. Dariush Shayegan diz: "O que vemos hoje é a ressurgência de fortes estruturas do sagrado. Que são as estruturas da violência, pois o sagrado é violento. E essa violência existe no Alcorão. Essa grande cultura que se formou ao longo de 1.400 anos buscou sublimar essa violência que estava na origem da religião para se tornar uma cultura do amor: é o que se encontra em nossos místicos, de certa forma muito próximos aos místicos cristãos".
Esse período dourado foi curto. Transformado em instrumento de combate, ele tende à sacralização da sharia, que se ocupa da vida privada das pessoas -como se vestir, como comer. Enfim, para os próprios intelectuais islâmicos, uma visão esclerosada do islã.
Apesar desse ligeiro desvio, volto à visão de Edward Said de que navegamos no imenso mar da história e nossos destinos são mais entrelaçados do que parecem. O Ocidente desempenhou um grande papel fortalecendo ditaduras e setores totalitários do Irã, às vezes para resistir a líderes seculares nacionalistas ou socialistas. Há pelo menos algum cimento ocidental nessa enorme superfície petrificada.
Nadia Yacine, do grupo Justiça e Espiritualidade, que se diz moderada, embora o "Observateur" a classifique de radical, desafia: "A única saída para essa crise estrutural que abala o mundo é deixar que os muçulmanos possam se exprimir e se mover com liberdade. Equilíbrios construtivos e benéficos podem emergir rapidamente. A reeleição de [Mohammad" Khatami no Irã é uma prova de que o islã pode achar logo o caminho da modernidade".
Esse é o desafio histórico da cultura islâmica. Para ajudá-los, não podemos esquecer em nós mesmos o instrumento que nos ajudou: a autocrítica.



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